Cultura

O ANDARILHO DA CIDADE DA BAHIA, CAP 13: ISABEL 7 PERNAS, A CAPOEIRISTA

O jogo da capoeira na disputa por Sassá do Berquó numa rua da Baixa com Pelourinho
Tasso Franco , Salvador | 23/07/2023 às 08:56
Isabel 7 Pernas, Sassá do Berquó e o abará da Baixa
Foto: Borega
  Nunca houve em tempo algum uma capoeirista na Cidade da Bahia como Isabel 7 pernas no jogo da meia lua de compasso, da banda trancada, da chapa de costas, a ponto do mestre Bimba se admirar ao vê-la na roda da regional, desferindo certeiros golpes altos, bem diferente da Angola do seu amigo Pastinha, com jogo na baixa rastejando pelo chão

 A rapidez com que movia os quadris e pernas, a definida musculatura das coxas e das costas permitia que os braços fortes lançados ao chão para aplicar os golpes fizessem com que suas pernas se movessem com tamanha rapidez que lhe caiu uma graça o nome de batismo 7 pernas, 7 em uma

  Quem as enumerou foi o astuto tocador de berimbau de voz rouca Chocolate, o rei da canção do Mercado Modelo - onde outro mestre Camafeu de Oxóssi era o senhor capoeira - o qual, tão endeusado com a rapidez com que as pernas de Isabel se moviam, lhe batizou com esse nome 

  E assim cantou: Donde vem essa menina, camará/ do Cosme de Farias, da Baixa Fria, camará/ da Ribeira, de Itacaranha, camará/ Da Boca do Rio, de Piatã, camará

  Seu principal parceiro na roda do mercado, Canivete, dito de batismo, Roque Alfaiate de papel passado - mestre no dedal e na linha - tinha um jogo mortal e o admirava por sua leveza e glamour no jogar

  Um outro chamado Elástico, também de batismo, metia-lhe uma armada, uma queixada, e 7 pernas ribombava, devolvia o golpe com uma banda e lançava o pé direito em sua fuça não o atingindo diante da elasticidade do parceiro em jogo

  E um terceiro, Martelo, uma martelada, um coice na chapa de frente nunca a carimbava tal era a velocidade das pernas de Isabel qual saveiro com vento forte na entrada da baía abarrotado de bananas e farinhas

  Sassá do Berquó, mulher formosa do centro, dividia com ela uma morada na Rua do Bispo perto do antigo São Dâmaso e era sua companheira e irmã de lutas no jogo da capoeira e na confecção do panelaço de abarás do ganho da vida, o que melhor que se vendia na Baixa dos Sapateiros  

  Mulheres lutadoras da cidade da Bahia, trabalhadoras da madrugada, de acordar cedo para ir à feira de São Joaquim comprar feijão para a produção dos abarás comercializado numa travessa da Baixa dos Sapateiros com acesso a Ladeira do Pelourinho, lugar a subir gente para o Terreiro; e a descer para o Taboão

  Do povo de santo que vinha de Brotas e da Saúde para comprar essa delicia, dos baianos que circulam pelo centro histórico a outros que chegavam da Ribeira e do Bonfim; do Largo 2 de Julho e do Garcia; da Liberdade e do Matatu para saborear o melhor abará da terra

  Quem via Isabel 7 pernas nessa faina diária, nessa labuta para ganhar o sustento ao lado da sua Sassá, parceira de outros atributos, da divisão de todas as tarefas domésticas, das angústias e das alegrias, das danças e rezas na Terça da Benção, do amealhar moedas no jogo da capoeira do mercado não imaginava a magia daqueles pernas cruzadas em frente ao tabuleiro da baiana

  Quieta, sentada, o torço colorido como árvore de natal sobre a cabeça, os colares e as contas entrelaçados no pescoço e no colo, os braceletes de bronze nos braços, as argolas de conchinhas do mar nas orelhas, a mercar o abará com a sua bela e diligente Sassá

  Serena, imóvel, doce, atendendo os clientes como doçura, com amor, mas quando melindrada, quando alguém pisava em seus calos e tentava se aproximar com afetos estranhos à sua flor, se transmudava, transformava num vulcão a soltar labaredas de fogo

  Certo dia uma sirigaita conhecida como Raimunda Rabo de Sereia andou cortejando Sassá com flores e água de cheiro numa quartinha trazida da Lavagem do Bonfim, água que seria benta para ajudar na conquista

  Isabel mirou-a com desconfiança e ira, as amêndoas dos seus olhos castanhos se inflamaram, acenderam as chamas e brilharam como tochas da antiga procissão do fogaréu da Ribeira, as luzes de alerta do farol tinham sido acesas 

  E os dias se passaram ao vento e Rabo de Sereia, ignorando esses fachos de luzes, o aviso de que aquela flor era intocável, continuou circulando e ciscando como galinha d'Angola nos arredores da Baixa a rondar o tabuleiro dos abarás

