Como a cidade se preparou para enfrentar Lampião. Texto é de ficção com realidade e qualquer semelhança de personagens é mera coincidência
Tasso Franco , Salvador |
05/10/2023 às 09:50
Lampião e seu bando não invadiram Serrinha
Foto: Reprodução
LAMPIÃO AMEÇOU INVADIR SERRINHA, MAS TINHA MEDO DOS CANHÕES
PROLOGO
Terminada a oração, a senhora Zabelinha exultava de alegria, creio, inclusive, que já estava sendo paquerada pelo representante da Associação dos Professores, e como os leitores podem ver tivemos no decorrer das narrativas uma história sobre a roda da morte de crianças comidas por um homem verde; uma comentando a roda da fortuna, a menina que falava com os bichos e a perua de sua avó que punha ovos de prata; outra sobre a roda do pecado, um padre que seria um rasga mortalha, e a derradeira sobre a roda do milagre de Santo Antônio processado em Água Fria, que sediou o júri e até hoje sofre as consequências, da Queimadas que perdeu o título de cidade com o nome do santo e da nossa Serrinha, que deu sumiço no processo e foi abençoada. Em seguida, fraqueei a palavra.
O CONTO DA AMEAÇA DE LAMPIÃO
Levantou-se, então, o representante da comunidade Bomba, apelidado Ivan Três Noites, o qual disse ser uma pessoa descrente dos milagres de santos, "não só de Santo Antônio e todos os demais da igreja", mas, como homem temente a Deus católico não praticante, respeitava o conto da senhora Zabelinha, elogiou-a como "bem apessoada, vistosa e ainda de futuro em novo lar, e revelou que gostaria de ser o narrador do próximo conto uma vez que uma coisa puxava a outras e se a cidade de Queimadas estava em baila e se santo Antônio era seu protetor e milagreiro, por que não evitou o massacre que o facínora Lampião fez naquela urbe, nos anos 1930, degolando e furando a punhal oito soldados da nossa brava PM?
Fez um silêncio na távola. Cara de Cotia, sempre irônico, falou baixinho: "Deveria estar dormindo na hora".
Toquei a sineta e remeti a palavra a senhora Zabelinha e/ou ao pároco Demôndaco se assim quisesse responder.
A senhora ficou de pé novamente e assim falou: - São os mistérios de Deus, insondáveis, imperceptíveis por nós humanos. Vês que saímos a poucos anos de uma grande guerra na Europa, milhões de mortos, os homens se matando entre si, uma coisa sem explicação, assim como sempre ficamos a questionar se foi o homem que criou Deus; ou Deus que criou o homem numa amplitude tão grande e diferenciada de época a época, de século a século, de espaço a espaço, em alguns lugares muitos deuses; noutros deuses animais e entre nossos nativos os deuses da natureza, o trovão, o sol, a lua, as lagoas, os rios.
Como o debate estava descambando para o campo religioso intervi e perguntei a Ivan se ele gostaria de fato narrar o próximo conto, qual tema seria levado a efeito e que se assim fosse, se apresentasse.
Ivan então levantou-se e disse que se chamava Ivan Flores Jaqueira, nascido no final dos anos 1920 na Bomba, era auxiliar de enfermagem, conhecido na Serra como o enfermeiro Ivan Três Noites porque tinha a capacidade de trabalhar três noites seguidas sem dormir, sem pregar os olhos, sem colocar palitos de fósforos na face para segurar as pálpebras e iria falar do terror que foi a ameaça de Lampião de invadir a Serrinha e degolar os “macacos”, os homens da PM, e dá purgante de pimenta através do orifício anal e enfiar punhal na garganta dos ricos como fizeram em Queimadas.
Ivan era agalegado, olhos de gato do mato, cara de manhoso com espírito do tipo come calado, estatura mediana, nariz avermelhado desses que a gente acha que vai espirar, cabeleira no modelo Castro Alves, bigode retorcido como o Bilac. São, pois, dados complementares que coloco para nossos leitores, para melhor entendimento do nosso encontro. Disse, em seguida, que estava autorizado a falar.
“Antes – assim ressaltou Ivan – quero dizer aos senhores e distintas senhoras que sou filho de Durval foguista pioneiro desta Serrinha que chegou aqui jovem vindo das bancas de Ouriçangas para trabalhar como peão na construção da estrada de ferro no final do século XIX e daqui nunca mais saiu casando-se com a mulher da Bandarinha, mãe uma brava do sertão, uma catingueira, e constituiu família vindo morar numa casinha da Leste Brasileira e depois comprando um terreno na mão de Sêo João Barbosa, na Fazenda Coruja, sendo pioneiro na instalação do bairro Recreio, na subida da ladeira, onde moramos até hoje, não mais o pai e a mãe que já foram para a morada do Senhor (se benzeu), mas eu e minha esposa Dilcélia e meus filhos, e minha irmã Dita com os seus marido e filhos, em terras no sitio que foi de pai e hoje é a beira da avenida, e foi ele, pai, um destemido ferroviário que começou como foguista colocando lenha nas caldeiras das “marias fumaças” e se aposentou como fiscal de passageiros na linha Serrinha e Juazeiro e vice versa, o qual, quando da visita de Lampião a Queimadas, descia do Bonfim para Serrinha e soube da morte dos policiais e da promessa de Lampião de que iria degolar todos os “macacos” na linha do trem até Serrinha. E foi pai que trouxe essa notícia para Serrinha e vocês sabem que notícia ruim se espalha como rastilho de pólvora e tudo o que vou contar foi pai que contou a gente, ele que nasceu em 1900 e estava moço forte quando Lampião fez essas estrepolias e eu, era menino quando isso ocorreu e Lampião não invadiu nossa aldeia, mas causou um pavor enorme.
