Cultura

O HOMEM VERDE DO GINÁSIO, CAP 13: O BARBATÃO VOADOR DA FAZENDA CAPITÃO

Na trovoada o marruá pulou a cerca de roça de Seu Martins Carpina e para se livrar dos raios voou para a fazenda de Dona Nalva
Tasso Franco , Salvador | 16/11/2023 às 08:46
O boi voou sobre o umbuzeiro da roça de Seu Martins Carpina
Foto: Seramov
     Prólogo:

  “Barbatão para quem não sabe/ É necessário explicar/ É boi, é bode, é carneiro/ Que não se pode domar/ Nasce e cresce na capoeira/ Tem região brasileira/ Que chamam de marruá (José Mendonça de Lacerda, cordelista paraibano)
 
   Quero manifestar meu entusiasmo falando como representantes de "O Serrinhense" - jornal que vai conferir prêmios aos melhores contistas - que estamos muito satisfeitos com o que assistimos e até agora, graças as novas tecnologias tudo sendo gravado em fita cassete pelo estúdio FotoImagem, depoimentos que ficarão para a posteridade, e digo-vos que os contos narrados até agora são maravilhosos, de teores fantásticos e humanitários, salvo o do vampiro verde do ginásio supostamente comedor de crianças e, creio, ficamos - e quando digo ficamos é porque estou falando por todos – encantados com este conto maravilhoso conto da bruxa do Regalo que, no nosso entendimento mais parecia uma alma do que uma bruxa, e todos vocês sabem como essas almas - penadas, alegres, pecadora, devassas, voadoras, ciumentas, mesquinhas, etc - acompanham o nosso povo e se a narrativa emana desse ser altaneiro que é o povo, ser impessoal, ser soberano, ser profético, mas, que, na verdade verdadeira, não existe na real, não é com um médico, um dentista, um mecânico, um cozinheiro, e ao mesmo tempo é tudo, pois, abarca a todos, os políticos adoram falar dele, bajulá-lo, citá-lo, mas quando ganham as eleições fogem do povo como o diabo quer distância da cruz, e quando chega um novo pleito eis que o povo é novamente tratado como um deus, torna-se novamente visível, e eu mesmo conheço seu Cosme da Farmácia, seu Titi da Alfaiataria, seu João da Ema da loja de Tecidos e não seu Povo da Farmácia, seu Povo da Alfaiataria, seu Povo da Loja de Tecidos, mas ainda assim o povo é o povo e eles contam mil histórias de almas, e já foi citado aqui por Melinho das almas penadas que se transformam em Nego d'Água do Gravatá, de trabalhadores que morreram na construção do açude e por lá foram enterradas e quando deu-se a trovoada elas acordaram e saíram das tumbas.

   Feita essas observações informo também que a senhora Tereza do Hotel já concluiu o almoço estando prontos e a servir um cozido com todas as verduras que nascem no nosso chão, as carnes e os toucinhos igualmente, e para aqueles que adoram a carne suína serão oferecidas costelas de um baé de roça da Vertente e assim que o próximo orador falar faremos uma pausa de uma hora e meia para o almoço, os sorveste do Itaúna e os vinhos da Bodega Andrade e digestivos de Armazém Lôro. Abro, então, a palavra a quem quiser se pronunciar.

   Apresentou-se, então, um senhor bem apessoado, faces lisas de barba feita a navalha destacando-se um bigode dourado a Barão do Rio Branco, costeletas bem desenhadas, sobrancelhas cheias vasta cabeleira dizendo se chamar Francisco Palmeira Secundo, conhecido por Chico Cabeleira e outras pessoas também o apelidam de Chico dos Couros, nascido no povoado da Bola Verde, a meia légua do distrito da Pedra, e estou aqui – assim narrou – representando a Pedra, a Cabeça da Vaca, o Setor, a Bola Verde e a Limeira todos povoados desta imensa e grandiosa Serrinha que tanto amamos, mas, também estamos a reivindicar a nossa autonomia política juntamente com ações de Sêo Teófilo Oliviera e da sua irmã a brava deputada Nanu, e eu trabalho muito por essas comunidades sofridas e não sou fazendeiro, nem roceiro, mal tenho uma braça de terra da Bola Verde onde mora minha família e onde minha esposa Meridiana colocou uma venda e uma mesa de sinuca e comercializa bobagens de comer e vestir, bolachas, broas e pingas e a gente vai levando a vida como Deus quer e eu me dedico a compra e venda de peles e couros, de carneiro e de boi, e tenho uma equipe com Samuel Bronzeado e Munduca e sua gente que trabalham os couros, curte-os, estira-os, desamassa-os e enfardamos e quando tem uma carga fechada o caminhão de Zitinho vem e leva tudo pra gare do trem pra conduzir a cidade da Bahia, a capital, e umas pontas e outras pelas que sobram fazemos cintos, chapéus, tacas, arreios, gibões, perneiras, selas e vendemos aos roceiros nas feiras da Pedra e da Serrinha.

