Cultura

O HOMEM VERDE DO GINÁSIO, CAP 9: O NEGO D’ÁGUA DO AÇUDE GRAVATÁ

Eu, o mediador do encontro de personalidade no Café de Agripina digo que o povo aumenta mas não inventa e tudo que vem de suas crenças é verdadeiro
Tasso Franco ,  Salvador | 19/10/2023 às 07:40
Concepção do nego d'água do artista serrinhense Enio Celestino
Foto: Enio Celestino / ilustração
  
  O NEGO D’ÁGUA DO AÇUDE GRAVATÁ

   Prólogo:

   Finda a oração de Esão informei aos presentes de que o lubi receberá o título de cidadão serrinhense e a comenda “30 de Junho” e será nomeado (ou já foi) conselheiro da República e solicitei ao garçom Xerôso que providenciasse mais uma rodada de limonada para os oradores e vinho para aqueles que assim quiserem e procurei saber de Agripina se o almoço que havia encomendado no Hotel de Tereza estava pronto uma vez que já passávamos das 13 horas e seria justo, se a refeição principal ainda não estivesse pronta, que a senhora servisse uma rodada de bolos de puba e os beijus para, por enquanto, enganar os estômagos dos convivas e darmos prosseguimento ao nosso encontro. 

  Disse, ainda, que não conhecia o Lobisomem de Serrinha, mas estava ávido para conhecê-lo e destaquei que é puro folclore a conversa de que se uma pessoa se espojasse no lugar onde um jegue havia se deitado e roçado com a mangueira em riste, durante a semana santa, virava lobisomem, comentando por demais que, certa ocasião, sendo delegado na nossa urbe Maneca Paes apareceu um lobisomem na Rua 2 de Julho amedrontando os moradores, a Polícia realizou uma campana e descobriu que a pessoa que se passava por lobisomem só fazia essa prezepada para meter medo no povo e era um Coutinho chamado Lilito que usava uma capa colonial e uma máscara e que, por pouco não morreu, porque um Sd da Força Policial quando viu aquela assombração, aquele vulto, atirou mas o fuzil falhou; e que, de outra feita, no bairro das Abóboras havia um lubi que gostava de madames alheias, dessas que adoram colocar “toucas de touros” em maridos considerados conformados e  esse tal de espada que se chamava Nego Minho se passava por lobisomem para agradar essas senhoras fornicando-as.

  NOVO ORADOR

   Levantou-se, então, um senhor representante da Associação dos Magarefes do Bairro Matadouro e assim se apresentou: - Meu nome é Manuel Anunciação dos Anjos, conhecido por Melinho magarefe ou simplesmente Melinho, tenho 40 anos de idade e sou pioneiro em nosso bairro, nascido que fui no povoado da Extrema, tenho poucas letras, mas vasta experiência de roça, de aguadas e tanques, de andar pelos matos nas noites para caçar bichos que não dormem e são muito gostosos de se comer de ensopado ou moqueca como os tatus bolas e já que falaram dessa assombração que é o lobisomem, lá na Extrema nunca ouvi falar nele, mas na terra da minha esposa, na Baunilha, tinha um deles que era um terror, mas o que vou narrar é sobre o Nego d´Água do açude do Gravatá, um bicho medonho e mais perigoso do que um lubi porque na água quando ele aparece e tem alguém pescando numa canoa é mais difícil fugir e pelo que me contaram Pedro e Otacílio duas pessoas que moram nas proximidades do Gravatá, esse bicho além de nadadeiras também tem pernas e se a pessoa consegue chegar a margem do açude para se livrar dele ainda está sujeito a levar um carreirão como já aconteceram com várias pessoas.

  Pediu a palavra Ivan Flores, o “Ivan Três Noites”, do Recreio, querendo saber se Melinho também já tinha tomado um carreirão desse bicho e que no Açude da Bomba, certa feita, havia sumido um pescador e até hoje o povo diz que ele foi engolido por um monstro como aquele que há no lago Ness, na Escócia, mas nunca ninguém provou e ficou por isso mesmo.

   Melinho retomou a palavra e prosseguiu: - Eu mesmo nunca tomei carreirão desse Nego d’Água e diria que sendo da mata, protegido por Oxóssi, chefe da Falange dos Caboclos, nosso São Sebastião – mostrou uma imagem do santo que carregava apensa num colar – ele não iria se meter comigo – nem com os nossos lá na gira, pois, sou Caboclo de Couro assim como meu compadre Manelito é Caboclo de Pena, somos a essência da Terra e conosco ninguém mexe, e lhe afianço seu “Três Noites” que nem de água eu gosto e embora more perto do Gravatá lá não piso meus pés e quando piso é só na beira do açude pois tenho água boa de beber e de tomar banho na minha cacimba do meu sitio e o que estou narrando aqui do Nego d’Água é coisa que povo conta e o povo pode até aumentar a história mas não inventa, o que sai dessas bocas do povo são sempre verdades e se o pescador que estiver no açude pescando não lhe oferecer um peixe, um corró que seja, ele vira a canoa sem dó nem piedade e também me contaram que uma pescadora chamada Marieta, uma sirigaita que seria amasiada com um barbeiro que tinha uma tenda perto do campo de aviação, um tal de Sila, teria sido levada pelo Nego d’Água pro fundo do açude onde ele morava ficou lá com ele um tempo e quando apareceu de volta tava era embuchada e nasceu um casal de gêmeos que todo mundo conhece aqui no Matadouro, nosso querido bairro, os mabaços Crispim e Crismario, que são negros como a mãe e como eu, que sou retinto, com a diferença que têm as cabeças lisas desde pequenos, as orelhas maiores do que as nossas, os olhos esbugalhados e cor de musgo, esverdeados, e o que dizem as más línguas é de que são filhos do “Nego d’Água” e não desse Sila, o qual na festa de Reis desfilou no nosso bairro vestido de mulher e tocando pandeiro, se requebrando todo, se tornando objeto de chacota, mas eu mesmo não digo nada porque cada qual que faça o que quiser de si, nem duvido nada dessas história do “Nego d’Água” e dona Sonete que morou também num povoado aqui perto ouviu falar que esse ser sobrenatural seria a encarnação do espírito de um homem que morreu na construção deste açude na época em que Dr Miguel Calmon, no governo do presidente Afonso Pena, no início desse século, a Serrinha enfrentando uma seca terrível e já se falou aqui da seca de 1930, mas essa seca de 6, de 1906, foi coisa do satanás, e o DNOCS construiu esse açude em obras sob o comando do engenheiro Gravatá, daí o seu nome, e não foi só um peão que morreu na obra, mais de um, e essas pessoas teriam sido enterradas por lá e quando as chuvas de trovoada chegaram e o açude pegou água e encheu essas almas penadas, gente que veio de fora, habitam esse local e teriam viradas Negos d’Água que, pelo que sei, é um bicho que só dá em rio, lá no Juazeiro do São Francisco, e o povo, que vê assombração em tudo, em noite de lua cheia, em eclipse, em trovoada, em quarto escuro, em canto de anum, criou esse Nego d’Água do Gravatá. 

  E assim termina o conto do Nego d´Água do Gravatá.