Cultura

O HOMEM VERDE DO GINÁSIO, CONTO DE ABERTURA DO NOVO LIVRO DE TF

Ser misterioso que apareceu na Serra e tinha hábitos estranhos e andava com uma mala em mãos, usava uma machadinha e adorava sangue
Tasso Franco ,  Salvador | 31/08/2023 às 08:43
Novo livro de Tasso Franco
Foto: Stúdio Borega
  Durante muitos anos relutei em narrar esse relato, nem sei se alguém vai acreditar nele, nem peço que acreditem nem deixe de fazê-lo. É um mantra que me acompanha desde quando eu era ginasiano e o presenciei, porém, tinha medo de contar para que o mundo tomasse conhecimento desse fato a ser amplamente divulgado. Só não o fiz antes porque temia a morte e seria uma ingenuidade me expor a ela, a senhora soberana da cova dos 7 palmos.

   Poderia ter narrado em versos, uma prosa poética. Senti que minha pena não era capaz disso. Cancelei a ideia. Não sou um Whitman, um Pessoa, sim, apenas um escriba testemunha auditiva e visual daquele que minha aldeia tinha em conta - com certeza quase absoluta - mas também sem certeza alguma, só conjecturas sem provas, que o indivíduo comia crianças, literal. Não se sabe se “in natura” ou carne moqueada como os tupinambás antropófagos, seus ancestrais. Nem mesmo sei o nome dele para fazer tal descrição e afirmativa. Todos na minha aldeia o chamavam de "O Homem Verde do Ginásio", assim era conhecido, apelidado, evocado pela população que não se sentia amedrontada com sua presença, convivia. 

   Desde minha infância acompanho essa história. Preferi guardar a história no meu baú e quando fiquei adulto falei comigo mesmo se seria a época de colocar tudo no papel, mas desisti. Agora, que estou velho e o “monstro” já morreu, falo essa palavra hoje, mas, não falava antes. Morreu há anos, mas, ainda assim, poderia ter a capacidade de voltar e me matar. Então, vou contar, porque estou próximo de partir para outra esfera espiritual e tanto faz como tanto fez se ele tiver ainda a capacidade de reencarnar, creio que não tem mais.

   O conheci, pessoalmente. Achava-o extremamente estranho, alto, pálido como vela grande de cera em altar, cara permanente de defunto, bochechas murchas, pele esverdeada - daí certamente o epíteto - olhos negros miúdos e pra dentro, olhar aterrorizante, penetrante como um raio desses que riscam o céu de nossa aldeia em época das trovoadas, cabelos ralos como aqueles que o povo chama de cabelo de espigas de milhos, sempre cobertos com um chapéu negro de abas curtas, terno branco engomado modelo Zé da Bomba e sapatos pretos brilhantes nos pés. Morava por consentimento no sótão de um anexo ao ginásio daí o complemento do seu nome.

  Ao que se comentava ele chegou de uma hora pra outra, porque nativo da aldeia não era, não tinha nenhum parente nem aderente entre nós, não frequentava a igreja matriz de Sant’Anna, não ia a casa de quem quer que seja, não participava de cultos noutros centros religiosos, não torcia por nenhum dos nossos times de futebol, não se exercitava numa das nossas academias de alteres, não dançava em nossos clubes, não cortava cabelo no Ponto Central, diria que só ia a um restaurante popular do mercado municipal onde se alimentava. Chegava calado, almoçava e saia mudo.

   De que planeta teria vindo esse homem verde?

   De Marte parecia pouco provável porque era alto e os marcianos são baixinhos e orelhudos e ele tinha orelhas normais, bem ajustadas ao seu tamanho e à cabeça. Alguma senhora desassistida poderia até se apaixonar por ele, por posto ser uma pessoa elegante, de longe, mas, de perto, com a cor verde, sem sangue nas veias, creio que nenhuma das nossas senhoras mesmo as viúvas carentes de carinho, de um encosto, não topariam viver com ele. Imaginem esse homem sem roupa! 

   Seria da lua?

   Improvável. A lua é a mãe dos lobisomens, dos morcegos, dos vampiros, e como sabemos são lanzudos, fortes, robustos, ágeis, e o “Homem Verde do Ginásio” parecia fragilizado, andar lento, corcova, cambaleante como vara de bambu que enverga mas não cai, bambo, a viver num sótão, sozinho.

