Cultura

ANDARILHO DA CIDADE DA BAHIA, 23: RELÓGIO DE SÃO PEDRO E A ETERNIDADE

A eternidade não tem hora certa é o que mostra o centenário relógio de São Pedro
Tasso Franco , Salvador | 01/10/2023 às 09:40
Os quatro mostradores segurados por Atlantes
Foto: BJÁ

O que percebo quando ando pela Sete de Setembro e deparo-me com o relógio de São Pedro é que vejo as horas da eternidade e sinto um conforte espiritual enorme, acalentador

Como assim! Se este relógio que é o único da Cidade da Bahia a visualizar as horas para o público está sempre marcando a hora errada, fora do tempo?

Justo por isso regulo-me por suas quatro faces: Se são onze horas aponta-me às dezenove na face Norte voltada para o Beco Onze de Junho; se são vinte horas registra cinco na face Sul de testada com o Politécnica; se são seis da manhã marca quinze para meio dia na face Leste a mirar a estátua do Barão do Rio Branco; e se são meia noite averba quatro da madrugada na face que mira a cúpula do Mosteiro de São Bento

E vai brincando diariamente com o tempo fazendo com que nos coloque na eternidade, sem início ou fim
Somos, pois, nobre leitor, condessa leitora, eternos diante deste relógio único com quatro marcadores tontos que é monumento em forma de poste decorado e protegido por gradil de ferro e cercado de gente do povo que passa rumo à Piedade, numa direção; ou ao Santo Bento, noutra, de camelôs, de pregadores evangélicos prometendo o reino do céu, de vendedores de pratos feitos, de muambeiros gerais e batedores de carteiras

Salva-me, eventualmente, quando vislumbro o dizer bíblico da eternidade, de um tempo sem fim, uma vida perpétua, o sol quando está a pino e cobre a meia luz a cabeça da estátua do Barão do Rio Branco - observo como os antigos pelo relógio do sol - que estamos ao meio dia; e se a luz solar vai desaparecendo e deixa apenas uma réstia no bigode do Barão são 3 da tarde; e se mais adiante o sol se põe atrás do Politécnica, são 18h

Também neste momento da Ave Maria não preciso da ajuda do Relógio de São Pedro porque os beneditinos tocam os bronzes da Catedral de São Sebastião e os Capuchos da Piedade fazem o mesmo no convento da praça, badaladas melancólicas que anunciam o termino do dia

Ainda assim e sempre, adoro o relógio de São Pedro e venho acompanhando o esforço dos técnicos em relojoaria que o tentam consertar, mas ele diz não, não quero isso, não aceito, sou a eternidade, e vejo isso desde quando paquerávamos as meninas na praça do relógio em Carnavais antigos

- Busquem o Xavier falei com os técnicos da Prefeitura que tentavam acertar os ponteiros. - Mas quem é Xavier? – pergunta-me um deles. - O ourives da Sete, o mago dos relógios, aquele que conserta pinos, troca micas e ajeita pulseiras, azeita engrenagens e aceita todos os cartões no a pagar

Ah! Seu andarilho glosador isto aqui é um monumento de 6,5m de altura – aponta-me – e as pinças do Xavier não moveriam um ponteiro, não há pulseira e sim pedestal de ferro fundido e granito rosado e enormes engrenagens Henri La Paute confeccionadas em Paris pós Expo Universal de 1900 embutidas neste poste de luz com lampiões adornando acima dos relógios

Veja, então, andarilho sem prumo e rumo, que são 4 relógios adquiridos na França por iniciativa da Associação dos Empregados do Comércio da Bahia e inaugurados no dia comemorativo de aniversário de instalação da Republica, em 15 de novembro de 1916, no governo Muniz de Aragão, e que simbolizam o local em que as picaretas do Seabra derrubaram a igreja de São Pedro

- O povo – esse povo sábio e incréu – entende que é apenas 1 relógio quando são 4 e nós – apontou para o auxiliar – que azeitamos seus ponteiros e consertamos suas engrenagens sabemos o quanto é difícil sincronizar as horas em quatro faces, 8 ponteiros das horas e minutos, 16 catracas e afins

- Já ouviste falar no Seabra, o JJ, mais destemido governador que esta terra já teve? 

– Já, respondi. Foi o homem que desentortou a Avenida do Estado juntamente com Arlindo Fragoso e rasgou-a do São Bento a Barra derrubando igrejas e meia banda do Senado

- Este relógio que chamas da eternidade é sustentado por quatro figuras de Atlantes um primor escultórico de Pasquale de Chirico, figuras humanoides configuradas em bronze que habitam os oceanos da Terra, nossos parentes – cofia o bigode o operário

Se mais queres saber venha comigo conhecer essa máquina do tempo, no seu interior, iremos juntos azeitá-la e consertá-la com essas ferramentas que vês e me oferece uma torquês gigante que a seguro com firmeza

- Temos que subir os degraus desta escada e pedirei ao Miguel para colocar uma outra paralela para usares e aos 6 metros da altura, equilibrando-se no antepenúltimo degrau trabalharmos sem cessar por duas ou três horas para realizar os ajustes

- Bravo, agradeço o convite, mas não tenho pernas resistentes para tal missão enfraquecidas que estão pelo tempo e diante lutas travadas com a cobra corrente do Centro Espanhol e apreciarei a sua bravura olhando do Beco das Onze

O operário trabalha, labuta, sua a camisa e a testa, Miguel segura a escada e vez por outra sobe uma ferramenta, um alicate, um martelo, um azeite, e o Relógio de São Pedro instalado no local que fora a igreja São Pedro Velho que os tratores de Seabra e Arlindo colocaram no chão, teima em marcar as horas sem sincronia

Exausto, o operário desce da escada e dá por encerrada a sua missão. – Eis, voltou a marcar as horas, aponta-me, ainda sem sincronia, mas volto amanhã para os ajustes finais uma vez que encerrou meu expediente na repartição e, ao menos, um dos relógios marca a hora certa 17hs e tenho que marcar o ponto
- Fico-lhe grato por seu empenho. Farei fotos e um vídeo somente deste marcador correto. A vida eterna não tem pressa. Irei jogar mãos de xadrez na pracinha do Barão. 

Na hora da Ave Maria os sinos da Piedade ribombam e os pombos sobrevoam nossa mesa de xadrez e outras tantas de dominó procurando as árvores para dormir.

Levanto os olhos e vejo que o Eterno estava parado às 17h, justo quando o operário da Prefeitura desceu para marcar o ponto na repartição, e sequer fui conferir as outras faces do Henri la Paute

 Ouvi do meu adversário a locução: xeque mate. Movi meu rei para uma casa livrando-o do xeque e falei: as horas da eternidade não têm marcadores corretos