Cultura

O HOMEM VERDE DO GINÁSIO, 17: A FAMILIA QUE COMIA BOTÕES NA SECA DE 30

Narrativa do representante da comunidade das Abóboras e adjacências na aldeia de Serrinha, ano 1960
Tasso Franco , Salvador | 13/12/2023 às 07:31
Botões na mesa para matar a fome
Foto: Seramov
  
  Prólogo:

  O conto narrado por Miguelão do Saco causou vivo interesse n’algumas pessoas aquiescendo, inclusive, que já tinham ouvido falar neste “Pote de Ouro”, mas não sabiam dizer onde se encontrava e Melinho, experiente homem da labuta no campo. ponderou que o melhor da narrativa fora o final, o verso em que Miguelão deixa bem claro que riqueza fácil é coisa do Satanás, e  sendo homem temente a Deus como tal, trabalhador do raiar do dia ao anoitecer, só tinha ganhos para sustentar a família e sequer conhecia a capital da Bahia, lugar que, dizem, há um mar e ainda tinha fé em Cristo que um dia colocaria seus pés nas águas do oceano, mas, o certo mesmo é a pessoa trabalhar no seu oficio e esquecer esse negócio de “Pote de Ouro”.

  “Eu concordo com Melinho - arguiu em aparte Ivan 3 Noites - que o negócio é o sujeito trabalhar, mas, com astúcia, com inteligência, pois, só assim sobe na vida e dou como exemplo, eu mesmo, que embora não sendo fazendeiro, porque fazendeiro, filho de fazendeiro, neto de fazendeiro, esses já nascem ricos, desenvolvi uma técnica de dormir pouco o que me permitiu dar vários plantões nas casas de saúde e ganhar mais dinheiro. Com isso já coloquei meu posto de saúde para curativos no Recreio e estou me dando bem, também, como empresário”.

   Em seguida, usando da palavra, a senhora Jana Pinharada afirmou que as pessoas só ganham dinheiro empreendendo, tendo seu próprio negócio, e “vocês tão vendo aí os barnabés da Prefeitura, entra ano e sai ano e seguem lenhados, enquanto Sêo Trasybulo começou como uma farmacinha e, hoje, tem um sobrado onde mora com a família e embaixo, no térreo, sua casa de negócios com a venda de remédios e a aplicação de injeções e dizem que é um homem rico. Esse negócio de “Pote de Ouro” é conto da carochinha o sujeito ouve o bicho cantar e não sabe onde, nunca acha nada, mas uns espertos aqui na nossa aldeia que queimam armazéns de sisal - dizem que de propósito - e recebem um seguro do banco os deixam ricos, é o chamado ouro do fogo”, conclui.

   - Eu até concordo com a senhora Pinharada, porém, tem coisa da sorte, do dedo divino - arrematou Esão - e vocês vejam que agora mesmo fizeram uma rifa de uma geladeira a gás que é um produto caro e que vende na Loja de Sêo Juca Campos e quem ganhou foi dona Dodinha de Sêo Demar, acertando o nome de Ivone num raio das moças de 100 nomes, mas eu também não acredito nesse negócio de “Pote de Ouro”, ainda que se tivesse uma expedição organizada por um homem sério como Sêo Cloves Nicolau ou por Sêo Kunbá Nunes eu me alistaria para ir cavar.

    Toquei mais uma vez a sineta e abri a palavra para quem quisesse falar sobre um novo conto e disse que essa história de potes de ouro, baús de moedas e colares de ouros, algumas delas são reais e aconteceram na Europa, a ponto de, na França, um rei Merovíngeo ter enterrado um tesouro e desviado um rio para esconder uma fortuna e até hoje os aventureiros o procuram, assim como investigam vários navios que naufragaram com muito ouro e prata, o mais famoso deles, o Titanic, mas é muito difícil ir no fundo do mar pegá-los, nem Berduega, fundador do açude da Bomba, que passa meia hora debaixo d'água pescando, seria capaz, e olhe que não usa nenhum aparelho para tal façanha.

     Ergueu-se, finalmente, o camarada que havíamos apelidado de "Cara de Cotia" – o sonso - para narrar seu conto e era, de fato, um tipo estranho, em pé, miúdo, porém, nem tanto, desses que o povo chama de “saruaba” - pele clara, olho tipo de vidro verde, bigodinho sex estilo escovinha com proeminentes costeletas a Elvis Presley nas laterais rosadas das faces, o qual disse que falaria representando as comunidades das Abóboras, Alto da Mangueira, Guanabara e adjacências sobre uma família da Serra, que, durante a seca de 30 que assolou a aldeia, comia botões.

   Houve suspiros de admiração quando ele disse o dito, a senhora Zabelinha pôs a mão na boca em forma de concha e arregalou os olhos e dona Agripina, proprietária da taverna, também ficou curiosa. O cavalheiro em destaque disse que se chamava de batismo Merrinho Alves Umbuzeiro, nascido em 10, portanto passando um pouco dos 50 anos de existência, descendente da família Umbuzeiro, natural do povoado do Setor, “e que seu pai, o velho Natanael Alves Umbuzeiro veio morar na Serrinha na seca de 5, quando o intendente era Joaquim Hortélio da Silva (1904/1907) época em que morreu todo bicho que ele criava em sua roça no Setor - vacas, bodes, porcos, galinhas e foi uma coisa triste e naquela época já tinha como esposa, dona Mariá filha do finado Querdó, e meus dois irmãos mais velhos haviam nascidos e eram pequenos, o Aguinaldo, que todos vocês conhecem como Aguio relojoeiro; e a Carmelita, Nita casada com Sêo Bero”, e comentou que nasceu na Serrinha e estava vivo e gozando de plena saúde, tratorista e topógrafo a se aposentar do DMNER.