   Dizem que chegou numa noite de escuridão com poucas estrelas no céu e se abrigou nas beiradas do prédio. No outro dia pediu a assistente social (é o que se supõe) para ficar abrigado, chovia muito. Dava pra ver a imensa praça à frente dos seus olhos, de chão batido, avermelhado, um selão de mercúrio. A diretora, penalizada com aquele “extra terrestre” - assim lhe parecia consentiu - e ele ficou, varreu a frente do prédio e foi permanecendo onde está.

   Ao que tudo leva a crer trata-se de um terráqueo aposentado com soldo mensal limitado. Não se sabe de onde, de que montanha ou de que rincão

   A primeira suspeita que recaiu sobre ele partiu da senhora M que sentiu falta do seu filho pequeno. Como o moleque, de 7 para 8 anos de idade, era muito travesso, esperto, atirado e gostava de tomar banho na Bomba, o lago de minha aldeia, supunha que teria morrido afogado por lá. 

  O corpo da criança nunca foi encontrado mesmo depois que a senhora M prestou queixa na Polícia e o delegado solicitou ao Corpo de Salvamento que fizesse uma varredura no lago. Ela até se conformou quando o comandante Y, do CS, disse que ele poderia ter sido engolido por um monstro que habitava o fundo do açude tal ou parecido ao monstro do Lago Ness, ainda que menor, mas, com capacidade de engolir um menino numa bocada.

   Depois de muito chorar e se lamentar da morte do filho, assim de forma tão surreal, a senhora M recebeu um informe do professor P, em linguagem criptografada, carta com uma máscara em recortes, atribuindo a morte da criança ao “Homem Verde do Ginásio” o qual tinha fama de comer crianças. Fama que, vinha de outras localidades onde ele morou, mas, não tinha prova disso. 

   Sugeria o professor que ela deveria procurar o delegado C, homem austero, perspicaz, o qual, tinha uma equipe do nível do inspetor Closeau, de dar inveja a turma de Auguste Dupin e relatar o fato.

   A senhora M ficou impressionada com aquele informe do professor P, não quis de pronto denunciar o “Homem Verde” e passou a observá-lo, a acompanhar seus passos pela aldeia e ao mercado. Fez uma campana por lá e viu que “olhos miúdos” chegava calado, comia e saia mudo. Notou, no entanto, que chegava sempre com uma maleta em mãos e saia com a maleta com algo dentro, um litro ou dois litros contendo água, e refeições embaladas em papel alumínio. 

   A senhora M recebeu um segundo informe do professor P este dizendo que também investigava a vida do “Homem Verde” e segundo testemunhas oculares, daquela maleta que sempre levava consigo carregava uma machadinha afiada, dois litros vazios e uma toalha, objetos que usava para degolar humanos, recolher o sangue nos vasos, enrolar o corpo esquartejado na toalha. Dito isso, sem provas, mas era o que sabia e relatava. O delegado que fosse apurar. Portanto, ele teria degolado o seu filho e comido como faziam os tupinambás.

   A senhora M arrepiou os cabelos dos braços, das pernas e das partes íntimas, e ficou com muito medo. Mesmo apavorada tomou coragem e foi até a delegacia e narrou tudo ao plantonista que mandou o escrivão Júpiter anotar detalhes, datilografar e ela assinar embaixo do papel para que o fato fosse investigado. E a senhora M relutou em assinar, com medo de morrer, porém assinou.

  O delegado, de posse de uma queixa real destacou o inspetor Netuno para investigar o caso e este entrou em campo com toda a fama que possuía. 

  Passou a observar o Verde desde quando saia do sótão para ir à cidade, não poderia invadir a residência do alienígena porque não possuía uma ordem judicial, tudo ainda estava nas preliminares, em suposições, e viu que o homem era atormentador, mas, limpo, asseado, terno bem ajustado ao corpo, uma girafa de terno, confirmava que tinha cor verde, carregava sempre uma maleta consigo, teria algum sentido patológico que bebesse sangue porque não tinha uma gota de sangue visível no corpo, que tinha cara de psicopata como lhe falara o delegado, pareceu-lhe, de fato, antissocial, comportamento que leva a delinquência, ao crime, a falta de remorso, a dominância, e tudo isso pareceu-lhe ao analisar o perfil do investigado, que, de fato, poderia matar crianças, come-las e não ter o menor arrependimento, seguir a vida normal. 

