Cultura

ANDARILHO DA CIDADE DA BAHIA, 33: CATHARINA PARAGUAÇU, A MÃE ESQUECIDA

A mulher mais importante da Bahia sequer tem nome na praça da Graça, bairro que viveu e praticamente fundou e onde está sepultada na igreja de NS da Graça
Tasso Franco ,  Salvador | 10/12/2023 às 11:25
Catedral de São Vicente, Saint Malo, França, onde Catharina foi batizada em 1528
Foto: OG
   Comemorou-se em Salvador, recentemente, os 495 anos do batismo da tupinambá Catharina Paraguaçu com missa no mosteirinho da Graça pelo arquiabade dom Emanuel d'Able.  Para muita gente pode não ser relevante esse evento religioso, mas é muito importante para relembrar a história da Bahia de uma personalidade que só é lembrada no 2 de julho, como a cabocla dos festejos do conflito da independência da Bahia

  Catharina, no entanto, é muito mais do que isso, esse lado folclórico e quase místico de uma cabocla simbolismo de uma raça quando, a rigor, era uma nativa tupinambá que se juntou a um português Diogo Álvares - até hoje, sem uma identificação de que localidade era originário e morou no que se constituiu Salvador entre 1509/11 e 1577, a mais antiga família brasileira, como diz Francisco Antônio Doria em "Caramuru e Catarina - ledas e narrativas sobre a Casa da Torre de Garcia d'Ávila", dominadora de "três dos cinco século de existência"

  No século XVI e princípio do século XVII - os Caramurus, Moréias e Moribeas; nos séculos XVII e XVIII - Ávilas da Casa da Torre, os Aragões e os Guedes de Brito. Segundo Doria todos "parte de um mesmo clã, dos descendentes de Caramuru () ...a gente que mandou no Brasil desde o século XVI"

  "Foram alcaides mores, comandantes de armas, vereadores em Salvador e irmãos de maior condição da sua Santa Casa de Misericórdia () ,.. quando faltava o governador nomeado pelo rei de Portugal, exercia a governança da terra durante a interinidade", comenta Doria

  O jornalista e teatrólogo Adroaldo Ribeiro Costa lembra em artigo intitulado “O Teatro e o 2 de Julho” que “terminada a pugna imensa, retornou o nosso Teatro São João o papel que lhe cabia na vida cultural, social e politica da Bahia” e cita, as festividades alusivas a maioridade de Pedro II e a fundação da primeira escola normal do país, ambos de 1840. “Até que, em 1846, 23 anos decorridos desde a vitória sobre o general Madeira, o Dois de Julho irrompe tumultuado pelas amplas e belas instalações do Teatro São João”

  Segue a pena de Adroaldo: “Já durante o dia, houvera aqueça acesa controvérsia sobre o ‘Caboclo’. O general Francisco José de Souza Soares de Andréa, português de nascimento e brasileiro naturalizado, presidente e comandante das armas da Província, entenderá que chegara a hora de arquivar o velho símbolo da hostilidade contra os portugueses já a essa altura integrados na nova pátria deles nascida. Melhor seria substitui-lo por outros, a ‘Cabocla’, lembrança de Paraguaçu e de tantas índias ternas imagens do amor que fundira as raças. Mas, os brios patrióticos reagiram: o ‘Caboclo’ teria que sair, custasse o que custasse. Soares de Andréia, prudentemente, cedeu. E os dois símbolos passaram, então, a sair juntos”
   
  Assim, a partir dessa data até os dias atuais, esses dois carros alegóricos são as expressões de regozijo popular dos festejos cívicos ao 2 de Julho, sobrepondo-se aos heróis esquecidos e os mais citados, Maria Quitéria e Joana Angélica, e louvados durante todo o cortejo até como se fossem santos ou divindades e surgiram, segundo o folclorista José Calasans Brandão da Silva, desde 1860, quando foi inaugurado o “barracão da Lapinha, ali ficam guardados os carros emblemáticos do caboclo e da cabocla”.

  E surgiram as expressões “Toque o Carro para a Lapinha” – quando se quer dizer que algo precisa ser feito de qualquer forma, que não se pode parar”; e “Chorar no pé do caboclo” – a disputa pelo local onde se instalaria o monumento ao 2 de Julho, se na Lapinha, no Campo da Pólvora ou no Campo Grande, vencendo este último, o antigo Campo de São Pedro, e aqueles inconformados que “fossem chorar no pé do caboclo”. Hoje, usa-se, expressão que se usa para tudo, até para derrotados políticos e esportivos, casos de infortúnio amorosos e outros

   Essa representação não consensual de que o “Caboclo” representa Diogo Álvares, o Caramuru; e a “Cabocla”, Catarina Paraguaçu, é bem interessante porque Diogo era português de origem ou ‘galego língua’ (espanhol da Galícia); e Catarina era tupinambá, de nome tupi ‘quayadin’. Nenhum dos dois era caboclo e sim seus filhos e outros descendentes da miscigenação entre portugueses e tupinambás; africanos e tupinambás. Mas, o que vale é o que a população cultua e na concepção popular a “Cabocla” é Catarina; e o “Caboclo”, mais identificado como um caboclo qualquer do que com Diogo Alvares

  E quem foi Diogo Álvares, afinal?