    Feita essa breve apresentação assim c começou a narrar seu conto propriamente dito: “Quem salvou pai foi essa iniciativa do intendente Joaquim Hortélio - que Deus o tenha na sua glória eterna - ao construir um açude pagando os trabalhadores uma parte do devido em cruzeiros velhos e a outra parte em abóboras, diria a maior parte com essa verdura, que mandou importar da Feira de Santana, ele que ela natural da Feira, e pai veio com mãe e os menores para morar numa rancharia de Sêo Aras e deu duro cavando o tanque com pás e picaretas, ele e muitos outros homens, quase todos retirantes da seca, e mãe com o passar do tempo, obra concluída e tanque cheio d’água, porque Deus tarda mas não falha, e vocês sabem que esse açude ficou conhecido como Tanque das Abóboras e hoje está se transformando num bairro, e quando a fartura voltou com as chuvas, mãe começou a vender mingau num ponto da feira livre e pai, graças a Deus, conseguiu um encosto na Intendência como guarda, e isso é muito importante ressaltar porque o melhor emprego do mundo é o público, porque tinha dia que pai ia fazer umas capinas de ganho aqui por perto, na Guanabara, no Alto das Mangueiras, lá não ia na Intendência e ficava tudo bem, e foi assim que ele comprou um terreninho aqui nas Abóboras onde até hoje nós moramos, digo, eu e meu irmão mais velho, ambos casados com nossas famílias em casas próprias e continuamos nesse local, porque pai e mãe já seguiram para a morada do céu”.

  Como a história estava muito macilenta toquei a sineta e perguntei sobre os tais botões e a família que fazia uso deles.

   “Estamos chegando nela, meu atencioso jornalista, porque vocês todos sabem, assim creio, que quando chegou em 30 deu uma seca mais terrível do que a de 05 e foi de 30 a 32, dessas secas que o povo come tudo que é bicho do mato e de quintal – preá, calango, codorna, tatus, teiús, galinhas, peruas, galos, cobra de duas cabeças, rolinha, sabiá, papagaio de cria, etc – e passamos uma fome brava e quem me salvou foi doutor Getúlio Vargas, o pai dos pobras, que resolveu fazer a estrada Transnordestina em direção a Fortaleza e eu que já estava com 20 anos e vivia de biscates, do corte de ovelhas para vender a quilo no mercado, consegui uma vaga de ajudante de tratorista no DMNER para azeitar eixos e rodas, e na Serrinha, quando começou essa estrada em 32, dai surgiu o bairro da Rodagem, nunca ninguém tinha visto na vida um avião e viu, o engenheiro do DMNER usava esse avião para vim da capital, um trator parecia um monstro e eu me coloquei nessa oportunidade única e caída do céu e graças ao bom Deus fui aprendendo o oficio de tratorista e topógrafo e hoje estou na boca da aposentadoria e sei planear uma estrada, fazer um desnível, uma manobra, cubar uma terra, realizar um projeto de loteamento, e para iniciar meu conto o que se deu na seca de 1930 foi que uma vizinha nossa nas Abóboras, dona Mucunzá Soledade tinha dois filhos com Sêo Ananias Ferreiro, que tinha sua tenda de produzir grades e escasseou os pedidos, era bom pra fazer um protão de ferro com trançado em x, e certo dia uma das meninas deles foi vista roendo uns botões de um capote dela e a danada da menina que vivia a chorar de fome, parou de chorar e pediu um copo d’água barrenta e dona Mucunzá ficou preocupada que ela tivesse uma dor de barriga, mas ela disse que não estava sentindo nada, e queria era mais botão, e foi assim que o crente Ananias, crente de andar com a bíblia debaixo do braço para ir ao culto da 1ª Igreja Batista, foi até o Armarinho Ciclamen de Sêo Zefredo e comprou uns botões bojudos de galalite e outros com cobertura de pano, e resolveu por ordem sua todo mundo sentar na mesa e comer os botões e foi assim que enfrentaram a seca, eram botões com café, botões com carne de bode, botões no ensopado, e como fui testemunha ocular de tudo o que estou a narrar, vi com esses olhos que um dia serão sepultados no cemitério do padre, ninguém ficou doente a procurar o posto de saúde de doutor André, que era o único médico de nossa aldeia na época, a aviar um medicamento na farmácia de Sêo Cosme, e está tudo vivo hoje em dia, salvo Sêo Ananins e dona Mucunzá que já faleceram, mas, ambos morreram de velhice e eu atesto e dou fé no que falei porque a filha deles, a Engrácia, foi minha paquera e só não namorei a sério com ela porque me apaixonei pala Nalva, com quem estou casado e feliz até hoje, 

  - Então, pra concluir coevo jornalista, que lição podemos tirar desse fato: se a riqueza fácil é coisa do Satanás com seu “Pote de ouro”, que aparece e desaparece/ A fome leva o povo a comer papelão com sal e botões/ Antes, assim, do que morrer do flagelo/ E, quem pouco tem que guarde, economize, armazene/ Pois a seca não tem dia nem ano de chegar/ E pode voltar ainda pior/ E dizem os sábios que a terra está ficando a cada dia mais quente/ E se não pararem de maltratá-la vamos morrer todos torrados, na Serrinha e na China/ Portanto, já que se falou no Titanic, quando aquele gigante do mar afundou/ A água já cobrindo os pés de quem estava dançando num salão/ Alguém assim falou: Enquanto a música tocar, continuamos dançando/ E eu digo que, enquanto houver botões ninguém morre de fome.