Cultura

O HOMEM VERDE DO GINÁSIO, 3: A MENINA QUE FALA COM OS BICHOS

- O padre ficou tão admirado, que a chamou ao altar/ Menina isso é milagre de Deus, faça-a orar/ Os fiéis ficaram admirados/ E se benzeram com as mãos/ A galinha se ajeitou no púlpito e cantou/ A ave Maria do senhor.
Tasso Franco , Salvador | 06/09/2023 às 22:36
A menina conversa com a perua e o sapo observada pelo gato
Foto: Stúdio Borega
                                                                  3
PRÓLOGO: 

Depois de minha oração sobre “O homem Verde do Ginásio” houve um silêncio desses em que até uma mosca ao pousar num bolo de chocolate ouve-se o zumbir de suas asas. Os passos do garçom Xerôso ao se movimentar no salão eram audíveis, primeiro ao servir-me um pouco d’água num copo de alumínio com o jorro do líquido caindo do gargalo de uma moringa, cachoeirinha perceptível, e a zoada do ranger dos seus sapatos no piso azulejado xadrez, obra do mestre Zé Ramos. 

Em seguida, percebi que uma madame alinhada, elegante, o chamara para também saborear daquela água contendo o verde-azul metálico das cantáridas, sabem vocês dos milagres que essa água da Serrinha promove, um tesão alucinante, e percebi, ao mesmo tempo, que ela gostaria de falar e ser a próxima a narrar seu conto.

- A madame fique à vontade para usar da palavra, dirigi-me a ela, franqueando-a.

Em instantes, após limpar a boca com um lenço de cambraia, com toques de sutileza e sensualidade, levantou-se da cadeira e assim se apresentou, como sendo a senhora Jana Pinharada, representante das comunidades do Tanque Grande, Cobiça e Retiro e iria falar sobre um conto de amor ressaltando: “Ao contrário do que narrou o nobre jornalista, embora o respeitando, haja visto que houve uma certa polêmica em sua veracidade, o que narrarei, creio, deverá agradar a todos”.

De minha parte, nada rebati, e olhei apenas para seu semblante, parecia-me uma mulher madura nos seus 50 anos de idade, bela, cabelos a espanhola parecendo ser uma andaluz, descendente, em provável especulação, de Sevilha ou Córdoba, unhas prateadas como uma deusa, sobrancelhas bem feitas e testa proeminente, o que demonstrava ser inteligente além dos normais, um broche de esmeralda em formato de besouro na altura do seio esquerdo, autorizei-a que falasse e pedi silêncio no salão agitando minha sineta: - Vamos ouvir a madame.

COMEÇA ENTÃO O CONTO DA MENINA QUE FALA COM OS BICHOS

  Vou falar de improviso do que sei da minha cultura em estudos e vocês todos ou quase todos conhecem que nossa paróquia do Retiro é uma das mais antigas da Serrinha e por lá passaram muitos párocos de grande saber e muito aprendi com eles, inclusive o secular padre Evaristo cantador, bebedor e poeta.

  E também vocês têm algum conhecimento, assim creio, porque está na literatura religiosa que frade Antônio ao andar em peregrinação pela Itália, no século XIII, deparou-se na localidade de Rimini com um grupo de pessoas e ao tentar sua pregação cristã "conduzindo-os pela luz da fé e da verdade" foi repelido e segundo o livro "I Fioratti" os incrédulos reagiram às suas palavras. 

  O bondoso Fernando Bulhões, já com o nome de Antônio e a bata franciscana, mas, ainda sem ser o glorioso Santo Antônio dirigiu-se até à beira do mar na parte da junção com um rio e convocou os peixes, a "ouvir as palavras de Deus" e os peixes apareceram em grande quantidade e colocaram suas cabeças fora d'água e ficaram abrindo e fechando suas bocas e ouvindo agradecidos a fala do frade. Fato sobejamente conhecido como “o milagre dos peixes”

  Quando os incrédulos foram avisados dessa pregação do frade aos peixes – naquela época chamados de hereges - houve uma correria dos infiéis até esse local, os quais, admirados com o poder da oratória do religioso se atiraram aos seus pés pedindo perdão e se convertendo ao cristianismo.

  E, nessa mesma Itália, nas colinas próximas de Assis, entre Cannara e Bevagna, hoje, onde existe o convento dos franciscanos, o frei Francisco acompanhado dos freis Masseu e Ângelo, disse aos seus irmãos da igreja que iria pregar as "nossas irmãzinhas aves". 

