Cultura

A ALMA DA SENHORA AVENIDA SETE, CAP 2: DECADÊNCIA LADEIRA DE SÃO BENTO

Este é um livro de crônicas escrito pelo jornalista Tasso Franco com 50 capítulos leia em cultura e no www.wattpad.com
Tasso Franco ,  Salvador | 09/05/2024 às 08:34
A decadência da Ladeira de São Bento
Foto: BJÁ

   A Avenida Sete se inicia na Ladeira de São Bento onde estão situados à direita o prédio SULACP e a esquerda o antigo edifício da Companhia das Águas do Governo do Estado, na atualidade, este último ocupado por moradores de ruas. A princípio, se fizermos um comparativo com o que existia na época de inauguração da avenida, em 1915, à direita se situava o Hotel Sul Americano inaugurado em janeiro de 1896 (erguido no local do antigo Hotel Bonau)- e naquele início do século XX já existiam os bondes sobre trilhos puxados a burros com ponto em frente ao Sul Americano na esquisa da São Bento de Baixo (atual Carlos Gomes), edifício com dois andares e dezenas de janelas nos pisos térreo, primeiro e segundo cujo acesso se dava por uma escada de dez batentes, portão de ferro preso a dois portais com lampiões encimando-os, um segundo portão lateral (o principal, instalado na ladeira) e muro com grade em ferro que se estendia ladeira acima; e a esquerda existia um outro hotel, o Paris, casarão com dois andares e um sótão, e que depois se mudou para a Rua Ruy Barbosa e este último era conhecido, até a década de 1970, como o "hotel dos prefeitos".

   Esses dois hotéis instalados no início da Sete, antes mesmo da rua ter este nome, fizeram história por serem os mais chiques da cidade no século XIX e início do século XX (ambos vão desaparecer na década de 1930), por possuírem acomodações luxuosas, restaurantes e música ao vivo - no Sul Americano acontecia o "Revéillon" mais glamuroso da cidade -  e porque Salvador neste momento de sua história o centro histórico era o local que abrigava o Palácio do Governo, a sede da Prefeitura e Câmara, Casa do Senado e Assembleia Legislativa, o comércio da Rua Direita do Palácio, templos religiosos, consultórios médicos e dentários, escritórios de advocacia, portanto, por onde circulavam os poderosos e os endinheirados.

   Esses hotéis hospedavam os coronéis da Chapada Diamantina e da Região do Cacau, considerados os mais ricos e opulentos do estado, os artistas que vinham se apresentar nos teatros e nos cinematógrafos, as vedetes e os estrangeiros. E toda vez que se hospedavam traziam um séquito. Ademais, era no São Bento de Baixo, que se concentra os "cabaret" com polacas e francesas, em especial na "Pensão Americana" - repleta de "iankes" nas guerras mundiais - e à montante do Paris, havia o Café Cantante, área alegre onde funcionaram, posteriormente, o Cine Guarani, "cabaret" e "dancing" Tabaris, Restaurante Cacique e hoje é o Cine Glauber Rocha

   Em 1915, quando Seabra inaugurou a Sete, que originalmente teria o nome de 2 de Julho em homenagem a guerra da independência da Bahia, a Ladeira de São Bento já era calçada desde 1880, houve um aterramento na junção com a Castro Alves (na depressão chamada ‘barroquinha’ para a implantação das linhas de bondes puxados a burros (os bondes a burro para a Graça começaram a andar em 1870) e depois dos elétricos em direção aos bairros dos Barris e Graça.    

