Cultura

A ALMA DA SENHORA AVENIDA SETE, CAP 5: ALMOÇO COM CONSELHEIRO MARCONI

- Ora, meu notável conselheiro, restaurante popular só tem um salão, arejado, ventilado com potentes máquinas, e todos se juntam numa mesma irmandade.
Tasso Franco ,  Salvador | 30/05/2024 às 09:46
O andarilho no Rei do Churrasco
Foto: BJÁ

   Numa sexta deste maio chuvoso a poucos passos de adentrar na Basílica de São Sebastião no imponente Convento de São Bento desta monumental Avenida Sete, deparei-me com o conselheiro Marconi.

   - Que alegria saudou o escritor que estava a caminho do oftalmologista.

  - Irei às orações com os castos monges, atabulei sobre minha presença no templo católico.

   - Imaginei que ainda trilhasse os ensinamentos da filosofia do francês Allan Kardec, rebateu o vate. 

   - Sou ecumênico e cultuo o espiritismo - sussurrei ao meu interlocutor - mas também vou à missa. Adoro templos católicos, santos, anjos e candelabros. Não há pecados neste ato. Sêneca recomendava praticar a virtude acima de tudo. Entre nós, há um político que defende "Brasil acima de tudo; Deus acima de todos", uma diatribe. 

   - Estou a seguir com pressa - disse o esbaforido escriba. Tenho agenda com o ofalmo às 10 horas e sendo possível irei ao Politécnica comprar óculos. E, quiçá, após sua missa podemos apreciar um café com sequilhos na Lobras lanchonete.
 
   - Caro conselheiro, salvo engano, a Lobras já fechou as portas há muito tempo e o que há de mais antigo nesta avenida, no trecho a que se dirige, é a Savoy do Relógio, desde 1975, a servir bolos e tortas deliciosas.

   - Desculpe-me, a aposentadoria deixa-me muito em casa e vivo desatualizado desses movimentos da cidade, que são muitos pelo visto.

   - Enormes. Mas nesta área o traçado da avenida é o mesmo criado por Seabra e Arlindo e se não temos mais os hotéis Sul-Americano e o Paris, subiram prédios gigantescos e surgiram galerias de joias.

    Após a missa, se assim quiseres, podemos nos encontrar na sala de leitura da Biblioteca Anísio Teixeira, ei-la ali reformada, apontei para o local onde existiu a Casa do Esperanto.

   - Então combinamos assim. Aceito seu convite - despediu-se o ilustre conselheiro aparando o andar numa bengala.

   Orei à gosto. A missa foi oficiada por um monge jovem e ao sair com a alma purificada em direção a biblioteca advertiu-me um discreto segurança à porta do templo, que deveria não me expor no largo em conversa como a que vira com o conselheiro, pois há muitos batedores de carteiras na Sete. 

    Então assim falei: - Os ladrões não furtam os velhos. Nos respeitam. 

    - Ah e como furtam. Nossas fiéis mais idosos reclamam muito. Até terços das senhoras levam pensando que são de ouro.

    - E o que recomenda o santo homem desta abadia?

    - Cautela, cuidados, atenção - pinicou palavra por palavra.

    -  Sábio esse abade. O que falaste é uma recomendação dele?

    - Sim, o homem é estudado em teologia, e não um policial. Daí que nos ensina combater o crime com palavras.

   Afastei-me aos poucos e desci a escada do templo que dá na pracinha, onde vendedora de churrasco estava a abanar o carvão e um vendedor de "hot dog" com suco de laranja a servir um cliente.

 Cumprimentei o monumento busto de Ludwik Lejzer Zamenhof, o pai do esperanto, o meu velho amigo Leogardes mercador de óleo de peixe elétrico estava ausente na sombra do oitizeiro em frente à biblioteca, onde faz ponto, e acessei a entrada da casa dos livros.

    - Boa tarde, cumprimentei o atendente Licurgo e dirigi-me a sala de leitura.

 - O que desejas nobre andarilho Epitácito? – perguntou o fardado recepcionista errando o meu nome, aliás, como faz meu barbeiro que me chama de Tácito.

 - Quero os jornais do Sul se tiveres – pedi.

