Cultura

O ANDARILHO DA CIDADE DA BAHIA, CAP 31: A CULTURA E O CELEIRO DE LAZZO

O Carnaval da Bahia só conquistou o mundo com afirmações da propaganda oficial, mas na real, não
Tasso Franco , Salvador | 26/11/2023 às 10:51
A capoeira, única atividade cultural da Bahia com visibilidade internacional
Foto: BJÁ
   Recentemente, durante o Festival Liberatum, o cantor Lazzo Matumbi expressou o seu desejo de que a Bahia deveria ser transformada no celeiro cultural do Brasil. Ao Portal A TARDE, o artista também afirmou no Dia Nacional da Cultura, que a cultura no Brasil ainda é doméstica, principalmente “na cabeça” de quem a produz

   Segundo o artista, cultura não é somente entretenimento. “O meu sonho é que a gente entenda isso e transforme esse celeiro cultural chamado Salvador, esse estado chamado Bahia, no grande celeiro do Brasil e do mundo. Porque é exatamente aqui onde a gente agrega uma grande história cultural afro-indígena. O que a gente vai precisar agora para mostrar para o mundo?”, questionou no Festival Liberatum

  Usarei esse sentimento de Lazzo como gancho e não saberia dizer se o "doméstico" - a que ele se refere – são os gestores culturais do estado e da Prefeitura e/ou se também englobam os artistas e os produtores independentes, e afirmo que a sua intenção ou sugestão é digna de aplausos ou de uma reflexão - para usarmos uma palavra enjoativa da moda -  mas, na prática não tem qualquer efeito o seu apelo, uma vez que não há um projeto estrutural nessa direção e mesmo que houvesse, a cultura não se eleva por programa ou decreto, e acontece e floresce impulsionada por diferentes fatores, os poderes econômicos de estados, a dinâmica e a força dos agentes e produtores culturais, a qualidade dos artistas e suas obras e outros

  Ora, um estado como a Bahia que passa 11 meses para tomar a decisão de consertar o teto de seu principal teatro e que um secretário de estado tentou garimpar recursos no Ministério da Cultura para uma obra desse porte numa Bahia cujo orçamento geral previsto em lei é de R$36 bilhões/ano, e anuncia-se, tardiamente, uma reforma com investimentos de R$150 milhões que será concluída, em 2025; e o Vila Velha, outro teatro, sendo reformado pela Prefeitura de Salvador, vê-se que imensas dificuldades existem pela frente em transformar a Bahia num "celeiro cultural", ainda mais que possa reverberar no mundo

   Não que estejamos no zero. Há bons projetos em andamento como o Neojibá, o Ballet do TCA e a OSBA – a Sinfônica do Estado – mas ainda são desconhecidos os novos compositores das músicas erudita e da MBP e, neste campo (o do Lazoo) estamos cercados de uma enxurrada de pagodeiros, funkeiros e batuqueiros e se essa tal de cultura afro-indígena, como diz, conseguir algum destaque no Brasil já estaria de bom tamanho.

  Quanto ao mundo, esqueça o nobre cantante, porque a Oriente – China e Índia só para citar dois países da Ásia – com quase 3 bilhões de habitantes - não se sabe nada da Bahia nem, provavelmente, nunca saberá

  Cultura é uma palavra muito ampla e só para compreensão de nossos leitores estão nesse barco além da música e do teatro - já citados - o cinema, o audiovisual, a literatura, as artes plásticas, a dança, as performances artísticas e poéticas de rua, a escultura, as manifestações populares, o folclore, a museologia, a antropologia, a cidadania, a religião, etc, um mundo amplo que a Bahia perdeu o bonde dessa história há muitos anos e agora não tem como acompanhar

   Veja: abriu um Museu Nacional da Cultura Afro-brasileira (MUNCAB) em Salvador com uma expo que já tinha sido exposta no Rio de Janeiro. Ora, por que não se produziu algo local? O que se importou é louvável, admirável, mas, voltando ao pensamento de Lazoo, do tal celeiro baiano, poderia ser eminentemente uma expo-afro-baiana, com tema do nosso celeiro e fontes não faltam uma vez que há “Um Mundo Livre” de informações e banco de dados de Pierre Fatumbi Verger, só para citar um exemplo

   Observem o que diz o indiano Amartya Sen – prêmio Nobel economia 1998 e professor em Harvard - em “Cultura e Cativeiro”: “O mundo chegou à conclusão – de maneira mais desafiadora – de que cultura tem importância. O mundo está, evidentemente, certo – cultura tem mesmo importância. Todavia, a pergunta que se deve fazer é: ‘De que modo cultura tem importância?’. O confinamento da cultura em compartimentos rígidos e separados de civilizações ou de identidades religiosas, adota uma visão bastante estreita dos atributos culturais. Outras generalizações culturais, por exemplo, sobre grupos nacionais, étnicos ou raciais, também podem apresentar uma compreensão extraordinariamente limitada e árida dos seres humanos envolvidos. Quando uma percepção nebulosa da cultura se combina com fatalismo sobre o poder dominador da cultura, pedem-nos, na verdade que sejamos escravos imaginários de uma força ilusória”