   Uma explicação aos nossos leitores para melhor compreensão do texto. O Caminho para a Vila Velha do Pereira (também chamado Caminho do Conselho) saía do Porto da Barra e ia até a praça onde foi fundada a cidade por Thomé de Souza, onde se situam, hoje, o Elevador Lacerda, a Câmara de Vereadores, Prefeitura e o ex-Palácio Rio Branco. A Rua Direita do Palácio (antiga dos Mercadores, hoje, Chile) e transversais e a Misericórdia subindo para Sé e Pelourinho eram as mais movimentadas do comércio e serviços. Seabra e Arlindo Fragoso, o engenheiro responsável pela obra, no plano inicial programaram para que a Sete saísse daí (Plano idealizado em 1910 por Jerônimo Teixeira de Alencar Lima), mas desistiram porque essas áreas já estavam consolidadas e alargadas, a Chile melhorada em 1902 quando recebeu este nome, e a praça Castro Alves (antiga Praça da Feira, Largo da Quitanda, praça do Teatro (São João) hoje, também consolidadas e ventiladas. Então decidiram começar a Sete no sopé da Castro Alves (com o nome do poeta Antônio Frederico de Castro Alves [1847-1871] este nome desde 1888), o teatro São João pegou fogo em 1923 - no final da bifurcação (Y) em tridente, descendo a praça pela perna à esquerda toma-se rumo a Barroquinha; e a direita à Nova de São Bento (Carlos Gomes) que, abrigava o prolongamento do fluxo de pessoas e outros da Ladeira da Montanha.

  Explico isso pra mostrar que a Sete não nasceu do nada e estava enquadrada dentro de um contexto, na época a Nova de São Bento era mais luminosa, glamurosa, que era, no original o Caminho de Baixo da Vila Velha onde adiante tinha as aldeias tupinambás da Gamboa de Cima (Passeio Público, depois, Zoológico) e de Baixo; no Caminho de Cima, aldeias no São Bento e na Piedade.

   Feitas essas explicações voltemos a Sete atual, 2024. O prédio da Companhia das Águas - que imagino ainda seja do governo do estado - e onde foi afixada a placa azul retangular (log 0143) que marcava o início da via virou um pardieiro ocupado por moradores com portaria em gradil lacrada. Fui buscar informações no interior do prédio e um vendedor de meias e bonés que atua nas imediações com sua tenda das confecções me chamou e disse: - Não entre, nem se arrisque. - Perguntei por que e ele respondeu: - Neste prédio há de tudo e moram muitos ladrões e batedores de carteiras que atuam no centro. Segui minha jornada: ao lado está a loja "Brinco D'Avenida" - prédio cinza de dois andares e seis janelas, onde no térreo funciona uma casa de apostas (lotinha) e há uma placa de aluga-se (arriba sala de 120 m quadrados) e o fone 99608-814; depois vem um prédio grená onde funciona a loja "Vem Pra Moda", de confecções, prédio bem conservado e habitado nos andares superiores; depois vem um prédio de 3 pisos - "art déco" - amarelo e grená que está fechado, por sinal uma construção bem conservada e belíssima; em seguida a loja da "Yasmin" -  flores e decorações; depois um prédio verde de 3 pisos, gradeado nas 9 janelas, fechado; adiante uma loja de retalhos (tecidos) que funciona um prédio amarelo de dois pavimentos e seis janelas com grades de ferro (o que denota ser residências); em seguida o Edifício Executivo com vários pavimentos comerciais e onde se situa no térreo a mais movimenta galeria onde são vendidas joias, creio, o melhor local para atender noivos, presente para namoradas e dia das mamães. Estão neste corredor bem estruturado as lojas: "A Favorita", "Brandão", "Lidy", "Roseane", "Florence", "Rúbia", "L.S. Joias", "Thait"; e mais a "InfortJet" recarga de cartuchos, uma loja de crédito consignado e uma lanchonete.

  Certa ocasião, já casado com a madame Bião, completava 20 anos de núpcias, ela decidiu que eu deveria usar uma aliança. Obviamente, concordei senão poderia ser posto no olho da rua. E sugeri: - Vamos no Edf Executivo da avenida que lá tem de tudo em joias. - Ela me olhou e disse: - Vai tu. Bem, lá fui eu pesquisar qual a loja que tinha o melhor preço e voltei pra casa feliz da vida com várias amostras. Quando cheguei falei para a madame: - Eis, aqui - mostrei os catálogos que trouxera comigo. Ela olhe com cara de poucos amigos e respondeu: - Vou comprar nossas alianças é no Barra, na Florentina. E assim aconteceu. 

  Diria aos meus leitores que nas lojas do Executivo tem todo de bom e do melhor inclusive pra revenda e pela quantidade de lojas e mostruários vende bem. Perdi em não usar uma aliança daí.

