Cultura

ANDARILHO DA CIDADE DA BAHIA 12: A CASA NAVIO E O CARNAVAL DE TIETA

60 anos de andanças na mais bela cidade do Brasil, quiçá do mundo, do incansável andarilho
Tasso Franco , Salvador | 16/07/2023 às 10:09
Com Jorge Amado, Tati Moreno e Gato, Carnaval de Tieta, 1997
Foto: Arquivo do autor
Eu sou um andarilho velho, mas antes de mim vieram outros velhos a andar pela cidade da Bahia 
Desde aqueles pioneiros que fundaram a cidade e percorreram os caminhos da Vila Velha, no século XVI, aos sonhadores do século XIX
E quando aqui cheguei, na segunda quadra do século XX, ainda existia a Casa Navio na Pituba
A boite Anjo Azul no Mocambinho e o Chalezinho da Barra
A Casa Os Gonçalves tecidos, a óptica Viúva Neves e a Leão Rosemberg, fotos
Comia-se acarajé em Amaralina, o melhor da cidade, e baba de moça no Campo Grande, local da morada do caboclo
Chupava-se umbus nas ruas e mastigava-se cocada puxa e quebra queijo nas feiras livres e praças
Sorvia-se roletes de cana e picolé nas esquinas e nas praias
E almoçava-se no Camafeu, no Tabuleiro da Baiana; e jantava-se, altas horas, em Zé do Caminhão 
João da Matança tocava no Varandá, Sandoval do Bandolim dedilhava no Tabaris
E Galo Cego ritmava no pandeiro com picardia óculos escuros na face
Existia o escurinho da Pá da Baleia e dançava-se de sunga no Coco de Itapuã
Bebia-se fiado na barraca de Perilo, da Placa Ford, e paquerava-se na Guanabara
Conheci Cinara e Maria da Vovó, mulheres da noite
Godofredo Filho e Calderon de La Vara, poeta e pesquisador; Calasans Neto, escultor; Carybé e Amado
Bebi cerveja com Mario Cravo Jr em porres na praia de Ondina
Fui aluno dos professores Raul Sá e do coronel Mansur, em português e matemática
Joguei bilhar no Abel e dancei no Fantoches boleros e valsas
Assisti Romenil e André Catimba jogarem na antiga Fonte Nova, no glorioso Vitória, e treinei no Leônico
Incontáveis vezes apreciei Mr Abrakadabra, o mágico do passarinho, na Ladeira do São Bento a encantar os passantes
Vi foi coisa nesta cidade da Bahia que o tempo devorou
Amanheci o dia virando a noite no Gererê com Tonicão tocando violão, dose pra leão e Pastore gritando “ô vidão”
Subi a escada rolante da Duas Américas com frio na barriga 
Comprei uma bolsa na elegante Sloper e almocei no Hotel Chile
Passei no Adamastor para possuir um cinto de couro com fivela dourada, última moda
Adquiri um terno no London Magazine e tecido para batas na Feira dos Tecidos
Com Vita papeamos e tomamos alguns caldos de sururu no Popular 
PQP dancei no Beco Maria Paz e com as meninas do Relógio
Quantos carnavais pulei nas ruas animado por Dodô, Osmar e Orlando Tapajós? Dezenas
Quantos risos no sábado da Associação Atlética e na segunda do Galo Vermelho? À mancheia 
Escrevi o roteiro para aprovação de Jorge Amado do Carnaval que homenageou Tieta ao Agreste ao lado de Gato, Tati Moreno, Eliana Dumet
Vi o desfile dos Filhos de Jorge no Campo Grande com Caetano e Margareth Menezes cantando Tieta eta eta em refrão 
Orei com dom Clemente, dom Avelar e dom Lucas 
Tomei a benção aos monsenhores Gaspar Sadock e José Gilberto de Luna
Batuquei com Batatinha e Mundico, meus colegas no DN comendo uma pescada amarela no Moreira
E n vezes experimentei o café de Mundinho servido numa bandeja de papelão
Ouvi outras tantas vezes Damião, em A Tarde, atender o telefone da redação e dar recados trocados
Muitos já se foram daquela época, o professor Bandeira, Jeovah de Carvalho, Silva Filho
Heraldo Matos, Zé Maria, os irmãos Pastore, Anizio Félix e uma penca doutros
Amigos velhos como Junot, Jorge Calmon e J.A. da Cruz Rios; amigos novos como Vicentão 
Almocei 4 anos no restaurante universitário da UFBA e mais 4 anos comi o angu encubado de Clarinho
Birosquei em Cabelinho, no Abaixadinho e em Sergipe das 7 Portas
Bailei no Cirex e aos domingos à noite no baile da Guarda Civil da Baixa dos Sapateiros
Embebedei no Circo Troca de Segredos e cai da moto na curva do Buraco da Fechadura
Se acham que foi pouco me esqueci várias vezes o caminho de casa
Sabendo eu estar no Raso da Catarina ou no Deolino do Rio Vermelho
Ah! valsei nalguns aniversários de 15 anos de filhas de espanhóis donos de padarias
E banhos de mar incontáveis mergulhei em Roma e na Boa Viagem
Esfolei minhas canelas jogando no Brasília na praia do Canta Galo 
E fiquei chique quando fui morar na cidade alta frequentando a Praia dos Artistas e a 3ª Ponte
