Cultura

O HOMEM VERDE DO GINÁSIO, CAP 20: A POETISA VIÚVA DOS 13 GATOS (TF)

Quatro desses gatos foram sepultados com a viúva no cemitério da Paróquia em tumba atrás da capela
Tasso Franco ,  Salvador | 27/05/2024 às 10:46
Gatos
Foto: Freepeak IA
  Cap 20   do livro "O Homem Verde do Ginásio", de TF: A POETISA VIÚVA DOS 13 GATOS   

   Lúcio Élio Tamarindeiro é o nome do próximo orador. Pareceu-nos, por natureza de estilo, de estrutura óssea delgada, nariz em ponta aguda curvilínea como se estivesse apontando para o céu, bigode preto escovado, um homem refinado. Era, como diria minha avô Leonor - a "Filhinha" - um homem concatenado, poeta, letrado e cultor da virtude com a cara do bom viver. Narraria, segundo sua verve, o acontecido em vida sobre a viúva Oscália Mendonça Tamarindeiro, uma parente sua distante originária da Bela Vista e nascida no outeiro da Serra de São Caetano donde se tem, do seu topo, uma esplendorosa vista de nossa aldeia - daí o nome de Bela Vista - e onde a família Mendonça Tamarindeiro, tão antiga como o cruzeiro que se fincou neste monte, no século XVIII, encontrava-se na quinta geração.

   Lúcio Elio - alcunha de Elinho, destacava que Elinho com E e não com H maiúsculo, apresentou-se como representante dos intelectuais, dos letrados, da Sociedade “Philarmônia 30 de Junho”, dos artistas do pincel e do verso, dos profissionais do teatro e tinha um orgulho imenso de pertencer a esse círculo do saber e citava sua tia bisavó Oscália como a primeira poeta da nossa aldeia autora dos premiados livros "Preces" e "Ode aos Pioneiros". Após uma rápida pausa em sua exposição quando solicitou a Cheiroso mais água em seu copo avultou, com ênfase, que a obra que a imortalizou foi o livro de poemas intitulado "A viúva dos 13 Gatos", inspirado nela própria, na sua história de vida e amor a poesia, ela que viveu até a quadra derradeira do século XIX muitos anos de vida depois da partida do seu defunto Avelino Cajazeiras, que sucumbiu em 1970 e era descente de outra família de heróis que desbravam os Tocós, esse sertão inclemente de sol, camaleões e cobras.

