Padre salva o rasga-mortalha da morte e é chamado de capiroto, mas diz que só Deus pode julgá-lo
Tasso Franco , Salvador |
14/09/2023 às 08:48
O padre salva o rasga-mortalha e é chamado de capiroto
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O RASGA MORTALHA É O PADRE
Prólogo:
E assim terminou o segundo conto ficando a palavra aberta e franqueada quando o padre Demôndaco Ulisses se levantou e manifestou o desejo de falar.
Aprumou a batina com as mãos estirando-a até o solo como se estivesse a passar um ferro de engomar, pigarreou duas vezes para destravar a garganta e disse que, como a senhora andaluz que o antecedeu havia falado no Rasga Mortalha de maneira inclemente e essa lenda corria à solta na boca da população da aldeia como sendo, de fato, uma ave cruel, iria comentar sobre um corujão que vivia no topo da matriz, próximo a torre do sino, em casinha que lhe fizera Zé Sacristão, com seu consentimento, homem digno e bom, sem pecados, e esta ave belíssima e querida também conhecida como suindara, coruja-das-torres, coruja-das-igrejas, esteve ameaçada de morte diante conspiração organizada por um homem conhecido como Zó do Abrigo e foi salvo “por este que vos fala” após uma difícil negociação na soleira da porta principal do nosso templo.
Solicitei ao ilustre pároco que, na inicial, dissesse algumas palavras sobre si, uma vez que nem todos presentes na távola sabiam da sua formação de pastor, poeta e professor.
- Humildemente vos digo – comentou o pároco – que nada mais sou do que um servo de Deus a cumprir sua missão de passagem na terra nessa santificada aldeia de Senhora Sant’Anna, com muita honra, e para galgar esse ministério conferido pelo santo papa e por nosso cardeal da Silva, nasci nas terras do Passé, de família pobre, filho de um comerciante de miudezas e uma dona de casa, estudei as primeiras letras nesta localidade de nascença e depois alisei os bancos do saber do Seminário de Santa Tereza, na capital da Bahia, onde me ordenei e na complementação do saber, na faculdade do São Bento, angariei o diploma superior em teologia e aprendi grego.
No mais vos acrescento, minha vida é dedicada a cuidar do rebanho das ovelhas do Cristo, esse povo bom e maravilhoso desta aldeia, os fiéis e aqueles incréus ainda desgarrados e tentados pelo demônio para praticarem o que não é o bem, algumas que fornicam fora do leito do casal na calada da noite e também nas tardes ensolaradas, dementes que pregam a desordem e a desarmonia, hereges que insultam a santa família, a célula mater de todos nós, o cálice e o vinho sagrados, enfim, os abençoo a todos, oro, os oriento-os, os conduzo aos caminhos do bem, da luz, sob a proteção de nossa santa igreja.
E, noutras horas que me sobram tempo dessa vigília permanente em nome de Deus exerço as funções de professor de latim e ainda tenho tempo, porque Deus é bom demais, Deus é algo inacreditável, de escrever poeminhas, de minha cabeça poética. É tudo que tenho a vos dizer deste escravo do Senhor.
Antes que o pároco iniciasse a descrever o seu conto intervi:
- Ora, meus senhores e senhoras: o magnífico pároco, permita-me acrescentar algumas pinceladas sobre sua personalidade, além do latim e do grego que fala bem, é fluente em francês e italiano, tem doutorado em teologia pela Pontifícia Universitá Lateranense de Roma, onde morou certa ocasião, conhece Homero e Virgílio como poucos, capaz de interpretar e recitar versos da “Odysseia” e da “Eneida”, palestrante que é em seminários nacionais e internacionais; e se ainda não chegou a Academia Brasileira de Letras é porque, sendo sua sede no Rio de Janeiro, tão distante de nossa aldeia, repleta de sábios de fardões os quais nem sempre são doutos na literatura como nosso vigário, portanto, não galgou ainda um fardão por desconhecimento daqueles letrados, e acrescento, evidente para puxar a brasa para nosso fogareiro que seu livros de poemas: “A sombra do Pecado em Flor”; “A Glória Serena da Virtude”, editados pelo “O Serrinhense” são obras primas a se ombrear com “Os Lusíadas”, do caolho Camões.
Portanto, acrescento mais essas linhas e informações sobre nosso pároco, para ilustrar a personagem que comentará sobre o Rasga Mortalha exato para que saibam que tudo o que sair da boca deste sábio é pura e mais cristalina verdade, a palavra de um biblista tal conhecedor que é dos testamentos velho e novo.