  Depois do Edifício Executivo vem o da "L.C.Costa Joias". É um prédio estreito, charmoso, com a loja em baixo e dois andares com janelas e portas arriba, gradeados, lindo. 

  Adiante, o Edificio Oxumaré onde abrigava nos últimos andares (sexto, sétimo e terraço) a sede da Secretaria de Comunicação da Prefeitura de Salvador, entre 1997/2004, quando fui secretário e ZédeJesusBarerêto, o subsecretário. O gabinete do secretário era na sede da Prefeitura, assim como o Departamento de Publicidade, e Barrêto comandava a equipe no Oxumaré onde ficavam os repórteres, fotógrafos, laboratório, a redação propriamente dita. Neste período, no térreo do Oxumaré funcionava uma galeria com várias lojas de jois e outros, um restaurante e bar, com uma atividade intensa de comércio e serviços. Barrêto conta que as alianças de um dos seus casamentes encomendou ai. Nos dias de São João e Natal, a Secom através do servidor Almir Miranda, organizava festinhas com troca de "amigos-secretos" e confraternizações. Eu não perdia e "boca-livre" brindando com os servidores no terraço desfrutando uma vista esplendorosa da Baía de Todos os Santos, na área do Forte do Mar, vendo-se adiante até as luzes de Itaparica. 

  Tudo isso acabou. A Secom se mudou para o prédio Ranulfo Oliveira, da ABI, na Sé, o movimento de clientes na ladeira caiu, as lojas fecharam e o Oxumaré é um prédio com escritórios diversos de advocacia e contabilistas, e ainda sedia uma repartição da PMS.

  Depois do Oxumaré havia um prédio em ruínas, antiga "Casa do Esperanto" onde existiu um colégio Mariano e a Biblioteca Anisio Teixeira. Este prédio foi reformado com recursos do Ministério da Justiça, pelo IPHAN, entre 2012-2022, onde funciona a nova biblioteca Anisio Teixeira. Nós falaremos dela em separado porque vale uma crônica só dela. O busto do polonês Lazar Ludwig Zamenhof, o filólogo criador do esperando uma língua que seria falada por toda humanidade foi preservado na requalificação da Sete, governo ACM Neto, em 2020, e mantida na pracinha de São Bento, em frente a basílica. O esperanto é igual ao estudo do tupi pouca gente, hoje, fala e escreve. O que diz a placa em esperanto: "Busto skurptita e, 15/12/1971 de la municipa estraro de Salvadoro.dum la administrado de la Urbestro Clériston Andrade restaurita kaj reinaugurita sub la urbestrado Antonio Carlos Magalhães Neto, Salvador Oktobro 2016".

  Na pracinha de São Bento há um jardim com bancos e os moradores de rua são os donos do local sobretudo nas proximidades da Ladeira das Hortas, que vai dar na Barroquinha, e neste largo já funcionou o Hotel São Bento, que conheci e até andei por lá na década de 1960/70 quando trabalhei no "Jornal da Bahia" e no "JB", tornou-se um valhacouto de ladrões e hoje só tem as ruinas tamponadas de tijolos. E, no platô, está o convento, biblioteca, colégio e basílica dos beneditos, ordem que chegou a Salvador, em 1581, e ocupou a área da aldeia tupinambá do mayoral Ipiru (tubarão).

