Cultura

O ANDARILHO DA CIDADE DA BAHIA, CAP 19: O AMOLADOR DE TESOURAS E FACAS

É a vida, andarilho que cuida das letras é sonhador; e andarilho que amola facas e tesouras trabalhador
Tasso Franco , Salvador | 03/09/2023 às 10:40
O amolador de facas e tesouras que a as novas tecnologias ainda não acabaou
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  Toda vez que ele passa em minha rua eu ainda deitado no leito da cama o identifico imediatamente e lembro-me do deus Pã, um dos mais antigos da mitologia grega

Ser dos bosques e pastagens; rebanhos e pastores, Pã habitava uma gruta e se divertia nas florestas caçando ou fornicando as ninfas, um belo fauno de viris virtudes

Retratado como metade homem e metade bode, chifres e longa barba, era um ávido cortejador de ninfas e também temido e apontado como causador do pânico, pois, reinando nas matas o local era próspero em espíritos, como até hoje são as virgens florestas

Pã, o amante das ninfas e da música, seria, também, o senhor pânico! Que loucura. Parece um contra senso a síndrome do pânico ter sido originária de ser tão admirável paquerador de donzelas

As ninfas, filantropos leitores, são retratadas pelos pintores europeus como belíssimas - símbolos da pureza - e povoavam à mancheia os bosques e aqul'outras áreas contemplativas do amor

A pena de Thomas Bulfinch no "Livro de Ouro da Mitologia" diz que havia as Náiades, que governavam regatos e fontes assemelhando-se às sereias; as Oréadas, das montanhas e grutas; e as Nereidas, donas do mar e consideradas imortais, enquanto as Driádes, dos bosques, morriam como as árvores onde nasciam e moravam

Naquele tempo - ainda não existia motosserra - era um pecado capital derrubar uma árvore, pois, significava como se tivesse matando uma driáde, cortando a cabeça de uma jovem 

Pã fazia a alegria dessas ninfas com sua beleza e amor, com suas melodias e gracejos conquistadores
Milton poetizou: Em mais sombreado e protegido abrigo/Pã ou Silvano não dormiam, e as ninfas/ E os faunos outro igual não visitaram  

Numa das suas caminhadas, Pã deparou-se com a ninfa Syrinx, filha do Deus-Rio Ladon, e se apaixonou. Ora, Pã, amante da música e símbolo do universo, acostumado a ser conquistado, de repente viu-se rejeitado

Syrinx, a mais bela entre as belas - ainda não existia o Ilê Aiyê - não se deixou seduzir e como tinha habilidade de correr pelas florestas e montanhas por longos períodos sem se cansar fugiu

Pã, o Fauno latino, a perseguiu sem cessar. Exausta, Syrinx correu para a beira do rio pedindo ajuda a seu pai e às suas irmãs, as ninfas ladônides

Momentos antes dos braços de Pã envolverem seu corpo e possuí-la, ela desapareceu no ar e se transformou em juncos graças ao poder de Ladon

Bravio, enciumado da natureza, Pã quebrou os juncos em pedaços e um vento forte soprou através deles emitindo um belo som como se fosse doce melodia saindo dos lábios e da voz de Syrinx 

Apavorado, Pã selecionou alguns pedaços de junco, uniu-os com cera e fios e construiu uma flauta, conhecida daquele dia em diante como flauta de Syrinx ou flauta de Pã, o que representa o seu amor perdido

Quando os peruanos e os bolivianos, nos Andes, tocam flautas de bambus na Praça da Sé o sentimento de quem ouve é de paz, serenidade e ao mesmo tempo de busca por um amor perdido nas brumas andinas

 E o que teria em semelhança o pobre amolador de tesouras e facas a passar sempre em nossa rua ostentando um imenso chapéu de palha para se proteger do sol e usando sandálias havaianas com seu carrinho de esmeril?