 - Ah! Sensível andarilho foi-se o tempo em que circulavam na Bahia. Hoje, mal temos os jornais locais, mas, no momento estamos sem renovar as assinaturas. O maldito iPhone acabou com tudo.

  - Não havendo os impressos, ia pedir-lhe a revista “Caras” para me distrair com bobagens até a chegada de um amigo que se dirigiu a um oculista no Politécnica.

  - Está em moda ler o Machado de Assis depois que uma influenciadora norte americana do Tiktok, chamada Courtney Novak, viralizou em comentário as “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Recomendo, então, que passes os olhos neste Brás enquanto aguardas o amigo. 

  Entregou-me o livro e fiquei a folhear e ler alguns trechos com relatos de fina ironia sobre o Rio de Janeiro quando, pouco mais de 30 minutos depois, chegou o conselheiro Marconi, ainda sem óculos novo - nada lhe agradara no Politécnica para comprar - trazendo consigo a receita e uma alerta que deveria ficar atento a um avanço da catarata no olho direito.

   - Que lês nesta belíssima biblioteca? Diz-se que o IPHAN levou 12 anos para reformar a caída casa do lunático Zamenhof, porém, ao que vejo o resultado foi satisfatório, comentou o conselheiro.

   - Leio Machado na sua fase de um Rio amargo, péssimo, pero, realista. E, ademais, não me surpreende essa demora do IPHAN em obras, anda sempre com o pires em mãos. A cultura neste país está relegada aos quintais.

  - Aonde vamos impenetrável andarilho. Creio que, a essa hora, já se passa da uma da tarde, o recomendável é almoçarmos.

  - Assim imagei, ínclito conselheiro e se não existe mais o restaurante do Sul Americano em seu lugar, ou ao menos nas proximidades onde foi o hotel preferido dos gringos quando vinham a esta terra, pois, lá, fincaram o dromedário Sulacap, ao rei iremos, a pé, perto daqui está.

   - Mirabeau dizia que a majestade da França do seu tempo, Luís XVI, não tinha pés e só andava de carruagem. 

   - São cinquenta passos da velhice até lá. Acompanhe-me. Entreguei o livro a Licurgo com agradecimentos à sua gentileza e descemos a Ladeira do São Bento.

   - Pelo que enxergo em placa, ainda não estou com meus óculos novos, trata-se do Rei do Churrasco.
  - Exato. É para lá que estamos indo. 

  - Uma perguntinha se me permite: tem ar condicionado nos seus salões.

  - Ora, meu notável conselheiro, restaurante popular só tem um salão, arejado, ventilado com potentes máquinas, e todos se juntam numa mesma irmandade.

  Ao chegarmos a porta do rei o conselheiro leu que o pagamento da refeição era adiantado, R$13,90 um prato suculento com uma proteína; ou se com fome estivesse, almoço com duas proteínas R$18,00.

  - Meu abnegado andarilho não me parece um restaurante adequado a um conselheiro desta República.

  - A República! sim, a da ilha da fantasia, conselheiro algum de lá iria se acomodar no rei ou talvez fosse cair aos pés de sua majestade se o rei Sol voltasse a sua origem. De nossa parte, um popular faz bem a alma, nos misturarmos com o povo, com essas belas moçoilas que aqui comem e trabalham como atendentes em lojas do comércio.

  - Enfim, já que estamos aos pés do rei, paguemos em efetivo e almocemos, consentiu o conselheiro.
  Fizemos dois pratos caprichados, verduras, feijão, arroz e uma proteína que escolhi uma coxa assada de frango e o conselheiro optou por duas proteínas, um pedaço de peito de frango e uma calabresa.

   Comemos como dois súditos de sua majestade e depois saímos a andar pela Sete em direção a praça Castro Alves, onde o conselheiro colheu um 99, e eu dirige-me de volta ao Relógio de São Pedro cujos ponteiros na face para a Sete marcavam dez da noite e o dia ainda estava claro. 

   - São as loucuras do tempo - pensei comigo mesmo - e apressei os passos, pois, ainda havia um longo caminho para chegar em casa. E cheguei a tempo do sol se pondo no Farol da Barra a essa altura - imaginei - o velho relógio badalando a meia noite.