  Sassá, mimosa, desconfiada, cabisbaixa, atendendo a gente do povo e 7 Pernas atenta a ronda daquela piranha graúda, endiabrada, porque quem mexe na mulher dos outros tem diabo no corpo, e a Raimunda, que os meninos da rua do Tijolo a arreliavam como "feia de cara; boa de bunda" aproximou-se de Sassá e ofereceu-lhe um patuá

  Começou uma porfia: a capoeira se levantou, colocou o garfo que espetava os abarás sobre o tabuleiro, a faca que abria a iguaria de feijão embaixo de um molho de papéis, empurrou a saliente Raimunda chamando-a de rameira de duas figas e aplicou-lhe uma chapa na altura dos seios que ela caiu no beiço do asfalto

  A atingida e insultada já levantou com uma navalha lâmina de aço em mãos, abriu a máquina da morte como se fosse usar um leque com gestos de abanos e desferiu um golpe em direção ao pescoço de 7 Pernas, a qual virou as ancas numa velocidade de saveiro ao vento Leste e atacou a robusta na titela com uma chapa de banda, a rabuda se estatelando no asfalto mais uma vez

  E novamente, a satanás com pés de Botelho se aprumou com a navalha em mão, a arma branca fechada e o cabo de pérola marrom à vista de todos numa roda que se formou, e tal uma andaluz de Sevilha abriu o leque de aço e tentou cortar a face vermelha de Isabel, rubra de raiva, a ponta do aço cortando o rosto sem profundidade com o sangue jorrando sobre o tabuleiro

  Sassá se espremeu num canto, a roda de gente aumentou pra espiar o duelo e a capoeira desferiu um golpe mortal na Rabo de Sereia que foi ao chão sem mais levantar, o nariz sangrando e a navalha voando pelos ares sendo recolhida por uma dupla de Cosme e Damião, da bicentenária PM, que a tudo assistia e conduziu a sereia desfalecida ao Mercado de Santa Bárbara para tomar um banho de folhas e sal grosso

  A essa altura, a roda de gente era enorme, os fregueses das lojas, os passantes, os desocupados que na cidade da Bahia são as pencas, violeiros, pandeiristas, a turma do samba reggae e músicos de ganho que nesta área histórica vivem em pleno movimento e logo apareceu Jeová, o colunista de "A Noite" que tudo anotou
 
  E a porfia ganhou a manchete: "Capoeirista de Bimba detona a rainha da navalha da Baixa do Tubo", bairro onde nasceu e levou Luiz Caldas à fama; e Rodolfo Coelho Cavalcante, o ás do cordel, assim cantou em improviso feito na hora: Isabel 7 Pernas aniquilou a Rainha da Navalha/ Em jogo de vida ou morte/ Na Baixa dos Sapateiros/ Tudo por causa da bela Sassá doce flor de maracujá 

  7 Pernas tão famosa ficou nesta Cidade da Bahia que Carybé a ilustrou, Jorge Amado a endeusou, Mario Cravo Jr a bronzeou, Frede Abreu a imortalizou, o Olodum a homenageou, o balé do Teatro Castro Alves a coreografou, Brown a cantou e Aninha levou a cena por meses uma peça no Teatro XVIII

  A glória chegou ao cinema com a película "O Abará de Aiá e a Lâmina de Aço" e o mundo das novelas sentiu a força da cultura baiana, até o leão da MGM roncando aos nossos pés 

  A capoeira ganhou o mundo e chegou a França como haviam chegado Bimba e Pastinha, Besouro e Acordeon, Manoel Querido de Deus e Antônio Maré, mas a fama nunca lhe subiu à cabeça nem encheu sua algibeira de dinheiro e como os grandes mestres da capoeira da Bahia despediu-se de nós sem eira; nem beira

  Mas feliz com sua Sassá que a acompanhou para sempre até o dia em que seu ataúde desceu a Ladeira do Ferrão até a Baixa, na mão do povo, os tocadores de berimbau a cantar com o pandeiro com Cacau a batucar até que, nas proximidades da Poeira o carro da São Vicente a levou para Quintas, em cortejo

  Eu, o andarilho desta cidade, acompanhei tudo de perto, todo o trajeto até Quintas, Sassá em lágrimas, Jorginho Comancheiro emplumado, Alaide do Feijão tristonha, Agnaldo Silva do Filhos de Gandhy, o babalorixá Martins Lopes do Olodum, Neguinho do Samba, Clarindo Silva da Cantina da Lua e tantos outros a seguir a pé até o cemitério dos pobres

  E 7 dias depois participei na Igreja de Nossa Senhora do Rosário da Irmandade dos Homens Pretos da missa de 7º dia para a capoeirista, missa oficiada pelo padre Lázaro e que ficou conhecida para sempre como 7x7, representando dias de passagem e da melhor capoeirista da Bahia