Ora, a flauta de Pã estilizada em plástiCo, rústica e com o som agradável, porém, monótono, de uma só carretilha tirililalá, tirililalá, tirililalá

Irritante esse Pã urbano adorado pelas ninfas senhoras do meu prédio, as Senhóridas, e outras madames de prédios adiante, as Madameróidas, que usam os seus serviços para afiar as facas de cozinha e as tesouras
Certa quarta de São Eustáquio dessas em que amanheço com o ovo virado ouça nosso Pã urbano a tirililalá, sem cessar, chego à janela do quarto e grito: Ei! satanás, vou descer para amolar essa tesoura - aponto o objeto para ele

Pã estaciona sua máquina de afiar, vira-a transformando a roda que desliza pelo asfalto num motor que envolta numa correia e diante da força humana do seu pé posto no pedal o movimenta fazendo com que, o esmeril gire a mil por hora 

Desço donde moro e levo comigo uma tesoura que uso para cortar papéis, pequenos galhos de plantas, pacotes que chegam do Correios, rude, sega de corte; e uma outra, mais delicada, fio nobre, que aparo o bigode, pontas da barba e hastes das sobrancelhas

Tete à tete a Pã digo: quanto custa para amolar essas duas tesouras, essa primeira, por inteiro as duas partes; e este outra, a ponta que a quero mais afiada do que uma navalha

Ora, meu senhor, cobro 30 moedas de real tal Judas e garanto-vos que com a primeira cortarás até papel crepom de uma vez e na segunda farei uma ponta mais afiada do que os punhais do bando de Lampião e apararás o bigode de Corisco se vivo fosse

Poderei pendurá-lo nesta amendoeira se estiveres mentindo erudito Pã e se falas a verdade aqui tens as 30 moedas de real para o trabalho

Porei mãos à obra e não sei a que pessoa falas ao chamar-se de Pã, pois, sendo Francisco, o amolador, vulgo Chico Sarará, uso esse realejo que emite o tirililalá repetidas vezes para ser identificado pelas madames e suas tesouras

Como assim, o senhor não sabe tocar uma outra música, não tens uma gaita de boca harmônica, o senhor ousa andar pelos bairros apenas com esse tirililalá, à cata de clientes

Sou um andarilho desta cidade e sei de cor e salteado por onde ando, em todas as ruas que não memorizo todos os nomes e guardo na cachola apenas os dizeres das principais - a Sabino, a Centenário, a Sete, a Marques de Caravelas, a Euclides da Cunha, o Corredor da Vitória, porém, as transversais e paralelas só sei ir a cada dia de trabalho

Então, ouça-me, eu também sou o andarilho, a escrever prosas, em roteiro que traço à gosto para encontrar personagens e tipos como você e outros tantos que habitam e vagueiam por essa cidade

Eu sou um trabalhador com calos nos pés e nas mãos - falava enquanto amolava a tesoura no esmeril - e não um vendedor de sonhos, presto um serviço

Ora - reprimo-o - sem os sonhos, sem que os poetas coloquem uma pitada de esperança no mundo, ninguém sobreviveria

Suas tesouras já estão afiadas: pegou uma folha da amendoeira que caíra no chão e cortou-a ao meio e aproximando-se de mim com a tesoura mais delicada pediu permissão para aparar a ponta do meu bigode
Bravo. Fizeste um bom serviço. Aqui estão as 30 moedas de real dei-me as tesouras. Agora, caminhemos juntos 

Francisco olhou-me desconfiado. Revirou sua máquina de amolar e começou a andar em direção ao Chame-Chame e eu fui seguindo-o até que ele retirou o realejo do bolso e soprou estridente tirilalalá, tirililalá, tirililalá... e, eu, em pânico, como Pã, perdido no bosque urbano repleto de altos prédios recolhi-me 

Enquanto isso, na soleira da escadinha de acesso ao meu prédio, ainda vi uma madame do alto de um dos apartamentos na Ladeira José Sátiro acenando para o sarará com uma tesoura de costureira em mãos

É a vida, andarilho que cuida das letras é um sonhador; andarilho que amola facas e tesouras um trabalhador

Ambos personagens desta cidade imortal da Bahia