   Bem, há uma percepção clara, de que o direcionamento da cultura na Cidade da Bahia está indo nessa direção, do confinamento. O que mais se apregoa é a cultura negra, a música preta, a arte indígena. Há um debate sobre esse entendimento? Não. Salvador é multicultural e jamais será celeiro se assim não for encarada daí que a visão de Lazoo é limitada a campos específicos (e como ele há outros segmentos defendendo esse mesmo ponto de vista) e se formos observar experiências mundiais em que a economia e a cultura andaram juntas, uma empurrando a outra, a espacialidade é fundamental. Em “Cultura Importa”, Lawrence Harrison e Samuel Huntington quando analisaram as situações econômicas e culturais de Gana e Coreia do Sul, em 1990, em comparativos com 1960, quando as economias desses dois países eram assemelhadas, a Coreia emergiu como gigante industrial e cultura e Gana estacionou.

  O que aconteceu? Uma mudança de comportamento em que a cultura – educação, disciplina, organização, etc – ajudaram a Coreia do Sul a emergir, aliado a isso, investimento, trabalho árduo, etc, enquanto o mesmo não se deu em Gana. Hoje, por posto, sabe-se e consome-se muito mais a cultura sul coreana no Ocidente e no Oriente, do que a ganesa, possivelmente até na África. No Brasil e na Bahia, até a década de 2000 não se consumia nada da Coreia do Sul e veja hoje, além de computadores, veículos, máquinas, etc, no campo da cultura há gastronomia, vestuário, literatura infanto juvenil em profusão, etc. Até Salvador, onde as coisas chegam em atraso, já existem restaurantes coreanos e moda coreana a venda. E você conhece algum restaurante ganês?

  Então, voltando ao nosso fio da meada ao desejo altruísta de Lazzo Matumbi, figura queridíssima em Salvador e intérprete admirável, veja que há uma distância imensa para a Bahia se tornar celeiro cultural internacional. Eu vou muito a cidade de Valencia, na Espanha, onde mora um dos meus filhos, e não consigo comer um acarajé por lá, uma moqueca baiana, comprar um livro de autor baiano nas livrarias que são muitas (nem Jorge Amado se acha), um cd da Ivete Sangalo, quase nada existe, salvo, eventualmente, a gente encontrar um grupo jogando capoeira na rua. Ora, pois; pois, aqui em Salvador, perto de minha casa tem um restaurante, na Barra, que serve a paella valenciana, come-se em profusão o arroz valenciano que foi plantado pelos árabes, e acha-se muito da moda espanhola à venda na capital baiana e a Zara, que é galega, vende a larga no Brasil.

  Dei esse exemplo, que parece rasteiro, mas não é. Já fiz esse teste em vários países – Colômbia, Peru, Bolívia, EUA, Canadá, Reino Unido, França, etc – e são pouquíssimas coisas culturais da Bahia, salvo a capoeira. Pronto: está aí o produto cultural baiano mais visto, divulgado e praticado no mundo ocidental. Nunca fui na Coreia do Sul, mas, imagino, que por lá não se encontrará uma obra de João Ubaldo Ribeiro ou restaurante que sirva moqueca baiana. Talvez, encontra-se obras de Paulo Coelho – que não é baiano – e alguma roda da capoeira 

  A capoeira e o Carnaval são os únicos produtos culturais populares de Salvador com alguma visibilidade internacional, a capoeira, mais autêntica; e o Carnaval com um entendimento diferenciado uma vez que ainda prevalece, no exterior, mais o Carnaval carioca (o samba e os arremedos de escolas de samba) do que o baiano, salvo a Lavagem da Madalaine, em Paris, que tem uma cara baiana nagô -  misto de festa do Bonfim com carnaval - mas que não sensibiliza o parisiense nem franceses além Saint Denis. É um evento que tem mais repercussão em Salvador do que em Paris, cidade que é multicultural e, onde, por posto, há um restaurante que serve moqueca baiana. E só. Paris tem milhares de lojas de souvenris e acha-se de tudo da França, de outros países da Europa, da África, mas da Bahia quase zero.

  A missão de transformar a Bahia num celeiro cultural mundial não é impossível, mas improvável. Há, alguns artistas e grupos culturais com alguma visibilidade internacional, diria isoladamente, sem estarem integrados dentro de um projeto nacional que se queira mundial. E a Bahia, isoladamente, não conseguirá isso nunca