Já circula na internet um manual da sobrevivência para quem mora na capital baiana, onde parar, como dirigir veículos, como se proteger de baldas perdidas, etc, etc, virou uma selva
Tasso Franco , Salvador |
08/10/2023 às 07:40
Água de Meninos em plena Avenida Joana Angélica, centro históricos
Foto: BJÁ
Quando cheguei para morar na Cidade da Bahia, em 1963, assim a conhecíamos os nascidos no interior do estado, ainda desfrutei dos últimos anos civilizados da capital em que as famílias prosavam sentadas em espreguiçadeiras nas portas das casas da Ribeira como na minha Serrinha, respeitavam-se os professores nas salas de aulas, usavam-se os ônibus dia e noite sem a preocupação com assaltos, os homens adoravam ternos de linho e chapéus - pobres e ricos; as mulheres vestiam longos no dia-a-dia e portavam sombrinhas, a cidade tinha um ar de educação e flanava-se sem medo pelos cafés do centro e restaurantes, quem assim podia, e quem não podia, como eu, estudante, pé rapado, espiava
São tantas as lembranças que me embaralho nelas e recordo da primeira rua que morei, a Graciliano de Freitas, no bairro de Roma, apartamento térreo onde residia meu irmão, que não havia grades em nenhuma das casas, os muros eram baixos, e mesmo numa avenida de grande movimentação de pessoas e veículos incluindo o transporte público da Sul América e seus ônibus azuis, o Caminho da Areia, as janelas das casas davam para a rua e a padaria onde compravas broas e pães era de porta de madeira
Depois, quando meu irmão ampliou a família com filhos, vivi anos em pensões na Barão de Cotegipe, no Bângala, no Tororó, na Joana Angélica até que ingressei no jornalismo que meu pai dizia “vai morrer de fome” e alugamos, com três amigos, um apartamento no prédio apelidado de “Balança Mais Não Cai”, na Nova de São Bento, um gigante que por lá havia, e funcionava na paz, sem portaria, sem grades e sem elevador, todo mundo subindo e descendo pelas escadas, nas baixas horas as senhoras donas de casa circulando pelos corredores para irem comprar pães e temperos, um remédio na farmácia de Sêo Carlos, escovar cabelos no Salão de Marli; e nas altas horas as senhoras das noites que saiam e chegavam usando botas de cano longo e bustiês na garimpagem do sexo, na esquina da Sete, no Sodré
Dava-se bom dia e boa tarde nas esquinas da Joana Angélica e da Avenida Sete e do Jornal da Bahia saindo no fechamento da 1ª página, em eventuais noitadas no “night club” do Jaime, fundos da Igreja de NS da Ajuda, aos filés e as danças, andávamos a pé no centro antigo, o terminal de ônibus da Barroquinha só com os últimos plantonistas a circularem e descia para casa, assoviando, pelo Berquó, cortava caminho pelo fundo da igreja e seguia para o “Balança” na santa paz e nunca fui assaltado, nem de dia; nem de noite
Salvador era civilizada, os pontos de ônibus asseados, o elétrico pomposo, se uma senhora da maior idade ou um homem de bengala entrasse n’algum ponto levantávamos e dávamos o assento, o Lacerda e o Plano Inclinado sem rabiscos, escovados, sempre cheios, com filas em ordem, formandos dos cursos superiores vimo-los de smoking nas madrugadas das festas da Conceição da Praia, aos magotes, as mulheres maquiadas, a beberem e chuparem melancias, os táxis Chevrolet pretos impecáveis para levarem aqueles que moravam mais distantes para suas casas
Eu era um capiau e quando entrei na Tribuna da Bahia, em 1969, comprei meu primeiro terno na Lojas Ipê. Sim, os jornalistas que “cobriam” a Assembleia Legislativa, no centro, na Sé, usavam paletó e gravata; as normalistas gravatinhas e meias soquetes; para assistir as missas as senhoras usavam véus nas cabeças e os homes tiravam os chapéus quando entravam na missa ou se aproximavam do Palácio do Governo, tanto que uma das ruas, se chama (até hoje) do Tira Chapéu, e Quintino, o redator chefe, colocou todos os repórteres dessa maneira ‘empaletosados’
A Rua Direita do Palácio tinha duas bancas de revistas e um abrigo do bonde em frente ao prédio da Câmara com lanchonete e venda de cigarrilhas, como em Lisboa ou Berlim, e nesta via as madames e os cavaleiros iam as compras, elas usando os mais finos trajes com joias de ouro no pescoço e nas orelhas, broches de esmeralda à vista; e os homens portando relógios com correntões de ouro que ficavam à mostra e existiam cafés, óticas e magazines como na Champs Élysées, em Paris: e na Oxford, em London