   Interrompi o orador pedindo que ele aviasse logo o conto, que história, finalmente, iria contar, pois, dona Tereza do Hotel já estava enviando a comida com as panelas sendo conduzidas por Carrinho

   Ora, permita-me contestar sua pressa, nobre jornalista, porque quando falo de couros me arrepio todo, porque é um produto desse bicho sagrado que é o boi e a gente está aqui tudo vivo e em pé graças ao boi, a Serrinha existe por causa do boi, a Pedra também, o Raso, o João Vieira, a Mombaça, a Manga, a Cobiça, o Cajueiro, o Matão, o boi e os vaqueiros que desbravaram esses sertões, não foram os padres nem os juízes – que me perdoe doutor Tamboatá e o padre Demôndaco – e nem professores nem trovadores, tudo veio do boi, do vaqueiro, do carreiro, e eu vivo do boi, nós vivemos do boi, que tudo se aproveita, dos chifres ao rabo, até o berro que serve de inspiração aos aboiadores, e o que vou contar é sobre um barbatão da fazenda Capitão que pertence a Sêo Jovino, já citado aqui por Esão, pois esse senhor tem casa na roça e casarão na cidade, e isso é comum entre os fazendeiros da Serrinha, coronel Nenezinho também tem, Pinheiro da Mota, João Barbosa, Graciliano de Freitas e outros, e esse Jovino que na Bola Verde é chamado de véi Jovino, véi invocado que anda duas léguas da Capitão para ir a nossa venda comprar charutos, uns bodes fedorentos de fumo da Sucupira que ele adora, e quando era época de São João mandava Pedro Carreiro levar uns tocos de aroeira e de pau ferro para as fogueiras juninas e Pedro, conhecido como Chapelão porque usava um imenso chapéu de palha para se proteger do sol, caprichava e levava o que melhor conseguia retirar da caatinga e cumpria a missão com zelo, com denodo, carro cheio, viagem de três léguas compridas passando pelo Escorrego, Bola Verde e pegando um atalho pelo Belo Jardim e por detrás da Cabeça da Vaca chegando a Serrinha em 3 a 4 horas de sacolejos, de comandos que dava as cangas com parelhas de dois bois cada, os tocos bem amarrados na mesa, ele sentado numa pequena área da mesa e às vezes descendo para azeitar o eixo e verificar se os aros de ferro estavam firmes nas rodas e as chavetas nos lugares, ora sendo brando com os animais que sabia de cor e salteado os nomes das parelhas, ora usando a vara fina e comprida com um ferrão na ponta para cutucar as ancas dos bois da frente, os guias, e ele era cuidadoso porque nessa parelha da dianteira havia um marruá que tinha pouco tempo de amanso e fazia dupla com Formoso, este bem treinado, boi de muitas viagens no âmbito da fazenda e nas idas a Pedra e a Serrinha, o tal do marruá ela chamava de Assanhaço, e permita explicar aos senhores e senhoras, que conduzir um carro de bois com meseta de 18 palmos de comprimento e 8 de largo e capacidade para 700 k de carga, quase 1 tonelada, é uma arte, uma das mais difíceis, pois as estradas são esburacadas e com ladeiras, areias e pedras, não são asfaltadas ou cimentadas, e o carreiro tem que ter muita capilogênese, muita sabedoria, e se amparar nos bois da primeira junta, aqueles que se situam junto da mesa e são mais fortes, mais robustos, e que dão o arranque e ao mesmo tempo servem de freio, de esteio, e Pedro Carreiro tinha domínio absoluto com a dupla do carro que comandava, o boi da direita ela chamava Mandacaru e da esquerda Macambira, e Chapelão conversava com eles, dialogava, falava “eia Mandacaru, segura” e ele segurava; “guenta Macambira e ele guentava” ; e os bois do centro, aqueles que dão o ritmo no andar do carro, os moderadores, também era bem treinados, chamados por ele de Rouxinal e Pássaro Preto (Pedro só falava Passo Preto engolindo as letras) e os da canga dianteira, mais ariscos, mais afoitos, tinham as funções de avançarem, mas, claro, dentro do ritmo que era determinado pelo carreiro, que se perdesse esse controle, a carga ia ao chão ou não sairia do lugar.

  Enquanto estava narrando seu conto adentrou ao recinto Seu Carrinho e um outro carregador identificado como Chapa 29 conduzindo as refeições para o almoço com o cheiro das comidas inundando o ambiente. Solicitei a Chico Cabeleira que adiantasse o passo e concluísse seu conto.