 Depois de pigarrear e beber um pouco d’água prosseguiu a andaluz: - Os freis ficaram admirados com tais palavras, mas assistiram a pregação: "Minhas irmãzinhas aves, vocês devem muito a Deus, o criador, e por isso em todos os locais que estiverem devem louvá-lo" e seguiu falando mais frases e várias aves começaram a abrir os bicos e esticarem os pescoço, à medida que abriam as asas e inclinavam as cabeças até a terra cantando. No final, Francisco fez o sinal da cruz e as aves se retiraram em revoada juntas e cantando.

  E, assim, o papa Gregório IX tornou Francisco santo em 16 de julho de 1228, dois anos após a sua morte; e a Antônio também santo em 30 de maio de 1232, um ano após a sua morte, o que aconteceu em 13 de junho de 1231.

  Escreveu, também, o poeta Tchecov, o mais proeminente da Rússia do século XIX, e vou repetir aqui o que um dos seus personagens chamado Tusenbach disse num debate, “que as cegonhas voam, voam, e sejam quais forem os pensamentos , grandes ou pequenos, errantes em suas cabeças, elas continuarão a voar, sem saber porque e para onde. Os pássaros voam e voarão, independente dos possíveis filósofos que sujam entre eles...e poderão filosofar à vontade contanto que voem”.

  Toda pessoa, portanto, deve ter uma fé, sem a qual sua vida fica vazia. É preciso saber, sim, para onde voaram as aves de São Francisco de Assis, e elas foram para o céu; as cegonhas, como nascem as crianças e os bichos e porque as estrelas não caem do firmamento.

  Em seguida, a senhora solicitou de Xêroso que colocasse um pouco de vinho em sua caneca, que fosse tinto encorpado, selo protegido, e prosseguiu dizendo que conhecia uma menina que morava numa fazenda cuja sede se chamava "Casa Rosada" e onde havia 7 mulheres, avó, mães e filhas, e que, uma delas fala com os bichos, isso, desde quando ela era pequenina e salvou um pintinho numa lagoinha com respiração boca a boca, depois aqueceu-o numa toalha felpuda dormindo com ele a noite toda.
 
  No outro dia, o pintinho já estava ciscando no terreiro e, esse pintinho, ainda quando era menino, entendia tudo o que a menina falava, dizendo para ele ter cuidado com o cão mandacaru, que ele não dava encosto e gostava de comer pintinhos, era abusado, e o pintinho balançava a cabeça dizendo que estava entendendo tudo e evitaria contato com mandacaru, que deveria evitar a encosta da lagoinha, local escorregadio, pois poderia cair novamente  e este balançava a cabeça e piava, revelando que por lá não iria nunca mais.

  E toda vez que a menina falava "não, não, não" era para que ele evitasse de se aproximar do fogão à lenha pois poderia ser torrado. Certa feita, o vaqueiro da fazendo ouviu quando o pintinho teria repetido o "não, não, não" o que é ficou admirado com a sua sabedoria.

  E mais disse a senhora andaluz que não saberia dizer como era o nome completo da menina e que no povoado da Chapada e na igrejinha do Retiro todo mundo a conhecida como Luluba e que muitos casos dela conversando com os bichos foram registrados.

  Certa feita - prosseguiu - o pessoal da Pindorama, uma empresa que fazia filmagens e gravações se prontificou a gravar tudo e fazer uma reportagem para ser divulgado na Itália, que havia um padre italiano na Serrinha que poderia intermediar esse negócio na TV italiana e, quiçá, renderia uma boa grana e isso só não foi feito porque a mãe da menina recusou, desconfiado do tal padre, mas é certo que o maior poeta popular da Serra, um cantador de versos chamado Galeguinho do Subaé presenciou conversas da menina com uma galinha, não sabendo dizer se fora o pintinho que ela salvou e que havia crescido, e produziu um cordel que foi vendido aqui na feira livre do Largo da Federação onde as vendedoras de panelas de barros e esteira mercam seus produtos e, creio, alguns dos senhores conhecem.

   Em seguida, tomou fôlego para prosseguir na sua fala, deu outro tapa no vinho – tenho a impressão que gostava do tinto – e meteu uma das mãos na bolsa e retirou o cordel intitulado “O Diálogo da menina da Serrinha com a galinha do Retiro” e leu dois dos versos: - A menina chegou no Retiro para a missa do domingo/Trazia debaixo do braço/ Uma galinha de pena e bico/ Ave falante e esperta que causou admiração/ Toda vez que ela dizia uma frase/ A galinha repetia a oração. 

  - O padre ficou tão admirado, que a chamou ao altar/ Menina isso é milagre de Deus, faça-a orar/ Os fiéis ficaram admirados/ E se benzeram com as mãos/ A galinha se ajeitou no púlpito e cantou/ A ave Maria do senhor.