   Esta obra - sublinhou - foi laureada com o prêmio "Europa Lusitana" e os 13 gatos que criou em seu chalet, diga-se, vários senhores tentaram conquistar seu amor após a partida do seu querido Avelino, alguns como o pecuarista Procópio Cajueiro, de grandes poses, mas ela preferiu se dedicar aos seus gatos com todo amor e carinho, tutora dedicada que deixava nos bichanos à vontade transitando no salão principal decorado em estilo Dom José, nos caramanchões e no quintal onde havia uma piscina - a primeira de nossa aldeia - e esses gatos em tela receberam os seguintes nomes a conferir: um com pelo acobreado que apelidou de "Juca Pirama" numa homenagem ao vate maranhense Gonçalves Dias, o qual viveu e morreu aos 51 anos de idade no século XIX, creio também ter sido uma referência aos índios Tocós uma vez que este personagem que se traduzia do tupi para o português como "aquele que deve morrer" era um indígena capturado pelo timbiras e que iria ser sacrificado, e ela sabia e recitava, de cor, parte dos 484 versos desta obra; um gato cor de areia macho atrevido que apelidou de "Alepo" referência a poetisa síria Maryana Marrassh, integrante do renascimento árabe e a primeira mulher deste país a publicar poemas; o "Cabeleira", referência mais do que justa ao poeta que cantou a tragédia da escravidão, Castro Alves, jovem de cabelereira e bigode invejáveis imitados por muitos poetas no início do século XX; "Estrelinha", uma gata manhosa branquinha como a neve, olhos faiscantes, homenagem ao apaixonado e incompreendido entre as mulheres Olavo Bilac, autor de "ora direis; ouvi estrelas"- o príncipe dos poetas e autor da letra do hino à Bandeira Nacional (peço licença para recitar um trecho: Salve lindo pendão da esperança/Salve símbolo orgulho da paz/ A grandeza da Pátria nos traz); "Paris" em saudação a Charles Beaudelaire, o francês "flaneur" que e cantou e endeusou a cidade luz com suas prosas poéticas; "Femen", homenagem a Maria Firmina Alves outra maranhense brilhante primeira romancista negra deste país e autora de "Ursula"; "Capitu" uma gatinha rajada linda em homenagem a Machado de Assis, o qual graças ao seu "Dom Casmurro" destacou o papel alucinante de uma amante a intrépido senhor chamado Bento Gonçalves; "Corcunda", um gato velho envergado pelo tempo dos telhados, em referência a Victor Hugo poeta francês que cunhou essas belíssimas frases: "Beber é uma necessidade da alma"; "o homem pensa, a mulher sonha", "O homem é um código, a mulher é um evangelho", gato vagabundo "Les Miserables"; "Aurora" outra gata assanhada e minha tia bisavô gostava de declamar "Meus Oito Anos" -Oh! que saudade que tenho/Da aurora da minha vida/ Da minha infância querida/ Que os anos não trazem mais - homenagem a Casimiro de Abreu; um que apelidou de "Dom Juan", por ser belíssimo, de postura elegante, garanhão nato, em louvor ao poeta Lorde Byron, vate inglês que conseguiu a proeza de compor 16 mil versos em sua obra que enaltece a sedução, diria de um homem conquistado por mulheres - o que tem sido raro nos dias atuais - mas George Gordon Byron, embora não tivesse estabelecido que seu personagem era assim, assim o povo decidiu, e povo é povo aqui ou na Inglaterra; aqui ou na China, e Don Juan prevaleceu como aquele que é encantador, diria sem pejo, um exemplar como o meu (houve risos entre os participantes e as mulheres não se entusiasmaram por Lúcio Élio; um que apelidou de "Balsemão" deferência que fez a poetisa portuguesa Catarina Micaela de Souza César, a Viscondessa de Balsemão, cujo pseudônimo era "Nathércia" e poetizava a razão, o amor, a natureza, a felicidade e permita-me recitar um versinho desta portuguesa adorável: Cuidado fracos autores/ Não busques luz emprestada/ Se vos tirareis o alheio/ Talvez vos não fiques nada; um gato preto retinto olhar verde tentador que chamava "Solidão" , certamente porque andava desgarrado do grupo, pouco afeito a carinhos da sua tutora, homenagem que fez a obra portuguesa Leonor de Almeida, a Alcipe, a marquesa de Alorna, uma poeta lírica autora da "Epístola a Byron" que amava produzir poesias melancólicas, tristonhas, e permita-me, mais uma vez citar um versinho desta autora: "Tu deusa tutelar da solidão/ Amável sombra, ó melancolia/ Aproxima-te, rouba-me a alegria/ Que turba a suavidade do coração; e, por fim, um gato que apelidou de "Renovação" uma homenagem ao poeta francês Stéphane Mallarmé, que promoveu uma renovação na poesia do século XIX, um escritor de pensamento refinado, que embora fosse um poeta hermético em si, era um futuristas no pensar.

   - Meu nobre Elinho, interveio o representante do Raso, Erasmo Jaboticaba: - Quero dizer ao distinto orador que, talvez por morar num distrito que fica distante da sede 180 léguas, estou surpreso com a grandeza que dizes ser portadora a sua tia-bisavó em letas, mas, confesso que não a conhecia nem de ouvir falar e parece-me que o distinto está a enaltecendo como méritos acima do que seria possuidora, pois, desconheço em nossa aldeia quer aqui na sede ou nos distritos, algum poeta de renome, ainda que tenhamos grandes mestras professoras como Milú de Laboré, Anita Ferreira, Áurea Nogueira, Astrogilda Paiva Guimarães, mas não nos destacamos em poesia.