  Agora, vamos subir a ladeira pelo lado direito. Com o alargamento da São Bento de Baixo (Carlos Gomes, década de 1930), o Hotel Sul Americano e o anexo Cine Ideal foram abaixo e no local nasceu o prédio SULACAP, inaugurado em 1946, ainda hoje, 78 anos depois, em perfeito estado, tudo funcionando, majestoso, com área interna onde existe um jardim e juma única loja comercial (de cabelos orgânicos com atendente Vitoria, poeta) e seis andares de escritórios - entre eles, Lab de Prótese, Waldemar Alcântara (adv), Rosimeire Dalva (adv), Lurdes Imóveis, AC Consultoria Previdenciária, AJUPC - Associação dos Policiais; Arierom Representações; Mega Hair Center, Ótica Shalom; etc. Na parte externa há uma loja de crédito (Help) e uma ex-banca de jornais que vende drinks, cerveja e água. Subindo há o prédio São Bento (residencial) com portaria fechada; em seguida, um prédio em ruinas onde funciona no térreo o Restaurante Rei do Churrasco (onde havia Cine Ideal); adiante um estacionamento da Prefeitura (que servia a Secom); logo depois o Edifício Bahia de Todos os Santos (misto residencial e comercial) com a loja do térreo fechada; e adiante subindo uma escada o Edifício Itaípe, o maior deste local, onde funciona a Galeria Itaípe, que já foi muito glamurosa e ligacação com a Carlos Gomes, e hoje tem algumas lojas e prestadores de serviços, um sex shop, a "Martins" - autorizada em eletrodomésticos, a "Ótica Estrela" e uma loja de brinde com canetas e joias. Este prédio e um misto de residencial e comercial.

  Adiante, a loja Sedução - pronta entrega - e quase de testa com a lateral do São Bento, 4 lojas fechadas. Uma delas pegou fogo, em 2023.

  O fluxo maior de pessoas na Ladeira do São Bento se dá a partir do final da Praça Castro Alves, descendo no calçadão em frente ao Glauber Rocha, pelo lado esquerdo. Portanto, é nessa calçada que ficam os camelôs e a quantidade varia de acordo com a época do ano. Como estamos em maio, mês de chuvas, a quantidade é menor e em nossas visitas vimos um vendedor de objetos de plásticos, uma vendedora de tesouras, uma de meias, um vendedor de bonés, um de calças, e nas proximidades do Oximaré dois outros. Neste local há o mercador de óleo de peixe elétrico Gilmar Deogrades Soares (Dr Gilmar, apelido), mas não o encontrei. No largo, há vendedor de suco de laranja, um carrinho de "hot-dog" e uma vendedora de churrasco e colado no gradil no São Bento, onde ficava um vendedor de sachê de eucalípto (velho amigo) há uma vendedora de unguentos. 

  Do lado direito da Ladeira não há ambulantes, somente uma senhora na entrada da galeria Itaipe que usa a plaqueta (compro ouro, prata e relógio 98875-1815).

  Assim é a ladeira de São Bento, em decadência. Quando a cidade na época da Colônia se ampliou para o Sul, a Porta de Santa Luzia (na altura do Edifício Bráulio Xavier) desapareceu e surgiram as Portas do São Bento, desde a inauguração do convento (sec XVII) que também se abriram adiante pois não eram trancadas, mas tinham esse nome simbólico.

  Se olharmos para 1915 e hoje o quadro é de chorar. A decadência se acentuou sobretudo a partir dos anos 1990 e ainda há os comerciantes e profissionais liberais resistentes. Felizmente.

  Não há uma causa única e sim várias a partir do momento em que a cidade começou a deslocar o centro do poder para a região Norte com a implantação do Centro Administrativo da Bahia (1972) e a Assembleia Legislativa (1983) e iniciaram a implantação dos grandes shoppings a partir da década de 1970 (Iguatemi, o pioneiro na área Norte, 1975, hoje Shopping da Bahia); o Itaigara, Pituba, 1980; Barra, zona Sul (1987); o  Salvador (2007)), Paralela (2009), até mesmo no centro (Piedade, 1985; Center Lapa, 1996) e o fluxo dos clientes mudou de direção decaindo de vez a Rua Direita do Palácio, ampliando-se a violência e uso do automóvel.

   Essas mudanças foram significativas. Quando a Sete foi inaugurada (1915) o transporte nessa via era o coletivo, bonde elétrico, com uso de poucos veículos particulares (também elétricos). Os bondes deixaram de circular na década final de 1950 e os ônibus (marinetes) e automóveis tomaram conta das ruas. Na década de 1970 quando surge o Shopping Iguatemi (1975), o automóvel já era muito usado, e os consumidores endinheirados se mudaram da Chile e da Sete. Isso foi fatal e só fez se acentuar com o tempo e o surgimento de novos shoppings.

  A Sete - no trecho do São Bento - foi o que mais sofreu e esta área nunca mais se levantou.