  Personagem esquecido da história da Bahia, deste português chamado Diogo Álvares descende quase toda a classe dominante baiana durante o Brasil Colônia e Império e mesmo na República Velha. Ele teve vários filhos e filhas, duas delas com Catharina: Genebra Álvares e Apolônia Álvares.

Há poucos documentos em fonte primária sobre Diogo: um deles data de julho de 1526 quando D. Rodrigo de Acuña em diário de bordo - transcrito por Inácio Accioli - fala de Diogo e de "estar na terra havia uns 15 anos; e outro, de 13 de março de 1531, quando a esquadra de Martin Afonso de Souza aporta na Baía de Todos os Santos e Pero Lopes irmão do comandante da frota em seu diário escreve que "nesta baía achamos um homem português, que havia 22 anos que estava nesta terra, e deu razão larga no que nela havia"

  Há, ainda, do donatário Pero de Campo (de Porto Seguro) que o cita em carta ao rei de Portugal "como um galego língua" que "daqui foi (Porto Seguro) em um caravelão à dita Bahia que se fora daí com uma nau de França havia dois ou três dias". Este último documento (único que ainda existe no original) deixa claro que Diogo era português do Norte de Portugal vizinho a Galícia (daí o termo galego língua) - sabe-se que os portugueses e galegos desta região falam até hoje quase a mesma língua. Mas, não natural de Viana do Castelo a terra de Pero de Campos

  Até hoje a dúvida continua em aberto e eu já estive em Viana do Castelo (Portugal) e Ponte Vedra (Espanha) tentando encontrar alguma pista e nada consegui; como também já estive em Saint-Malo, na França, donde saíram as expedições de Giovanni Verrazano e Jacques Cartier, creio, que foi numa dessas que Diogo foi deixado na Bahia para fazer o comércio de Pau Brasil

  Continuo pesquisando e há, ainda, uma remota pista, mas, factível, de que pode ter participado da viagem de Binot Paulmier de Gonneville que iria para as Índias e diante tormenta vagou pelo Atlântico e foi parar com sua nau L'Espoir, em 5 de janeiro de 1504, no litoral de Santa Catarina, em São Francisco do Sul, na terra dos nativos Guarani (Carijó)

   Em livro organizado por Silvio Coelho dos Santos, Analiese Nacke e Maria José Reis (Editora da UFSC, 2004) cita-se que era comum comerciantes e navegadores de Honfleur, Dieppe e Rouen estabeleceram relações com Portugal ()...as idas de embarcações dessas cidades para Lisboa eram frequentes" e, há, também a citação que, após 6 meses em São Francisco do Sul e consertadas as avarias da nau, Gonneville resolveu regressar a Honfleur, levando o jovem Içá-Mirim (um dos filhos do rei de Arosca, Carijó) e outro chamado Namoa
 
  No regresso a Honfleur comentam que, no Nordeste do Brasil, fizeram paradas para abastecimento de víveres e de produtos comerciáveis. Não há uma referência se essa parada foi na Baía de Todos os Santos e se Diogo fazia parte dessa exposição

  O certo é que Namoa morreu na viagem e Içá-Mirim foi batizado em Honfleur e, em 1521, com o nome de Essomericq Binot Paulmier e se casou com uma parenta do navegador (diz-se com sua filha) com quem teve 14 filhos e viveu até 1583, alcançando mais de 90 anos de idade

  Binot havia prometido ao mayoral Carijó pai de Içá-Mirim que levaria ele de volta a São Francisco do Sul. Mas, com sua viagem foi um fiasco (dos 60 ou mais homens embarcados em Honfleur) só voltaram 28, os financistas não bancaram uma nova viagem às Índias e muito menos ao litoral de Santa Catarina, na época, sem qualquer riqueza

  Voltando ao casal Diogo e Catharina, são seus descendentes: Genebra Álvares e Apolônia Álvares. De Genebra descendem a Casa da Torre, os Ávilas e os Pires de Carvalho e Albuquerque; os Aragões e Monizes, os Moribecas - sergipano descendente de Melchior Dias; e de Apolônia, casada com João de Figueiredo Mascarenhas (o Buatacá) - ou cobra fogo descende a Casa da Ponte, segundo Dória, "gente quase tão rica quanto os Ávilas; descendem também alguns Vasconcelos, aparentados a Colombo e aos descobridores da Madeira no século XV"

  Catharina (também grafado Catarina) recebeu esse nome afrancesado quando foi batizada em Saint-Malo, onde morou entre 1527/1531 na casa do navegador Jacques Cartier, descobridor do Canadá francês, em 31 de julho de 1528, numa homenagem a esposa de Cartier que se chamava Catherine des Granges e foi batizada como Catherine du Brezil aportuguesado para Catharina Paragaçu quando retornou ao país, em 1531, e funda uma capela em louvor a Nossa Senhora da Graça, atual bairro da Graça, em Salvador, hoje, uma igreja e mosteirinho beneditino, isso porque, ao morrer, em 1577, doou a sesmaria que foi lhes dada por Dom João III a Ordem de São Bento

  Catarina é uma das mulheres mais importantes da história do Brasil, seguramente, a mais importante da história da Bahia, esquecida, relegada, a fonte onde se banhava abandonada, o largo da Graça que deveria ter seu nome é de um ilustre desconhecido, não existem monumentos nem dela; nem de Caramuru e salva-os o povo, no 2 de Julho que os cultuam com fé e obstinação