O TERROR DE LAMPIÃO
E assim, Ivan Três Noites começou a contar seu conto: - Quando pai trouxe a notícia da possível invasão de Lampião em nossa aldeia, o intendente Graciliano de Freitas Sobrinho, o presidente do Conselho Municipal, hoje, Câmara de Vereadores, Antônio Pinheiro da Mota, o juiz de paz que agora escapa-me o seu nome, convocaram uma reunião na sede do Paço com todos os representantes das nossas forças vivas, o cabo comandante do Destacamento Juliano Picão, o soldado Messias Jenipapo, o presidente da Associação dos Caçadores de Perdizes (ACAP), Carlos Paes,; os Encourados do Saco do Moura (ENSACO); o presidente da Associação dos Ferreiros (ASFER), Jorge Matos; o presidente da Associação dos Magarefes de Bois e Porcos (AMARF), Uziel Lopez, etc, quando tomaram conhecimento mais detalhado da chacina, isso porque o alcaide passou um telegrama ao governador Vital Baptista Soares pedindo auxílio em tropas, armas e munições e recebeu dele a promessa de assim fazê-lo e tinha em mãos um jornal provindo da capital que chegara pelo trem da Leste, cujo teor, o secretário do encontro, Rui Pinheiro, leu com detalhes o acontecido em Santo Antônio de Queimadas, com a execução de 7 solados da PM que os cangaceiros chamavam de “macacos”, no dia 22 de dezembro de 1929, só escapando o sargento Evaristo, comandante do Destacamento de Polícia, isso porque Lampião tinha sido agraciado com um colar de ouro oferecido por uma senhora chamada Santinha, esposa do coletor federal, que pediu pela vida do sargento, os quais, junto ao Dr Manoel Hilário e do coronel Elias Marques conseguiram amealhar 22 contos de reis, sendo que, quem tinha dinheiro teve que contribuir e o jornal trazia o nome de todo mundo que deu dinheiro s Lampião inclusive Isaac Araújo representante da Antônio Bacelar & Cia, de Serrinha, que doou 400$000, loja grandiosa que a gente conhece na Rua Direita de nossa cidade; do telegrafista Joaquim Cavalcante 500$00, de Antônio Araújo, correspondente do Banco do Brasil 2.500$000 e mais animais e arreios no valor de 2.000$000 e muito mais gente que deu joias em ouro, e aí que foi um desespero entre aqueles abastados que participavam da reunião e estavam presentes os conselheiros e futuros edis Leobino Cardoso Ribeiro, Emilio Ferreira da Silva, José Benjamin de Carvalho, José Nunes de Oliveira, pessoas que muitos de vocês conhecem e ainda estão vivas e são fortes comerciantes na nossa aldeia, que temiam por suas fortunas amealhadas com tanto esforço e trabalho.
Ivan Três Noites prosseguiu após respirar fundo e beber um copo d’água: E, assim, expostos esses dados, nas preliminares ficou decido que era preciso fazer uma campana na Estação Rio Branco do Trem com uma forte barricada e homens em armas, pois, se o facínora e seu bando chegassem seriam recebidos a bala e pelo que se pode colher da dados diante da ata que se fez na reunião, descobriu-se que a Serrinha era uma cidade desarmada, que o Destacamento de Polícia só tinha três fuzis que o governo federal tinha cedido ao Estado e este ao município oriundos da I Guerra Mundial na Europa, a guerra de 1914-18, e que a munição era tão pouca que cabia numa caixa de sapatos, que a Associação dos Caçadores tinha 22 associados em armas, sendo que, apenas 6 possuíam espingardas de dois canos, as demais de cano único, sendo duas garruchas, que os Encourados do Saco do Moura, de bom mesmo só tinha foices, facões e punhais, e a Associação dos Magarefes, um monte de peixeiras e cutelos, e mais que, entre os civis mais afamados em valentia apenas dois deles, que peço desculpas em não citar os nomes, possuíam “parabelos”, e um outro que possuía um rifle de repetição e, em sendo assim, saíram temerosos de uma invasão do grupo de Lampião, que, em Queimadas, ainda que o ferreiro Jorge Matos tenha pedido a palavra e dito que a população da Serrinha poderia ficar tranquila porque os ferreiros poderiam forjar mosquetões em pouco tempo, mas foi rebatido por Uziel, o qual disse que isso era pouco porque quem estava do outro lado, visto em Queimadas, foram 18 cangaceiros dos mais ferozes tudo armado de fuzil até os dentes, gente do outro mundo por assim dizer como Volta Seca, Azulão, Mourão, Antônio de Engrácia, Zé Baiano, Ponto Fino, Naro, Virginio vulgo Moderno, Gato, Revoltoso, Zabelê, Antônio Roque Labareda e o chefão Virgulino, de sorte que, se Dr. Vidal e seu secretário de Segurança Dr Bernardino Madureira de Pinho não enviassem tropas para Serrinha estariam ferrados.