- Agradeço, penhoradamente, a exaltação feita à minha pessoa pelo ilustre jornalista, mas há muitos mais sábios do que eu neste mundo, ora se há, e também nas letras que aprendi como muito esforço tive a ajuda e o dedo de Deus. Permita-me, pois, já que citaste Virgilio lembra-vos de um trecho do livro IV da “Eneida” quando o poeta diz: - Arde o pobre Dido e em delírio pela cidade/toda zonza: qual cerva que, com a seta lançada/espeta entre os bosques de Creta, negligente, ao longe/o pastor com dardo/ E deixa o ferro voador/sem ver, em fuga ela atravessa matas e pastagens.
Estamos, pois, falando da formação da Itália, da época do politeísmo, de vários deuses sendo adorados e Júpiter, considerado o deus dos deuses, até que Deus, o maior de todos, enviou Cristo para salvar o mundo e unir todos os povos no cristianismo, num Deus uno, que todos nós, hoje, defendemos e adoramos.
Alguém na távola quis interromper a oratória do pároco lembrando que, na Ásia, especialmente por lá e também na África há ainda vários deuses, crenças múltiplas, o budismo, o xamanismo e assim por diante, mas, mandei a pessoa se calar e deixar o pároco completar seu raciocínio.
Seguiu o padre: - É o que vos digo, ainda hoje, não vamos apontar setas e dardos a outrem, ainda que possam serdes inimigos e infiéis a Cristo, nem muito menos as aves que foram criadas por Deus e cito, só para ilustração uma passagem do Velho Testamento em “Gênesis” (as origens da humanidade) 18: “E o Senhor Deus disse, não é bom que o homem esteja só. Então, formou da terra todos os animais selvagens e todas as aves do céu; e os trouxe ao homem para ver como os chamaria; cada ser vivo teria um nome que o homem lhe desse”.
Há, assim, talvez por ignorância; talvez por superstição e medo esta lenda que corre à larga em nossa aldeia com passos de ema, passadas longas, ventos de Euros a Norte a Sul, nas Abóboras, na Rodagem, na Bomba, no Cruzeiro, no Centro Histórico, na Macário Ferreira, no Largo da Usina, no Largo da Federação, na 2 de Julho, dando conta que quando essas corujas passam sobre as cabeças de viventes, quer sejam pecadoras ou não, homens de jogos de dados ou homens do comércio; donzelas em seus selos ou aqueles que vendem o corpo; viúvas, fazendeiros, aguadeiros, etc, essas pessoas estão fadadas a morrer rapidamente, e a isso remetem esse agouro ao Rasga Mortalha que passa grunhindo, trinando um canto que parece um martelo batendo numa enxada, um ferreiro com fole em brasas a temperar um facão, um pano rasgado grwaaaaah com som intenso a amedrontar ouvidos, e as pessoas correm se protegem em marquises ou em copas de árvores, abrem sombrinhas e guardas chuvas quem estiverem com esses objetos em mãos, mas, que eu saiba, em registros no cemitério de nossa paróquia nenhum daqueles que ali foram sepultados foram devido a esses agouros e sim diante enfermidade, acidentes e/ou brigas.
Que teve, por exemplo, a ver a morte do finado Dagoberto do Caseb o Rasga Mortalha! se todo mundo presenciou, viu, anotou, gravou nas suas mentes, que sua morte resultou após uma bebedeira em bodega da Vista Alegre houve um desentendimento por causa do resultado de uma partida de futebol e o Adonias, homem até calmo e bom, que portava uma peixeira na cintura, se sentiu ofendido por qualquer dito e desferiu um golpe mortal no coração daquele.
Mas teve quem dissesse, como o Zoinho da Extrema que o Rasga Mortalha havia sobrevoado a trilha de andar do Dagoberto, dois dias antes do jogo e isso teria sido fatal para ele.