  Esteve com ele cara a cara no restaurante CK, mas não poderia abordá-lo sem mais nem menos, porque não cometera qualquer delito e ficou apenas a observá-lo mastigar uma coxa de galinha, arroz, macarrão e salada e notou que levou um farnel, mas, na maleta que abriu para colocar a comida não havia os litros para recolher presumível sangue nem a machadinha, e não tinha espaço no corpo do terno para guardá-las fora da mala, porque o terno estava bem ajustado.

  Esses foram os primeiros passos e observações do detetive Netuno seguido de uma campana noturna em ponto estratégico da praça onde ficava o ginásio, em vão, porque em três dias que esteve por lá, sem dormir, o homem não saiu da toca. O que frustrou a expectativa. 

  Na semana seguinte deu mais sorte, no CK, quando observou o “Verde” abrir a mala depois de almoçar uma carne de fumeiro, viu dois litros vazios que entregou ao atendente e uma toalha onde acomodava os litros, e havia também um canivete suíço.

  Então, o abordou se apresentando como policial querendo saber do que se tratava, e o “Verde” calmo estava, calmo ficou, disse em poucas palavras que os litros eram para conter água, que também bebia água, e Netuno notou que a maleta tinha um fundo falso e descobriu a machadinha bem acomodada nele, e questionou-o sobre a arma e este disse que era para quebrar ossos dos frangos que comprava no restaurante para jantar.

   Conduzido à delegacia, sem a citação à morte da criança, de quem era acusado sem provas pela senhora M, Netuno levou-o ao delegado e o fato foi trazido à tona, o “Verde” calmo estava, calmo permaneceu, e disse sobre a possível morte da criança que suas mãos eram limpas e nunca viram sinais de sangue, que era cristão ortodoxo, temente a Deus e essa era uma acusação caluniosa, injuriosa, e que estava à disposição da Polícia, que o inspetor poderia ir à sua morada para verificar como vivia, de forma simples, ocupando uma cama de solteiro, uma televisão, a bíblia, o livro de São Cipriano, e um cabide para seu terno. 

   E Netuno destacado para esta missão se fez acompanhar de um perito e vasculharam o sótão, que tinha pequena área para morar e nada encontraram, salvo o que já havia sido confirmado pelo Verde na delegacia, sendo que havia ainda um fogão de 4 bocas com forno, um quadro de uma paisagem lunática, o que fez com que o delegado liberasse o “Verde”.
                                                                           ***
   Passados 30 dias dessas preliminares , uma senhora viúva herdeira da Padaria Fidelis, muito conhecida na nossa aldeia, pessoa recatada e que vivia atrás do balcão tocando o negócio deixado pelo esposo, adentrou a delegacia para prestar uma queixa do desaparecimento do seu neto no bosque que, por coincidência, ficava nos fundos do prédio do ginásio, dito por ela em lágrimas que o menino saiu para pegar passarinhos levando consigo uma gaiola e um alçapão, e não mais voltou para casa, e nas diligências preliminares feitas na área do bosque, até as proximidades da “Fonte da Perdição” onde havia uma placa de "Proibido entrar nessa área da mata", só foi encontrado a gaiola e um par de sandálias.

   O delegado ponderou a senhora viúva se ela sabia que no bosque há uma área proibida de circulação de pessoas, pois, informações do alcaide da aldeia há placas avisando da existência de caiporas, vampiros e lobisomens depois do córrego onde há a Fonte da Perdição, sendo provável, não assegurava - mandaria Netuno investigar para depois ter certeza no que falava - de que o garoto poderia ter entrado na zona de perigo e sido devorado pelas feras. Havia muitas histórias na aldeia nessa direção, em outras épocas, de antecessores deles na especializada com registros bem documentados. 

   A mulher disse que sabia disso, o menino tinha sido avisado, mas, o moleque era travesso demais e pode ter desobedecido. Depois, tinha pouca leitura, apenas 8 anos de idade, e não deve ter compreendido o que estava escrito nas placas. Dito isso, pediu desculpas ao delegado e disse que confiava na investigação, já tinha conhecimento da fama e da eficiência de Netuno, e o que mais gostaria era de ter seu netinho de volta ao lar, ficando muito agradecida a ele e aos seus se isso acontecesse.