E mais chique ainda sendo freguês carimbado na Placa Ford e na Rua K 
Tenho orgulho de dizer que já entrevistei uma santa e nunca imaginei que isso fosse possível
A santa Dulce dos Pobres minha vizinha em Roma onde aos domingos assistia Raulzito e seus Panteras
E, de quebra, conheci, ao vivo, outro santo o João Paulo II quando esteve em Salvador
Não conversei com ele, mas o vi. Quem de vocês já viram dois santos?
Sou, portanto, um sortudo, um cuspido de sorte por paquerar na Bual'Amur
Ser cliente de carteira assinada do Habeas Copus e do Cacique da Praça Castro Alves
De tomar choppes a perder de vista no Brazeiro, no Oceania e no Komalu
Conheci Careca da Banca de Revistas, Renato e Cirilo 
Joguei muitas flores para Yemanjá e desfilei no Ensopado de Tatu sob a regência de Jaime
Ouvi Caymmi, Moraes e Valtino e apreciei uma seresta na Visgueira do Bira
No velho Berro D'água sentei e no Mini Cacique de Calinda e Luis galego almocei o cozido das quintas
Ah! desfilei nos Cães Vadios, no Apaches do Tororó e no Tiete Vips de Rubinho dos Carnavais
N uisques old eight tomei com Rubinho, Pastore, Cebola, Sílvio Mendes e o jornalista Moacir Nery
Na roda carnavalesca do Clube de Engenharia me abracei com Vitor Hugo Soares e Sobral
Ah! quanta alegria, vi do janelão do Jornal da Bahia a abertura do Carnaval com o Barroquinha Zero Hora
E acompanhei o Gigante de Bagdá e Os Internacionais ganhando diploma de "Destaque Piratas"
Sim desfilei de bugre e compareci a paquera dominical no Farol da Barra dirigindo um Opala
E banhos de mar no Porto tomei com direito e reserva garantida da feijoada do hotel de Elmano
Querem mais: encantei mocinhas! que galã é esse andarilho, assim me apelidaram
Mas nunca fui de exibir-me como um saltibanco passando em revista as pessoas e o tempo em silêncio
Quem de vocês viram a beleza de Marta Rocha, de perto, aqueles olhos brilhantes?
A simpatia de Maria Tereza Pacheco e a doçura de Miriam Fraga?
Quem de vocês comeu os petiscos do Palácio da Aclamação no final de ano com Luis Viana Filho?
E ainda levou um cacho de uvas no bolso do paletó e umas empadas noutro?
Meu caro, joguei capoeira com o mestre Pastinha 
E gargalhei alguns vezes com João Ubaldo; outras com Guido Guerra
Puxei pela memória e lá vou eu vestido de baiana num dos primeiros blocos de travestidos "As Independentes"
E, certa feita, depois de beber o velho Old do vereador Castelo Branco no Esporte Clube Periperi
Apartei ou mediei uma briga verbal de Cebola com a PM
Jesus Cristo, socorra-me, que o pneu do meu fusca furou em plena Suburbana
Também, sacana, quem não mandou estudar e ser jornalista
Vá aprender, vá entrevistar o superintendente do INSS, Jaime Queiroz, seguidas vezes
Os professores Orlando Gomes e Raul Chaves, seu burro
Ah! Cidade da Bahia de tantas lembranças dessa gente, monumentos, bares e restaurantes de saudosa memória
 A Portuguesa, da Sete, quantos bacalhaus! o Tabuleiro da Baiana, quantas moquecas!
 O mini Cacique, quanto cozidos! O Moreira, quantas moquecas de carne com pimenta! E que agora fechou suas portas aos 85 anos de idade
Quantas tertúlias no Sinjorba desde as épocas de Pelegrino e Anizio Félix, Emiliano e Lina
Sou do tempo da Tribuna da Bahia experimental sem manchetes, de Elmano Castro; e do JBa, de João Falcão
Fundei o primeiro jornal eletrônico do Nordetse, o Bahia Hoje, de saudosa memória, com o basco Pedro Irujo
Já assessorei Mário Kértesz. José de Freitas Mascarenhas, Roberto Santos, Waldir Pires e Paulo Souto
Hoje, infelizmente, estamos enjaulados e cercados pela violência 
Quem há de ir a um lual na lagoa do Abaeté? Nem a Yara que habita suas águas sairia para ouvir seu canto
Quem teria a coragem de ir a um “night club” da Montanha? Nem eu, nem tu, nem ninguém
Se as autoridades que são poderosas quando saem as ruas, de dia, estão cercados de seguranças
Imaginem nós, os mortais, sem lenço e documentos? Estaríamos nus
Dizemos adeus ao incomparável prazer de andar pelas ruas, sentarmos nos bancos das praças, abraçar a cidade
Vivemos em casa, nos shoppings e nas clinicas de fisioterapia, os velhos; e os moços a saltitar em pagodes
Mudaram-se os tempos e não há saudosismo em minha pena de velho dom Quixote
Que há 55 anos anda com sua veste de sacerdote do jornalismo a defender os desvalidos e a democracia
 
Apesar de tudo ainda ando com minha lança em punho, meu caderninho de notas e minha caneta