O andarilho vê a condição humana de homens e mulheres que moram as ruas de Salvador, ao desalento
Tasso Franco , Salvador |
30/07/2023 às 10:57
Desvalidos na praça da Piedade
Foto: BJÁ
Por onde ando nesta cidade da Bahia me deparo com os desvalidos deitados em ruas e praças, em redes improvisadas e em papelões, no cimento das calçadas e das passarelas, nas gramas e jardins
Não estão deitados na relva como os jesuítas no Terreiro de Jesus em tempos idos contemplando as estrelas no vagar das horas de trabalho no colégio
Estão no leito do sofrimento e da morte que os ronda dia e noite, sem trégua, numa luta entre o belo - a grande cidade que abriga os melhores homens e mulheres; e o desairoso, o disforme da vida
São tantos n'alguns lugares que tropeço neles e se fosse um cavaleiro andante como dom Quixote de la Mancha que saiu pelo mundo com sua lança para proteger as viúvas e os oprimidos faria o mesmo
Dói n'alma vê-los tão desamparados, sem teto, sem soldo, sem alguém que os possa acolher e até o poder público, que sustentamos com nosso suor do trabalho, os rejeitam
E, eu, andarilho, que faço?
Observo, converso com um e outro, fotografo, dou algum trocado, denuncio ao mundo
Mas pouco vale a minha pena se até os jornais da minha cidade estão sendo vendidos a quilo para servir de manta à mijo e coco de cães e gatos
Minha pena como as demais dos jornalistas não serve mais para nada, salvo, n'alguns e muitos casos para bajular os poderosos, baixar as calças por migalhas da mídia paga e benévola
Nos últimos anos os desvalidos se multiplicaram como gafanhotos e estão por todos os lugares, a praga dos faraós do Egito
Ah! Há até uma praça que já foi dos tupinambás, engolida pelos jesuítas e franciscanos menores, cantada pelos poetas, refúgio de estudantes em economia no tempo dos cassetetes hoje é só deles
Tende Piedade
Um dia falei para um soturno: eu sou o andarilho, o farol, o lume, a luz que mostra a realidade aos superiores
Ele gargalhou! que merda é andarilho? bosta dos antigos camaleões desta praça
Se deputados e senadores nada nos ajudam, nos tiram dessas trevas e nos dão alguma alegria imagino que um andarilho muito menos
Seu farol apagado, venha catar os meus piolhos na cabeça ou os meus chatos na rola cagão de duas figas
Não desanimo! Minha lança é minha pena, meus olhos meus faróis e enquanto estiver de pé, andando, vou retirá-los da escuridão
Então, dá-me sua fortuna, sua casa, seu pão e deixe de conversar bobagens
Mas aí não convém porque invertemos os papéis você será o andarilho e eu o desvalido
Que assim seja, venhas experimentar o frio das noites nas costelas, a fome, a miséria, a dor
Parece de menos, cutuco com saber da psicologia; tens angústia? depressão? doenças do século
Que porra de angústia e depressão. Eu sou a pobreza, a míngua, o miserê e não tenho nada disso dos livros e das mentes tontas
Os fracos de juízos foram levados pelos homens do Juliano acorrentados nos carros azuis
Tenho, sim, dor de barriga da ausência de comida, dor de cabeça do sol, gripe, caganeira de algo podre que engulo
Então, cagão é você, com licença da palavra, um cagão literal, pilherio
Vês aquele prédio esnobe - aponta-me o gabinete Português de Leitura - vai pra lá que é o lugar dos sabidos, dos homens das letras
Literal é a leseira a arrebentação vá para o purgatório que é o lugar dos sonhadores
Sigo meu caminho. É noite, percebo ao chegar na Baixa dos Sapateiros mãos pedintes se estendendo por onde passo
Outras mãos cuidam de arrumar os papelões e os panos velhos nas calçadas pois está chegando a hora de dormir
Uma konbi com voluntários da sopa para em frente a uma loja com portas cerradas onde há um dormitório repleto de gente e farrapos sob uma marquise
Faz-se uma fila onde homens e mulheres se aproximam em fraternal alegria num momento de rara confraternização
Entro na fila e quando chega a minha vez a voluntária desconfia e perguntas: quem és oh! intruso de barba perfumada?
Eu sou o andarilho, tenho a obrigação de mostrar todos os ângulos da cidade da Bahia e quero sua sopa
Cheire, anote e siga de mãos vazias, há necessitados atrás de vós mais merecedores do caldo
Então, sigo em jornada para os Mares a praça de Nossa Senhora no caminho para o oratório do Bonfim
É desolador. Há desvalidos em vários pontos e na trilha dos Dendezeiros, na Direita do Uruguai e na imponente avenida Fernandes
Como é triste e medonho este lado da minha cidade com a noite alta e os papelões a encobrir corpos em sono de almas sem pecados
É neste caminho que há a mão salvadora do hospital e acolhimento de Santo Antônio, adiante, em Roma, que não sendo dos papas é da santa Dulce dos Pobres
Que a todos acolhe, redime, acalenta até que se dê a passagem para outra esfera espiritual da eterna salvação