   Netuno e sua equipe se deslocaram para o bosque e viram que a cena do crime havia sido adulterada, a gaiola que a senhora havia citado, já não se encontrava no local, o par de chinelos, também, e ficaram sem ter uma referência mais precisa para dar continuidade a investigação e só não parou por aí porque próximo a fonte, junto a uma pedra lisa, encontrou um tufo de cabelos e sangue no local, um pouco além da sinalização, na área proibida e de domínio das feras, ao que tudo indica deixado por quem levou o menino, provavelmente um lobisomem crina forte e de garras afiadas que lhe suspendeu pelos cabelos. 

   Não seguiu adiante além do que permitia as placas temente de também ser degolado, pois, embora ele e os seus dois ajudantes estivessem armados com fuzis sabiam da força e do magnetismo desses seres anormais. Que eles ficassem lá na deles ou que o delegado solicitasse ao alcaide que pedisse a autoridades maior tropas da Força Nacional para acabar de vez com essa raça e deixasse o bosque inteiramente a disposições dos humanos, sem riscos. 

   O relatório do detetive Netuno era conclusivo nessa direção, não havendo sinais de que um crina ou um lupina tenha degolado e comido a criança; nem poderia dizer que não porque os lubis são ardilosos e vivem em mata fechada onde ninguém entra e ninguém há de saber o que fazem. 

  O delegado então mandou chamar a viúva e lhe comunicou a conclusão que havia chegado, que confiava em absoluto total nos dizeres postos em laudo do detetive, com fotos, mapas, ilustrações da mata e do córrego e disse que se ela ficou com a gaiola e os chinelos usados pela criança, que guardasse com lembranças do menor.
                                                                      ****
  Passada menos de uma semana, a viúva ao abrir a porta principal da padaria encontrou um envelope lacrado endereçado a ela e quando abriu que leu o conteúdo que havia dentro do envelope, tinha uma discrição criptografada, induzindo que o seu netinho tinha sido vítima do “Homem Verde do Ginásio” e que a conversa do delegado, divulgada numa emissora de rádio, era fiada, que o detetive Netuno era de fritar bolinhos, já falhara noutra investigação do menino que também foi comido pelo “Verde” e a especializada atribuiu a um afogamento na bomba e que ela voltasse e falasse isso ao delegado, omitindo a crítica a Netuno, policial esforçado mas pouco investigativo, pouco detalhista, e que se o delegado não reabrisse o inquérito ela contratasse um detetive particular na aldeia e havia bons, excelentes profissionais, ele próprio, o professor P que assinava a carta, já contratara um deles e fazia suas próprias investigações, por isso mesmo afirmava que o “Verde”, sim, era o assassino.

   A viúva ao ler a carta empalideceu, tinha pintado as unhas das mãos e dos pés de um rosa claro e se tornaram brancos, seus lábios ficaram grudados sem dar palavra, como se estivessem untados de goma arábica, conteve-se para não urinar na calcinha, colocou a carta na bolsa, trabalhou no atendimento dos clientes da manhã e seguiu para a delegacia, resoluta, a dizer poucas e boas ao delegado - poupando Netuno - mas, exigindo uma investigação na direção daquela pessoa citada em carta anônima, nem tanto porque estava assinada pelo professor P, e a senhora disse que esse “Verde” já esteve no seu balcão comprando uns pães de milho e um quarto de salame e pouco falou com o atendente, mas, chamou a atenção de todos porque foi uma única vez que lá esteve, e sendo alto, medonho, olhos de coruja agourenta foi até bom nunca mais tivesse voltado à sua tenda de negócios, e agora estava temerosa de que isso acontecesse.

   O delegado não engoliu a seco o dito pela senhora Fidelis comentando que esse argumento também fora usado pela senhora M, debalde, furado, ele já havia investigado a fundo o “Verde”, deteve-o certa ocasião porque usava uma machadinha, esteve em sua residência, fez campana, oitiva, e como nada foi provado teve que liberar o homem e agora vinha a viúva com essa mesma conversa com base na carta desse professor P, que, este sim, investigaria quem é e poria na cadeia por estar difamando a outrem, com a conversa de uma machadinha e litros vazios numa mala para recolher sangue.