  E assim concluiu Chico dos Couros, melhor dizendo: - Meu distinto jornalista aqui ninguém tem pressa, está todo mundo bem acomodado e bem servido, e quero concluir dizendo que a missão de Pedro carreiro foi de pleno sucesso e ele levou os tocos até o Largo da Usina colocando-os um por um em frente do casarão para a devida fogueira, em seguida, deu água aos animais e uma ração com milho e sal servida em aiós, e depois desceu até a venda de seu Manoel Carneiro, em frente ao Mercado Municipal, onde tomou uma pinga contendo velame e comprou carne de charque, sabão, açúcar, sal, macarrão, velas, etc, colocando tudo num bocapio, almoçou na barraca do Djalma sergipano comendo um feijão de corrute, prosou aqui e acolá com conhecidos no interior do mercado e ouviu cair uma chuva forte no telhado e assim que a chuva passou pegou seu mocó e se dirigiu ao carro de bois para retornar a fazenda Capitão e lá se foi, tranquilo, sentado na mesa, o bocapio e os aiós amarrados, tocando o carro numa mansidão de dar sono e quando chegou na altura de um lugar chamado Escorrego, já tinha passado da Bola Verde, lugar como o próprio nome diz escorregadio, a chuva bateu forte, trovões pipocaram no céu, o carreiro teve uma grande dificuldades para controlar os bois, temia por ele e pelos animais porque raio mata, raio torra as pessoas e os animais, e nem deu tempo de rezar para Santo Antônio, pedir uma proteção do céu, um raio pipocou na canga do marruá o bicho saiu em disparada pulou uma cerca da fazenda de Seu Martins carpina. o carreiro se apavorou e correu atrás do bicho tentando contê-lo e outro raio pipocou na sua trilha que a vara com o ferrão foi para o espaço, salvou-o, creio, o ferro da vara atraiu o raio, e já perto de um umbuzeiro, tentando se proteger, pipocou um daqueles raios tipo forquilha invertida e uma perna o atingiu lançando-o em direção ao umbuzeiro e a outra perna riscou nas proximidades do casco do barbatão e o bicho voou por cima do umbuzeiro e desapareceu no céu, e quando o tempo amainou e Pedro voltou para o carro, Formoso, da parelha com Assanhaço, estava caído , mas vivo, e ele laçou o animal e amarrou no fundo do carro, e conduziu a mesa com a junta de quatro bois e chegando a salvo na fazenda Capitão, naquela noite Pedro não dormiu direito, tinha que prestar contas ao véi Jovino sobre o sumiço de um dos bois e sonhou uma coisa maluca nesta noite, sua casa pegando fogo e acordou apavorado gritando por sua esposa Zuleica, e dona Zu acalmou ele e deu uma xícara de café preto sem açúcar com cuscuz e ovos e ele se aprumou, selou a mula Almirante e foi ao pasto conferir como estava o gado, se alguns outro animal também havia morrido, e quando chegou lá o gado estava todo vivo e contou cabeça por cabeça, e quando voltou pra casa recebeu a visita da fazendeira dona Nalva, a distinta senhora Marinalva dos Oliveiras, que ama suas terras na Pedra, e lhe contou que na noite da trovoada uma boi caiu do céu em sua fazenda, ela viu com seus próprios olhos quando o marruá passou voando sobre sua casa, e cessada a chuva, no outro dia, encontrou-o pastando entre os seus animais e viu que não era um presente de São Pedro porque tinha o ferro VJ na anca e ela conhecia essa marca como do Véi Jovino e que ele fosse lá buscar o animal pois ela mesma não queria conta com esse boi temendo que fosso mal assombrado e pudesse novamente voar, e no mais, só queria os seus, conseguidos com seu suor e labuta, sendo o que é dos outros não se pode apoderar. E assim, Chico terminou seu conto.

 Chico foi aplaudido de pé e surgiram várias perguntas enquanto o garçom Xêroso e a senhora Agripina ia forrando as mesas e colocando os talheres e os pratos para o serviço do almoço, espoucaram rolhas do vinho da Bodega Andrade, o tinto começou a ser servido e eu intervi destacando que as respostas das perguntas ficariam para outra hora, mas, mesmo assim, Esão insistiu em saber que fim teve o Babartão e poque Chico dos Couros tinha o apelido de cabeleira.

Chico levantou-se novamente explicou que Pedro Carreiro foi na fazenda de dona Nalva lançou o marruá com uma corda de couro poderosa e montado na mula Almirante conduzi-o de volta a Fazenda Capitão, coisa de meia légua, sem problemas, e explicou que o apelido de cabeleira estava a olhos vistos e retirou a boina da cabeça, soltou o coque e a cabeleira se estendeu pelos ombros.

  Vixe, parece um rabo de égua, arrematou Esão para gargalhada geral. 

  Toquei a sineta pedi respeito e foram servidos o cozido e as costelas do porco a larga e comendo-se a gosto.