Ivan deu nova uma pausa na sua locução para cheirar um rapé, espirrou três vezes, e prosseguiu: - Vocês sabem e nem precisa dizer isso, mas, vou só lembrar, a Serrinha, naquela época, era um lugar pequeno com pouco mais de 2 mil almas na zona urbana e tudo girava entre a praça da Matriz e a Estação da Leste e foi esse prefeito que mandou construir o Grupo Escolar Graciliano de Freitas, na Rua da Estado, onde muito de nós aprendemos as primeiras letras e lutou, em vão, para trazer energia elétrica a partir de Tanquinho e não consegui, portanto, quando era depois da hora da “Ave Maria” a cidade ficava no breu, nas luzes do candeeiro, e isso fazia com que o medo aumentasse e muitos pais de família temendo a invasão dos cangaceiros de Lampião fechavam as portas de suas casas com trancas e ainda colocavam panelas e bacias de flandres atrás delas para que se alguém tentasse invadir, fazer zoada e a família acordar e fugir, e o que ficou acertado durante o correr da semana foi cavar uma trincheira onde é hoje a Praça da Estação e colocar homens em armas somente no horário que o trem descia da Queimadas para Serrinha para um possível enfrentamento a Lampião e seu bando, sendo que se falou até em instalar um canhão que viria do Forte de São Marcelo para Serrinha numa composição do trem, e a população só se acalmou quando numa reunião do Conselho, o secretário da Intendência, Orlando Carneiro da Silva, que era irmão do coronel Nenenzinho, e o tesoureiro Antônio Alves de Carvalho, informaram que Lampião tinha tomado outro rumo em direção a Mirandela e Serrinha estava fora do seu alvo, pois, era um lugar maior, mais perto da capital, e ele não era bobo de meter sua mão em cumbuca, além do que, não tinha coiteiros no município nem os coronéis locais o apoiavam, portanto, a paz retornaria, as pessoas poderiam andar livremente pelas ruas, a Tesouraria da Intendência estava com dinheiro em caixa, a rua da Estação seria calçada em paralelepípedos, como de fato foi, e também encascalhou a estrada para a Manga, hoje, também chamada de Biritinga.
E, assim, Ivan Três Noite encerrou seu conto e pedi a palavra a título de esclarecimento uma vez que sendo filho do redator de “O Serrinhense” , Bráulio de Lima Franco (a partir de 1932) informei que este jornal da Serrinha, na época dirigido por Reginaldo Cardoso Ribeiro (seu fundador em 1924) publicou uma entrevista que Lampião dera ao tucanense Demóstenes Martins de Andrade, (poeta, escritor e jornalista) em 1928, quando Lampião e seu bando visitaram a cidade de Tucano provenientes do Cumbe (atual Euclides da Cunha).
Informei, ainda, que Lampião chegou a Tucano num automóvel dirigido por José do Padre e que pertencia ao padre Eutímio, pois, um outro veículo, que era do monsenhor Francisco César Berenguer, sofrera uma pane.
Na entrevista, expliquei: - Há detalhes sobre a estada de Lampião em Tucano, bem recebido pela população e autoridades e, na casa comercial de Lélis Andrade foi informado de que a cidade tinha um destacamento policial comandado por um sargento que teria mandado um portador a Serrinha pedindo reforço. Respondeu Lampião: - Qual nada, não tem importância. Daqui para Serrinha gasta-se duas horas para ir e duas horas para vir; o choque da notícia faz perder mais duas horas ou três até que se preparem, de sorte que, esta noite, não faz medo. Nesta mesa noite Lampião e seu bando se dirigiram para a Vila de Ribeira do Pombal.
Pigarrei para Xêroso trazer um pouco de tinto para molhar a palavra e disse que, quem quisesse saber tudo sobre a vida de Lampião procurasse os livros do professor Estácio de Lima e destaquei que esse temor de uma invasão do bando de Lampião a Serrinha prosseguiu adiante, sobretudo após a abertura da estrada Transnordestina em direção a Tucano e só cessou de vez quando Lampião foi morto em Sergipe, no ano de 1936.
Em seguida, franqueei a palavra para novo contista.
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