Assim, registram-se inúmeros casos. Uma fiel moradora da Macário Ferreira prendia as duas filhas numa gaiola temendo uma coruja que saia do Largo da Usina e seguia por esta rua até pousar numa copa da árvore existente em nosso cemitério para astuciar e com suas garras afiadas caçar ratos; um outro, no Tamarineiro, atirava com sua espingarda de cano longo e fino repleto de chumbo em qualquer ave que pousasse nas frondosas árvores, quer fosse uma jandaia ou um anum preto; um terceiro mandou podar todas as árvores da rua da Estação do Trem; um mentiroso e inventor de casos que mora no Largo da Igreja Nova fala horrores de um Rasga Mortalha que havia no chalé do Jovino; e vos digo e asseguro que o corujão que habita nosso templo, como já dito, graças a abnegação do sacristão é uma ave linda, de uma formosura admirável, uma coruja-do-campanário que só caça besouro, com plumas brancas, olhos negros sombrios, audição aguçada e que usa seu grito apenas como alerta, grito de alarme assim que algum intruso queria ocupar seu territórios, e na praça Luís Nogueira, são muitos as aves estrangeiras que querem ocupar as copas dos oitis, de pardais a bandos de andorinhas; de jandaias a morcegos bebedores de sangue; e nosso corujão os espanta, os amedronta, com seus gritos agudos e fortes, suas garras afiadas, mas, absolutamente nada que remeta a morte de humanos e se vocês quiserem podem ouvir testemunhas do que digo, vozes e falas de moradores desta praça, Lauro Murta de Oliveira, Reginaldo Dantas, José Mota da Silva, Juca Cândido, o vereador Totonho da Gata, as escrivãs Alice e Zina Hortélio, o Adauto Santiago, o Moacir Bacelar, então, sob a alegação de que nossa suindara - digo nossa porque sendo do sacristão também é minha, é dos fiéis, do povo de Deus - e está na bíblia que essa ave forte e de rápido voo é mencionada no Levítico (Lv 11) “que a lei proibia que se comessem por serem imundas”, mas, entenda-se, de carne impura e não saborosa, mas ave bela de Deus, de ser apreciada, admirada, com seu voo que parece um avião a jato, e representa o símbolo da liberdade, de espírito criativo e se alimenta de insetos, lagartos e pequenos mamíferos, tudo de acordo com os desígnios da natureza, ficando como único predador o homem e levantou-se alguns incréus de nossa aldeia insuflados por Zó, de que nosso corujão teria que ter sacrificado, morto, provavelmente guilhotinado em praça pública, em frente ao nosso coreto, sendo caçado à luz da noite com redes e fachos de lanternas, acusado de ser responsável, entre outras mortes, a de um boêmio que vivia a fazer serestas na praça, a de um motoristas de jeep Willys táxi e de um homem que soltava fogo pela boca na feira livre ganhando o pão de cada dia com chamas, em frente à loja de Tecidos de Sêo José Faustino e a turba, certa noite, em tempo de nossa quaresma capturou o corujão e quando soube disso vendo nosso sacristão em lágrimas, temendo pelo pior, a turba já levando-o para as imediações do coreto, onde se instalou uma guilhotina, apareci na porta do nosso tempo sagrado dei um grito assemelhado ao rasga mortalha do largo da usina, metade do povo se picou com medo e eu chamei Zó as falas, este segurando a coruja pelas pernas amarradas com um cipó, estufei o peito, enchi os pulmões de ar e gritei grwaaaaah a ponto da turba se amedrontar mais ainda, Zó abrir as mãos deixando o bicho voar e sair gritando pela praça: o “Rasga Mortalha” da Serrinha é o padre.
Vê, pois, meus queridos amados e a amadas de Deus, que a senhora Maizinha foi abençoada com a roda da fortuna e a perua que põe ovos de prata; e eu bafejado pela criatividade popular como um agourento matador, uma injúria. A vida é assim, uns alcançam o baú de ouro; outros o infortúnio, mesmo salvando aves. Deus abençoe a todos vocês.
***
Antes de darmos prosseguimento às falas, quando o vigário acabou de contar a sua história, o sarcástico “cara de cotia”, sem levantar-se, mas falando alto e claramente assim orou: - Pelas barbas do papa Júlio II estou admirado com essa narrativa jocosa deste pastor de almas e como o diabo não dorme, creio, apenas assim penso e não é uma afirmativa que venha a macular, a manchar sua honra, o representante do Senhor em nossa aldeia, pareceu-me, isto sim, o anjo das trevas, com poderes sobre humanos.
O vigário – confesso aos nossos leitores – se encolerizou, sua cara se transformou numa maçã argentina, dessas bem rosas e, para piorar a situação, a senhora representante do bairro da Rodagem, se fez anunciar pedindo que o “cara de cotia” fosse mais transparentes e explicasse o que significava esse tal anjo das trevas, pois, nem todos presentes entendiam esses termos do além e o sarcástico representante do bairro das Abóboras não se fez de rogado e explicou que era o “cornudo, o chifrudo, aquele que o povo chama também capiroto, belzebu”.
Outros com acento na távola sorriam a dentes alvos expostos, diriam até que iniciaram uma gargalhada, então, acionei a sineta e enquanto pedia respeito, o vigário se levantou novamente e dedo em riste na direção do “cara de cotia”, já o chamando de indecente e “focinho de mico com juba de leão”, e ressalvou que, só quem poderia julgá-lo e fazer referências à sua pessoa era Deus, que tudo comanda e ordena, não cabendo ao homem essa missão ainda mais partindo de um ser insignificante, este sim, observem o seu semblante é a própria figura do “tinhoso, do mafarrico”. E, em seguida benzeu-se três vezes e se sentou.