Cultura

O ANDARILHO DA CIDADE DA BAHIA, CAP 26: A ROMA NEGRA FALA PORTUGUÊS

Na cidade da Bahia teremos que ser – mestiços, pretos e brancos – baianos, cultores da nossa própria história
Tasso Franco , Salvador | 22/10/2023 às 09:11
Mural numa rua do Porto da Barra onde chegaram os portugueses em 1549
Foto: BJÁ
   Salvador é uma cidade portuguesa e não há mal algum em se dizer isso ainda que se tenha colocado nela o agnoma de Roma Negra entendendo-se que sua população sendo majoritariamente mestiça e negra teria essa configuração metafísica, em fundamentos da realidade na relação mente e matéria

Observem, no entanto, que a Roma Negra não fala italiano; nem ioruba e sim o português e isso faz uma grande diferença, aliás, a diferença fundamental porque a população integral - mestiços, negros, brancos, amarelos, curibocas, caboclos, tupinambás - fala, escreve e pensa em português e nossas relações com os mundos africanos lusófano, francófano e anglófano se processam em português, e, à exceção da África islâmica que fala árabe, as demais Áfricas interpretam seus pensamentos em francês, inglês e português

Essa é uma questão essencial a ser vista na cidade da Bahia também diferenciada da África, da América do Norte e da América Espanhola porque o fator colonial de um ataque à cultura se deu em relação ao tupinambá que era o povo original, a cultura europeia portuguesa se estabelecendo no Novo Mundo, e eu friso diferenciada do que aconteceu nos Estados Unidos, Canadá e América Espanhola porque há uma diferença substancial dos métodos, os ingleses e puritanos que se fixaram no Norte não eram católicos; e os espanhóis não se miscigenaram como os portugueses e também enfrentaram civilizações - asteca, inca, tolteca - que já eram bem mais desenvolvidas culturalmente e economicamente do que os nativos brasis, especialmente os tupinambás que viviam no território de Salvador, paupérrimos e que existiam ainda na concepção bíblica de Noé

Essa distinção é fundamental para se entender a cidade da Bahia que já foi o porto Sul mais importante do Atlântico na ligação com o velho mundo e sofreu e ainda sofre por ter sido colonizada por Portugal país que era vanguarda náutica e até econômica na época da descoberta do Brasil, no início do século XVI, mas perdeu espaços com o tempo para os outros países colonizadores e a leva de africanos que trouxe como escravos de diferentes territórios e que falava dialetos diferenciados uns dos outros, da Costa do Benin, de Angola, da Nigéria, foram aculturados em português

Veja, preclaro leitor, que na África a colonização europeia se deu em três frentes linguistas diferenciadas – português, inglês e francês - e essa herança cultural considerada bendita por muitos e maldita por outros, num continente em que se falava (e ainda sub existe) mais de 1000 línguas e dialetos, se estabeleceu e se firmou, definitivamente, havendo, portanto, a África francófana católica que fala francês, pensa em francês e escreve em francês; a África anglófona anglicana, que faz o mesmo com o inglês; e a África portuguesa católica; e há, também, uma África islamizada que se distingue dessa tríade que fala o árabe; e ainda assim, como no Marrocos e na Argélia, uma mistura do árabe e do francês, sendo o francês a língua oficial.

Ora, na Cidade da Bahia, objeto de nossa análise, eu, o andarilho, vejo isso com meus olhos que falamos, escrevemos e cantamos em português e mesmo quando analisamos as questões antropológicas e sociológicas, do ser, da existência do ser baiano, da sua psicologia de vida e até mesmo na filosofia platoniana grega, os estudos e análises são feitos em português, em parte, com o modo europeu de pensar e agir uma vez que nossa base cultural universitária que é recente, data de 1946 com a implantação da UFBA, é europeia, a epistemologia tem uma tradição europeia

