somos também, se queres saber, a bossa e a esperança global
Tasso Franco , Salvador |
20/08/2023 às 11:06
O Andarilho da Cidade da Bahia, a velhice e o dilema entre as pílulas e o pão
Foto: OG
Com uma lupa em mãos estou à procura do marketeiro que criou o slogan a "melhor idade" para exaltar a velhice
Busco-o para presenteá-lo com uma corda e uma cadeira
Não brinque com os velhinhos que somos bravos e da "melhor idade" o que nos resta é a experiência, de pouca ou quase nenhuma valia no mundo atual
Que mais temos: dores, solidão, angústia, lembranças do passado, desprezo, depressão e pedidos de proteção à saúde
Basta-nos a boa saúde porque os demais desejos ficaram na barca do passado e ela não retorna aos mares
Já viram algum velhinho ou velhinha sentado (a) num banco do jardim do Campo Grande, solitários e olhando para o céu orando para que algum andarilho os saúde?
Nem isso conseguimos. Os andantes passam por nós sem quaisquer cumprimentos e quando nos olham é com visões de dó, de compaixão, como se fossemos uns pobres coitados na fila do fim da vida, nos desejando - imagino - que sigamos em paz nosso caminho
É doloroso. Vivemos amparados na mais absoluta solidão do universo e até os parentes e aderentes somem nessa hora do adeus
Que prazeres temos então enganador marketeiro nessa "melhor idade"?
Um andador? Ouvir Carlos Galhardo? Soletro para você marketeiro banda podre: Eu sonhei que tu estavas tão linda/Numa festa de raro esplendor/Teu vestido de baile lembro ainda/Era branco, todo branco, meu amor
Ah! tempo fantástico, esplendoroso por que tu não voltas?
Revolto-me e vou para casa acomodar-me no meu querido sofá, minha adorada TV e meus vinhos
Esses, sim, grandes companheiros
Saúdo meu nobre tinto como diria o poeta Godofredo Filho "derramas-te em meus lábios como um cântico/de saudade da vida/e de esperança" em soneto ao Madeira
Sim, os vinhos ainda nos dão um grande prazer quando os degustamos sentados n'alguma poltrona, em casa
Até o sair de nossas residências nos atormenta diante de possíveis fatais quedas a que estamos sujeitos
Dizem os mais antigos, por ironia certeira, pois, gulosos somos e doces adoramos, que queda e diarreia nos derrubam quando não nos matam
Ou nos levam a andadeiras aquele objeto ridículo que faz com que fiquemos com seis pernas
Certa feita, em Valencia, na Espanha, comprei um ‘baston’ numa feira em frente a catedral do santo graal
Foi a primeira vez que me vi com três pernas
No embarque de retorno ao Brasil uma organizadora de fila no aeroporto viu-me lá adiante com a bengala a me apoiar e se dirigiu rápida ao meu encontro: "Venha o seu lugar é lá na frente, sem filas", disse puxando-me pelo braço
Bravo! que conquista fantástica: sou um fura filas orgulhoso dessa vitória
Nas agências bancárias, no meu Pindorama, já não há vantagem em ingressar nas filas preferenciais, pois, cresceram tanto que já estamos rejeitando-as preferindo a dos moços
Velho é inodoro, nem perfume usa, e quando estamos nas filas dos moços sentimos o aroma das rosas
Ah! Depois de passar horas na fila bancária, felizmente, agora, fila sentada, arrisco a sorte na loteria, enquanto aguardo que minha esposa venha pegar-me com seu Logan
Sim, mais uma vez, como é de lei, optei pela fila dos velhos, a preferencial, curtinha, com apenas duas senhoras, uma delas bem velhinha, mais do que eu, que carrego quase 80 nas costas
Imaginei! ali vai ser rápido e, em breve, estarei milionário acertando as 6 dezenas da mega sena e indo morar em Caldas do Jorro ou no balneário de Cipó, paraísos baianos
Enquanto a fila dos moços andava a VLT a nossa estava emperrada igual aos trens do subúrbio em época joanina que tombavam
Observei que a velhinha na boca do caixa havia perdido os óculos e remexia uma imensa bolsa repleta de papéis, batons e pós a sua procura
Gritei! O que procuras minha boa senhora? - Deixei as lunetas em casa e meu bolão está entre esses papéis que vou derrama-los para o senhor me ajudar a achá-lo, respondeu
Dois velhos juntos numa fila de loteria é demais: uma sem óculos; o outro surdo tateando papéis
Apresso-me, depois de resolvida essa questão, pois tenho um encontro com amigos do clube dos 70 no Solares, no Centro Espanhol, para um bate papo e almoço de aniversário de um deles
Que maravilha! Éramos oito veteranos senhores de longo curso na taberna com a missão de papear e saborear paellas, uísques e vinhos
Na abertura dos trabalhos, depois de cumprimentos de bonés e bengalas, quatro dos nossos contumazes soberbos avisam que estavam proibidos de usar bebidas alcoólicas
Justificam: Um se preparava para se submeter a uma RTU de desobstrução do canal da bexiga; o outro faria exames de sangue e urina para controlar a diabetes; o terceiro estava na base do tramal para controlar a cervical; e o quarto com a próstata inflamada mijando regrado
Que horror! Mas como ir às paellas compartilhadas, ao uísque e ao tinto, com tantas ressalvas sem quatro bons de tulipas e taças!