  A viúva levantou-se da cadeira e dedo em riste na cara do delegado disse que o professor P também falara na sua carta que o “Verde” usava uma machadinha para degolar as crianças, esquartejar, e se o delegado já tinha conhecimento disso, em bis, pela segunda vez, deveria, sim reabrir o caso do seu neto e prendê-lo. O delegado aquiesceu, de que faria nova campana na porta do maldito, e mandou que a viúva retornasse ao seu balcão e respeitasse os laudos e conclusões de Netuno.

  Abriu-se nova investigação. Netuno prometeu a si mesmo que desta feita não falharia. Analisou as cartas do professor P, nada que pudesse, de fato incriminar o “Homem Verde do Ginásio”, mas, como já era o segundo caso, levaria o assunto no capricho.

  Participou de uma campanha mais apurada com a ajuda de dois investigadores revezando-se nas proximidades do ginásio com olhar em direção ao bosque e certa noite viu o “Verde” sair do sótão e entrar na mata, o seguiu, mas, noite escura o perdeu de vista, não saberia dizer se estava com as vistas cansadas e o alto desapareceu e não voltou mais para o sótão e ele, Netuno, ficou a ponto de cometer uma arbitrariedade e arrombar a porta do sótão e invadir o local, mas, sendo homem que respeitava as leis não o fez, pegou no sono na praça e ficou sem a mínima ideia se o “Verde” dormira na mata com os vampiros ou se voltara para casa. 

  O certo é que, diante de tantas incertezas, tenho a obrigação de me apresentar a vocês e dizer quem é o professor P, infelizmente tenho que revelar esse segredo para poder elucidar esses crimes hediondos uma vez que, pela terceira vez, deu-se novo caso, em menos de trintas luas, desta feita no Largo da Estação o sumiço de um garotinho gordinho, fofinho, que gostava de ficar olhando a passagem dos trens de carga, e sumiu, não voltou para casa, menino que era órfão de pai e mãe e fora criado pela tia Z. senhora solteira e respeitada em nossa aldeia, igualmente professora igual a minha pessoa, e pelas investigações que o professor fez com a ajuda do detetive Plutão, eu estive acompanhando o caso de perto com a ajuda do meu cão pastor Tifão, o soberano da orelha caída, excelente de faro, negro como a noite, companheiro admirável, vimos de longe quando o Verde se aproximou da criança, retirou a machadinha da mala e zaz, uma nuvem escura passou na nossa frente no momento, e quando clareou de novo, a lua brilhando, ele acomodava alguma coisa na mala, recolhia os litros com sangue, foi a impressão que tivemos, mas não podíamos abordá-los porque não temos distintivos, não somos homens da lei, não usamos armas de fogo, e mesmo com a noite escura seguimos seus passos até o ginásio e meu pastor tifão farejou pingos de sangue que caiam da mala, o que seria uma prova inconteste, e vimos, ao longe, quando ele entrou no sótão e foi dormir ou jantar, não tenho muita certeza, se, de fato, havia um menino na mala.

  Sumiço houve. O delegado recebeu a tia Z com mais esse caso rumoroso para investigar, e a senhora disse ao homem da lei, ao representante do direito, que seu menino amado gostava de ir às noites apreciar a passagem dos trens, mas, sempre voltava para casa, mas, dessa vez não voltou, e não saberia dizer se ele pongou no trem e foi embora para outra cidade, se o trem teria passado por cima dele, ou se foi sequestrado pelo maquinista. 

  O delegado, como sempre, determinou que o agente Netuno apurasse a denúncia, investigasse o fato, deu um copo de água com açúcar para a senhora Z acalmar-se e temeu que alguém imputasse mais esse sumiço crime ao “Verde do Ginásio”.

  Antes de falar com o delegado, desta feita, eu, o professor P, pessoalmente, tive uma conversa com o “Homem Verde” cara a cara no restaurante que ele frequentava e foi uma abordagem civilizada, sendo que encostei em sua mesa onde ele comia uma coxa de galinha com arroz e macarrão, prato que parecia o predileto dele, e disse: - Eu não tenho medo de você.

  O homem arqueou as sobrancelhas, olhou para mim com aquele olhar de coruja, voz de “rasga mortalha” e disse: - Não sei de que podes ter medo de um velho aposentado.

  - Posso lhe fazer uma pergunta - continuei pedindo permissão para sentar à sua frente - e aí vi, de perto, cara a cara, quanto o Verde era estranho, os dentes platinados, aluminisados, sem intervalo entre um e outros, o nariz com pequenos tufos de cabelos nas pontas, orelhas salientes até bem postadas, cara de defunto, cheiro de defunto, e tomei coragem e perguntei se era verdade que ele matava crianças com uma machadinha, colocava numa mala, tirava o sangue para beber e depois comia os meninos.