  Nisso, o padre Demôndaco Ulisses representante da igreja católica e que ouvia atentamente a fala da madame, interveio: - Esse conto é belo e dou fé e acredito nos milagres de Santo Antônio e São Francisco de Assis, porém, dessa jovem serrinha parece-me mais uma invenção, uma fábula de La Fontaine.

  O crente Fecundo Olavo que estava no lado oposto ao reverendo saiu em defesa da andaluz: - Ora, ninguém vai pedir ao papa Pio XII para beatificar essa menina até porque não se trata de uma freira nem estamos no medievo como no tempo de Gregório IX, então, vamos respeitar a fala da madame.

Toquei a sineta e determinei que ambos silenciassem e mandei que ela continuasse a narrar seu conto:

- Eu não estou pedindo para ninguém acreditar ou deixar de acreditar, como disse o jornalista na inicial que no açude da bomba tem um monstro que engole gente e todo mundo na Serrinha sabe que se o Rasga Mortalha passar por cima da cabeça de alguém três vezes alternadas na praça Luís Nogueira, ele, que diz o povo mora no oco da matriz, essa pessoa que marcou está com os dias contados e morre logo, então, o que eu falo é o que ouço na minha comunidade.

  E asseguro-lhes, porque presenciei a fala da avó dela na bodega do Jacinto, no Retiro, uma senhora que se chama Maizinha, costureira famosa, moradora na Casa Rosada, gente de alta responsabilidade na altura dos seus 70 anos de vida, ela estava do meu lado e após a missa do domingo fomos tomar umas cervejas para abrir o apetite e tomamos meio engradado, e temos testemunhas disso, Tilsinha dos Murtas estava conosco, Donizete e Domires, irmãos gêmeos também presentes, dona Eulália rezadeira e outros, e ela contou que não de hoje nem de ontem que sua neta conversa com os bichos, com galinhas, sapos, rãs, saqués, cabras, cabritos, cachorros, sendo intima de uma perua.

  Pelas barbas dos bodes da Bela Vista. Houve risos na távola redonda. Passei o rabo de olho em 360 graus e vi quem era o galhofeiro, salvo engano, o representante do bairro das Abóboras, o qual, falando miúdo, quase para nem todos ouvir, com seu risinho de hiena soletrava, “Só faltava essa, uma perua, uma perua...conheço outros tipos de peruas”.

A madame que era dona da palavra tinha ouvidos aguçados e respondeu na tampa: sim uma perua e além dela, uma gata, ambas, segundo a vovó, sua neta e elas é quem puxavam em dias alternados a novena de Santo Antônio que dona Hortência promovia na capela do Tanque Grande.

  E, mais, que, ultimamente, algumas galinhas do seu criatório estavam pondo ovos de prata, não se sabe, ainda, se graças a essa conversa da criança com elas, e que os negócios da família tinham melhorado sobremaneira, uma vez que o joalheiro Manoelito dos Anéis, estabelecido na Araújo Pinho próximo ao Mercado Municipal pagava por meia dúzia de ovos de prata o que ela não conseguia vendendo 30 dúzias dos ovos comuns e, por conseguinte, a roda da fortuna que, vocês sabem chega para poucos, bateu na casa dela e, como tal, iria pagar a conta das cervejas que consumimos em Jacinto. 

E iria comprar um aero willys ou uma caminhonete Chevrolet porque todos os ricos da Serrinha têm esses carros e assim seria.

Novamente, a hiena das Abóboras, homem sarcástico, cara de cotia, nariz fino, arremata sobre a perua, “adoro comer peruas, de preferências aquelas que servem bocetas”.

Toquei a sineta e pedi respeito.

A andaluz concluiu: sim – soluçou - a menina vai todos os dias, na boca da noite, da Fazenda das 7 Mulheres até a capela do Tanque Grande, é um pulo, sobe a ladeira, um dia com a gata; no outro dia com a perua se instalam nas proximidades do altar ornamentado com flores do campo amarelas e vermelhas, algumas rosas colhidas no quinta da senhora Dagmar, vizinha da Hortência, e elas, a menina e a perua, com suas vozes de barítono entoam o canto inicial louvando a Antônio de Lisboa e Pádua, o “glorioso Santo Antônio rogai por nós”; e noutro dia, com a gatinha fulô, o mesmo canto, a gatinha com sua voz fina em falsete o que é uma graça.

E assim encerrou o seu conto sobre a menina que tem essa capacidade divinatória de falar com os bichos.