Quem está fora desse senso comum é o candomblé que guarda uma relação ancestral com o iorubá e dialetos africanos expressões de uso restritos nos terreiros para os iniciados do povo-de-santo mas que não atinge a massa popular e são guetos e até esse segmento da sociedade sofre a influência da religião católica no que se classifica como sincretismo afro baiano onde São Jorge é Oxóssi, São Lázaro é Obaluaê, Yemanjá é Nossa Senhora difícil de ser separado, até os dias atuais, e quem tentou como a yaolarixá Stella de Oxóssi, de um lado; e do outro o cardeal frei dom Lucas Moreira Neves não conseguiu

Há de se dizer que essa relação do pensar com afinidade europeia está se modificando com o surgimento de uma literatura afro-baiana, ainda incipiente, alterando saberes conceituais, introduzindo novas narrativas na causação da história, um saber mais humanista descolonizado via pensamento de Franz Fanon, ainda assim, acontece sem uma direção autóctone e atrelada aos movimentos da negritude dos EUA, em bibliografias, mas escritos na língua de Camões

Não há como se buscar novos saberes na África (salvo, o da ancestralidade) porque sendo um continente multicultural bem distinto de Salvador, exceto que o africano é negro, a cultura da Nigéria pan-africana, em inglês, é diferente do Senegal francês; a do Senegal distinta de Angola portuguesa e assim por diante sendo que a própria África, no dizer de Kwame Anthony Appiah em “A África na Filosofia da Cultura” busca equalizar esses saberes do seu amplo território, daí que o mestiço-negro baiano se alinharia a qual desses saberes! lembrando que o Olodum tem saudado em Carnavais a ancestralidade do Egito, do faraó Tutekamon, só como exemplo, e o Ilê Aiyê nasceu, em 1974, inspirado no ativismo do movimento “Black Power” norte-americano

Caetano Veloso, em 1984, compôs – em nossa opinião – a canção mais complexa de sua extensa obra, intitulada “Língua”, onde, em síntese, o bardo deixa claro que a língua é a nossa pátria e embora o português brasileiro se diferencie do português de Portugal e ex-colônias da África, no fundo, são iguais e temos que amá-los

Quando diz no verso inicial: Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões/Gosto de ser e de estar/E quero me dedicar a criar confusões de prosódias/E uma profusão de paródias/Que encurtem dores/E furtem cores como camaleões/ - memoriza a essência poética a abrir caminhos de aproximação e não de afastamento

 Gosto do Pessoa na pessoa/Da rosa no Rosa/E sei que a poesia está para a prosa/Assim como o amor está para a amizade/ E quem há de negar que esta lhe é superior?/ E deixe os Portugais morrerem à míngua/ Minha pátria é minha língua/ Fala Mangueira! Fala! – expõe citações transversais de Fernando Pessoa a Guimarães Rosa, de Lisboa ao Rio de Janeiro no falar de sambistas da Mangueira

Haja interpretações para essa canção emblema: Vamos na velô da dicção choo-choo de Carmem Miranda/E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate/ E (xeque-mate) explique-nos Luanda/Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo/Sejamos o lobo do lobo do homem/Lobo do lobo do lobo do homem
E diria, eu o andarilho, que minha capacidade intelectual é limitada para entender tantos maneios do que profetiza Caetano situando que a: A língua é minha pátria/E eu não tenho pátria, tenho mátria/ E quero fratria

Há, pois, ainda, um questionamento permanente sobre a colonização portuguesa e se a colonização, no Brasil, fosse holandesa, francesa ou inglesa se seria melhor do que a incrementada por Portugal, o que nos parece tardio diante da impossibilidade de mudarmos de rumo até para nos situarmos na contemporaneidade, na nossa modernidade humana ocidentalizada

Na cidade da Bahia teremos que ser – mestiços, pretos e brancos – baianos, cultores da nossa própria história, defensores dos nossos próprios saberes e não luso-baianos ou afro-baianos  

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