Quando chegou o Carnaval nossa vizinha do “Balança” uma senhora de longo curso em idade, ela e o esposo, Sêo Artur, levaram cadeiras para sentarem-se ao lado do Convento de São Bento e assistirem ao desfile dos blocos e dos trios e dona Alzira preparou um farnel com galinha assada e suco de caju, tudo arrumado numa cestinha de vime decorado com laços de fitas coloridas, e nos intervalos das passagens de blocos e trios ei-los a lanchar, sem deixar cair ciscos no chão
Ora, amigos, meu professor no curso de jornalismo, na UBA, em português era chamado de mestre Raul Sá; eu usava uma almofada e um radinho de pilha para ir a antiga Fonte Nova assistir o Vitória; e a Joana Angélica era chique e as calçadas livres para os pedestres; e quando ia a Direita do Palácio batia-me com o poeta Godofredo Filho envergando um terno de linho branco e usando uma bengala a cumprimentar os passantes, as mocinhas e as senhoras
De repente, creio a partir dos anos 1990, a permissividade tomou conta de todos os espaços e na Prefeitura, como secretário da Comunicação, para irmos a algum determinado bairro, prefeito e assessores, a Casa Militar fazia uma varredura do local como se estivéssemos numa guerra da Angola onde os portugueses instalaram minas devastadores e isso foi num crescendo e aumentando que sepultamos a civilização baiana de vez e só tropas podem entrar em Valéria, Alto das Pombas, Calabar e ouros sítios
Até antes disso, entre 1987/1988 passei uma temporada em Londres e quando voltei, o capiau da Serrinha já com outros ares, tal o jagunço Oleone, em Partis, passei um tempo para me acostumar, novamente, com a País Tropical bonito por natureza e, se ao menos não me deseducar, não correr o risco da morte e esperar que um motorista de veículo parasse assim quem pisasse numa faixa de pedestre
O século XXI chegou repleto de esperanças e, ao contrário, ficamos mais selvagens a ponto de a Prefeitura precisar da intervenção das Forças Armadas para retirar centenas de barracas das praias, tendas de toda a natureza, na cidade mais surreal do mundo onde você poderia ir tomar um banho de mar e encontrar algum morador dessas barracas escovando os dentes
Onde existe isso no mundo? Na Índia, diz-me o vizinho Xavier em almoço com outros amigos, onde se queimam cadáveres na beira do Ganges. – Tá bem, aceito. - E onde se anda de ônibus usando sunga molhada depois de sair da praia fazendo ‘terra’ nalgum ‘dèrriere’ feminino? – Não saberia dizer, confessa-me o Bomfim. – Ora, meu caro, na Cidade da Bahia, onde também se defeca nas ruas, se urina nas esquinas, se fornica nas ladeiras, se dorme nas praças e marquises, se toma banho nas fontes, que se pode esperar?
Olha lá! Um taxista parou e vai deixar um passageiro naquela esquina. Engano meus interlocutores! Abriu a porta e vai dar uma mijada. – Não, aduz um deles: - É apenas uma mijadinha. Ah! Tá bom. - Vou para Pasárgada como diz a professora Rosane. - Onde é isso inquire o Bina? – Em Caravelas, extremo Sul da Bahia. – Ah! É muito longe. Temos que nos acostumar com o que temos até minha aposentadoria quando irei morar em Portugal longe das balas perdidas. Oh! Que maravilha se pudesse também iria atravessar o Atlântico
A conversa estava ótima e quando lembrou o Xavier que iria para a Chapada fugindo da violência no Carnaval. – Mas, como! O governador já anunciou 30.000 policiais nas ruas, portais de segurança, detectores de metais, câmeras e toda uma infra em saúde pública. – Vixe! Lembra-nos o garçom que nos servia um tinto: é uma guerra. – Sim, complemento – mais do que nas lutas da independência da Bahia cujo Exército Pacificador tinha 2.000 homens e Marinha de Lord Crochane menos de 500
Assim, infelizmente, minha pudica leitora; meu amável leitor encontra-se a Cidade da Bahia, onde dona Alzira, se viva ainda estivesse não teria coragem de levar o lanchinho para a avenida no Carnaval, a maior manifestação da cultura popular parece uma guerra, nenhuma autoridade pública consegue ir às ruas sem seguranças, no cívico 2 Julho quase não se enxergava o presidente da República, tanto eram os capacetes azuis ao seu redor, onde o cardeal não tem coragem de atravessar a rua do Bispo, andando; onde professores do ensino médio são atacados com machadinhas; onde as madames com poucas joias estão confinadas aos shoppings; onde o proibido proibi se evaporou
A propósito disse Expedito, o garçom: - Está anoitecendo e acho melhor vocês irem embora para suas casas