   - Ora meu abnegado representante do Raso, que tão Raso é que o povo quer trocar o nome para Araci, vossa excelência como os demais que, provavelmente, também, nunca tenham ouvido falar na grande poetisa que foi minha tia-bisavó, estão perdoados porque o saber neste sertão no século XIX era quase nada divulgado, não havia livros e jornais como em Portugal e na França, e muito do que se produziu ficou no esquecimento e minha tia-bisavó só conseguiu publicar sua obra derradeira porque esta terra conheceu as rodas do progresso, em 1880, com a chegada do trem para a capital, e ela teve a coragem, já viúva, de se dirigir a Cidade da Bahia com os originais escritos a caneta tinteiro levá-los a “Editora Progresso” que imprimiu sua coletânea na “Tipografia Bahiana” e as trouxe para nossa aldeia havendo lançamento na sede da nossa septuagenária “30 de Junho” com sarau da sua orquestra de bandolins e depois com concerto a piano pela professora Lurdes dos Nogueira. Vossa Excelência - creio, suspirou Elinho - já deve ter ouvido falar da “30 de Junho” e dos pianos que foram importados à mossa aldeia provenientes da França e que chegaram para as casas das famílias ricas porque essas mocinhas dondocas falavam francês e tocavam piano.

    - Diria, auspicioso poeta, que não sou tão ignorante quanto pensas e se no meu querido Raso não tem fundura, a Serrinha de vossência não serra pau grosso, e é claro que já ouvi falar na gloriosa “Philarmônica 30 de Junho” e já teve oportunidade em nossa festa em louvor a Nossa Senhora da Conceição, mas, confesso também que nunca ouvir falar nesta orquestra de bandolins, ainda que, uma sinhazinha das nossas tenha importado um piano que aludes e se tornou uma mobília da casa do coronel Petronilio, Araçá uma vez que não havia professora para lhe ensinar as notas. E quanto a sua bisa, oportuno seria que apresentasse ao menos um exemplar das obras da finada.

    -Não o farei, porque não as tenho e foram poucos os exemplares, mas, é provável que alguém neste salão as possua em suas estantes.

    Como mediador intervi na discussão: - Todos sabemos que a renomada Oscália existiu e seus poemas são muito apreciados, mas, a memória da nossa vila tem sido comida pelas traças, não vê o livro de Antônio José de Araújo, “A Família de Serrinha”, que é de 1925 não existe mais nenhum exemplar, e infelizmente não temos biblioteca pública nem casa de cultura oficial e a nossa “30 de Junho”, como sabemos, se dedica mais à música. Gostaria que o nobre Lúcio Élio concluísse seu conto.

    - Pois não, senhor mediador, retornou Élio: Minha bisavô - como todos nós algum dia na vida - foi ficando velha e alguns gatos foram para outro plano espiritual antes dela, creio, nove deles, a primeira a falecer foi "Capitu", ao que sei, por desinteria; depois Corcunda” que fechou os olhos pela idade; seguido de "Juca Pirama", que caducou e morreu afogada na piscina; "Solidão" teria se suicidado; “Cabeleira” morreu envenenado por mordida de cobra; “Paris” se desentendeu em briga feroz com “Alepo” e ambos sucumbiram; “Balsemaão” faleceu após queimaduras de segundo grau e “Femen” ficou tão triste com esse acontecido que também partiu ainda jovem e todos esses gatos ela sepultou no seu quintal e mandou construir pequenas lápides colocando no frontispícios o nome de cada um deles moldados em ferro. 

     Minha bisa faleceu no cair do século XIX, 1899, e no mesmo dia em que ela suspirou pela última vez também suspiraram 4 gatos restantes, abatidos pela saudade e compaixão, aqueles que ela mais adorava “Estrelinha”, “Aurora”, “Don Juan” e “Renovação”  que a seguiram até o fim e ela estabeleceu que fossem sepultados junto dela, no cemitério da Paróquia, e fossem colocados na lápide do seu túmulo bustos de bronze de cada um deles e também um busto que a representasse a sua pessoa com um livro de poemas em mãos. O que foi realizado. -É isso, senhor mediador o que tinha a narrar e assim concluo meu conto deixando também uma reflexão, um ponto de inflexão, que reza o seguinte: quem ama a poesia morre abraçado com ela.