  - Sou cristão temente a Deus, incapaz de fazer mal a uma borboleta, sim, necessito de sangue para viver pois tenho uma doença incurável, mas, o sangue compro num banco de sangue autorizado, você pode ver aqui na maleta (abriu a maleta e me mostrou um litro de sangue intacto com um rótulo BSS) e uso essa machadinha (também mostrou a machadinha) para quebrar ossos das coxinhas de galinha, meu prato predileto, aqui e em casa, porque tenho os dentes serrados, platinados, de nascença.

  - Há acusações contra o senhor na delegacia e o delegado já deu uma entrevista numa emissora de rádio dizendo-o que o deteve para investigar a morte de uma criança na lagoa da Bomba e uma outra no Bosque.
  - Acusações infundadas. A criança que morreu no açude da Bomba foi engolida por um monstro que mora lá e a outra foi devorada por lobisomens do bosque encantado. O delegado deve saber desses monstros que habitam sua aldeia, público e notório. Eu quando vou ao bosque não passo da “Fonte Encantada”, pois, mesmo com pouco sangue, os lubis adoram comer humanos.

  - Há, ainda, uma acusação contra o senhor de uma criança que desapareceu no Largo da Estação inclusive com testemunhas que teriam visto o senhor degolar uma criança e levar o corpo consigo.

  - Este fato, pelo que sei está em apuração. O inspetor Netuno esteve comigo e falei-lhe que nada tenho a ver com isso. Agora, que o jovem já me fez muitas perguntas, peço que se vá.
                                                            *****
   E eu fui direto para a delegacia e me apresentei ao delegado como sendo o professor P e o delegado ficou admirado, dizendo que estava me investigando e gostaria de me por atrás das grades por ter feito acusações caluniosas contra o “Homem Verde do Ginásio”, e eu corroborei tudo o que havia dito e mostrei ao delegado as pegadas de sangue do terceiro crime e fotos que fizemos de longe que não eram nítidas, mas, davam para mostrar o Verde degolando uma criança, e o delegado ficou de queixo caído e mandou chamar o investigador Netuno, o qual conhecia meu parceiro e detetive particular Plutão, amigos que eram, e acertou-se que em dois dias, uma patrulha invadiria o sótão onde o Verde morava.

   A noite era sombria, escura, quase madrugada, e havia uma luz acesa no sótão o que significava que o “Verde” estava acordado, possivelmente vendo televisão, e com o delegado presente, Netuno, Plutão, eu, Tifão e mais dois agentes e local foi invadido a força estourando a porta com um pé de cabra não havendo reação do “Verde” que sentado estava, sentado seguia, e o delegado abordou-o dando-lhe voz de prisão, o homem a comer um braço de criança, com arroz e farofa, um copo de sangue ao lado.

   Travou-se o seguinte diálogo, que assisti, e os demais também, o delegado perguntou: - O que comes e bebes?

   - Um braço moqueado com sangue. 

   - Não tens remorso por esse crime hediondo.

   - Tento curar minha doença e não teria porque ter remorso.

   - Onde estão os restos mortais das outras crianças?

   - Só tem os esqueletos em baixo de minha cama, em fundo falso no sótão.

   Os homens afastaram a cama e retiraram uma tampa falsa vendo-se ao fundo esqueletos de crianças.
   - E nesta geladeira, tens o que?

   - Mais umas peças corporais.

   O delegado determinou que Netuno recolhesse os materiais, fotografasse tudo e o “Verde” foi levado para a prisão.

   Crime esclarecido, as senhoras M, F e Z foram avisadas do acontecido, o fato tornou-se nacional, internacional e delegado ficou famoso.

   Dias depois, mais preciso, menos de 30 dias depois, o “Verde” trancafiado numa cela sozinho, isolado, foi definhando, definhando, a comida da delegacia não tinha sangue e ele se desintegrou.  

   Suas cinzas foram lançadas no açude da Bomba nas imediações do Campo da Lixa em cortejo no qual compareceram o professor P, o delegado, o investigador Netuno e dois agentes da lei. Flutuaram por um tempo e depois submergiram molhadas pelos pingos da chuva que caiam do céu.