A prosa é o que resta de mais agradável aos aposentados da Piedade, oremos, pois
Tasso Franco , Salvador |
08/07/2023 às 19:56
O andarilho no banco da prosa dos aposentados na Piedade
Foto: BJÁ
Os aposentados da Praça da Piedade sofrem o pão que o diabo amassou sem manteiga e desde que a Prefeitura colocou cadeado no portão principal e ficaram impossibilitados de oferecer petiscos aos camaleões e se isolaram ainda mais
Que maldade senhor alcaide porque ages assim com pobres dependentes do INSS que ganham o mínimo e quando muito 2 a 3 mínimos, uma fortuna aos olhos dos moradores de rua que também habitam a praça, mas uma merreca diante de conselheiros de tribunais e ministros de superiores
No linguajar atual, os especialistas - e temos especialistas de tudo neste país - chamam de vulneráveis em situação de rua esses moradores da praça, assim como o cego Aderaldo, do Crato, que tanto sucesso fez nos cordéis e cantorias o apropriado é dizer-se deficiente visual Aderaldo Ferreira de Araújo
E nós, os aposentados, que novo nome vão nos dar? De desassistidos sociais, heróis sem causa, sofredores do universo, velhinhos prosadores, desamparados da praça, enforcados da Piedade, poetas da praça, visionários de São Pedro
Foi nesta praça que os revoltosos da Conjuração Bahiana de 1798 foram enforcados, os soldados Lucas Dantas e Luís Gonzaga das Virgens e os alfaiates Manoel Faustino dos Santos e João de Deus Nascimento e tiveram partes dos seus corpos expostos ao público pendurados em postes pela cidade da Bahia
Maldade do catedrático em direito de Coimbra e governador da Bahia, Fernando José de Portugal e Castro, 1º conde de Aguiar, que determinou o exílio de dezenas de outros e a prisão de Cipriano Barata
Piedade em que os poetas da praça com Aloysio Short à frente, o visionário da Serrinha, declamava seus versos a moda Giovanni Boccaccio assustando donzelas e pudicas que passavam pela praça desde 1979 ao lado de Eduardo Teles, Gilberto Costa e Ametista Nunes
Hoje não temos mais os poetas da praça, nem os violeiros do passado, os fotógrafos lambe-lambe com suas câmeras escuras a revelar imagens na hora e só nos resta, em cultura, uma feirinha de livros usados
Até nosso guardião, o presidente da Associação dos Pensionistas e Aposentados do INÉSSI, Gilson Costa, desde 1910 atua na defesa dos aposentados do céu e deixou-nos órfãos; a guardiã do IGHB, a Consuelo Pondé, também partiu
Resta-nos a proteção dos frades do Convento de Nossa Senhora da Piedade e do pároco da Igreja de São Pedro e as freiras das Paulinas que, na época natalina, nos dão folhinhas
Somos os párias da sociedade, desprezados, abandonados, ninguém quer nada conosco
Na essência somos invisíveis, parentes de ET, seres do outro mundo desemparados com causa perdida
Até nosso espaço na praça está sendo ocupado por vendedores de sucos de laranjas e de cocos, uma senhora que mede pressão tomou meu cantinho, um artesão de suvela e couro ocupou o lugar do Alfredo, tiram-nos o espaço da prosa
Estamos a prosar em pé ou andando até as mesas de xadrez na vizinha praça do Relógio
Ah! meu caro, não temos mais cabeça para o xadrez, nosso pensamento mal dá para o dominó
Arrelio com o Anselmo e o Ataíde que o melhor é voltarmos para casa, nos recolhermos ao anonimato e eles brincam, são idosos meninos que dão bombons às crianças
E dizem: vamos beber um suco de cajá da Marli que ainda custa 50 centavos de real
Que bom, tenho uma nica no bolso e dois reais em papel moeda que paga o bolinho de arroz, nós também temos reais poucos são, aludem os amigos
Bravo, então vamos ao lanche e ao dominó, ninguém tira a nossa alegria a nossa arte de viver
O relógio de São Pedro marcava 8 da noite quando não passava das 4 da tarde, dia ainda claro, ele anda sempre louco, avariado confessa Ataíde
É isso, até o tempo real querem alterar, embaralhar nossas cabeças, maldito seja, não ligamos para isso
Diante da Marli lanchamos o que foi possível para não abalar nossas finanças e depois fomos jogar dominó
Rimos à vontade, exultamos e passamos o dia assim, no nosso modo, aposentados ralé e felizes