Um quinto, o Uerba, filosofa "a morte nunca vem no dia em que a gente quer, portanto, os demais aproveitemos e os adoentados, também, rebelem-se
Não sei se vou beber esse uísque - acaricia o tubo o sexto senhor - porque amanhã tenho que fazer exames de avaliação do intestino e necessito chegar em forma a clínica, sem ressaca
Que tens? - pergunta Ohnidnanref - provando um Rioja branco, de leve, com cautela
Estou como se tivesse um capacete na barriga, estufada, dá para tocar um samba nela, daí essa investigação e não tomarei bebida alcoólica mais forte que pode piorar
Ah! pode ser cirrose hepática, alude o sétimo, quiçá alcoólica proferindo gargalhadas
Assim, ergueram-se as taças e copos para o brinde inicial entre maltes, poucos que foram, tintos contidos, sucos e cafés
Viva a vida, desfrutemos enquanto podemos, saúde para todos nós é o que desejamos berra o sétimo, o galhofeiro, quase caindo na mesa de bruços
Em seguida, a conversa atravessou o Atlântico e chegou a Lisboa um tal lembrando que, certa feita, sua esposa derramou uma taça de vinho num casaco novo e há modos e modos de beber na maturidade
Ah! lembrou o Apal comigo isso não acontece. Vinho me dá suadeira. Só bebo uísque, mas, atualmente, no adiantado da idade só bebo duas ou três doses no máximo
Sorriu o oitavo e soletrou como Camões: Nos tempos de antão bebias um tubo, hoje, encurvado como andas, a artrose lhe visitando bebes um quarto
Zorra, paremos de conversar sobre doenças, consultas e remédios, ainda mais sobre essas enfermidades sofisticadas que ninguém sabe o que são, e brindemos o aniversariante nos seus 79, aduz o quinto
Melhor assim. Saúdemos o glorioso 69. Desculpem o lapso, 79, bem entendido. Peçamos mais uma rodada de paellas para forrarmos as barrigas
Forrar é um termo supimpa, mas, cuidado com a dor de barriga, meu caro, adverte o oitavO
Que se danem essas dores, amanhã é outro dia. Não estamos diante do antigo frango do Yatch que só o Agug comia, da feijoada do Porto, dos petiscos da Moenda
Com licença que vou ali fora tomar um ar levanta-se o Odnamra
Desculpa marota você vai fumar e se ferrar; cigarro mata e cigarro mais bebida forte misturados é veneno
Se isso fosse verdade já estaria morto acende um fino o insubmisso
Esse grupo não tem bússola. Começamos com quatro abstêmicos e vejo quem todos estão bebericando, uns mais; uns menos
Ora, somos velhinhos saudáveis e não velhacos, muitos menos dominados pelas dores e pelas angústias, portanto, enquanto houver vida sobre a terra brindaremos
Viva a velhice aos saudáveis e aos encurvados e não às doenças físicas e mentais
Assim encerramos o almoço que avançou pela tarde e quase chega a noite.
Um arco íris brilhava no mar tenebroso e deixamos o Solares sóbrios, cada qual com sua bengala, seu chaveiro, seu charuto, sua esperança. Ninguém saiu bêbado como antigamente e marcamos o próximo ano para o final do ano
Na despedida - uma pequena ressalva - três briosos setentões tropeçaram no batente da saída e um deles chamou um Uber pelo celular. Esqueceu que tinha ido com seu carro ao Espanhol e por lá deixo-o na garagem
Velhice, velhice, você não é a melhor idade, advirto, mas nosso humor fica mais refinado, refinadíssimo, com exaltações ao espírito, que seja de porco, mas ao espírito
Não são os anos que passaram que nos interessam. Digo-vos, a nossa viagem já foi feita e não conseguimos dominar o tempo, nem nós; nem ninguém
Ainda assim, agrade-nos dona velhice, pois, somos, eternamente, o amor, luzes, a alegria; a beleza, a picardia, o pendor; somos o charme, a sabedoria, o destemor; somos também, se queres saber, a bossa e a esperança global