Cultura

O ANDARILHO DA CIDADE DA BAHIA - 9: A SEDUTORA VIÚVA SUZANA

Vi que a distinta retirou um lenço imaculado e puro em sua alvura e enxugou as lágrimas que desciam a montanha rósea do seu rosto
Tasso Franco , Salvador | 24/06/2023 às 20:42
Ilustração de Borega
Foto: Borega
  Sempre que entra no templo de Santo Antônio Além do Carmo pela porta principal a viúva desperta a atenção dos fiéis, novos e velhos, das beatas, do diácono, do padre de missa, coroinhas e de toda a gente presente na nave

Por sua beleza, por sua sutileza no andar, porte elegante, seios roliços com taças bem protegidas pelo tailleur negro, chapéu à inglesa sobre a cabeça posto inclinado, o longo cabelo e o rosto protegido por um fino véu de cetim com frisos e delicados bordados

O roxo do batom delineando a boca, olhos graúdos esverdeados como as esmeraldas do Campo Formoso

Atravessa o corredor com passos modulados, medidos, até sentar-se na segunda fileira do banco de madeira, à esquerda do altar de São Joaquim.

  Ora, pois, eu também a olho. Não que seja abelhudo ou indiscreto, nem esteja a tentar seduzi-la, visto que amo a minha esposa e vamos a missa em parelha, um colado no outro, ela orando e soletrando os cânticos da missa mais do que eu

Sábia que és em ladainhas, e eu a segui-la, a imitá-la, quando se benze eu também me benzo, quando ajoelha eu também me ajoelho, assim por diante, mas, nada disso, óbvio, impede que aprecie a beleza da viúva a parecer como uma nossa senhora, uma Madalena, uma Gioconda, uma Afrodite,  ainda que possa ser premiado com  beliscões pela madame consorte.

- Concentre-se nos altares, nas imagens dos santos, na fé em Deus – recomenda.

- A missa ainda não começou e estou apenas a escutar o som do órgão de foles – desconverso – retirando o olhar da exuberante personagem em apreço e fixando minhas vistas no milagreiro Antônio de Lisboa e Pádua.

A madame me observa de soslaio, o padre se apresenta no altar e todos nos levantamos para as saudações iniciais e, por instinto ou levado por alguma tentação, observo a viúva em pé a pouca distância de nós, o perfume do seu corpo atingindo as nossas narinas e provocando um sabor de mel

Recebo, pois, senhores, outro beliscão e retorno o olhar para o glorioso Fernão de Bulhões, o jovem portuguesa de família nobre que se tornou peregrino e santo, diz-se, protetor daquelas solteiras e/ou viúvas, donzelas ou sem a proteção do selo natural, a conquistarem amores e casamentos, daí ser este português nascido no centro de Lisboa antiga considerado o santo casamenteiro.

E assim se passou toda a santa missa, o padre a olhar todo o universo dos fiéis, pero, também a observar, vez por outra, os gestos da viúva, quando na homilia citou o profeta Jeremias, não saberia dizer se para consolo da senhora que olhávamos - eu, o padre e outros devassos (desculpem essa expressão) – o qual falou contra Joacaz “não chorais aqueles que está morto, não o lamenteis!/Chorai antes aquele que partiu porque não voltará mais para rever a sua terra.

Vi que a distinta retirou um lenço imaculado e puro em sua alvura e enxugou as lágrimas que desciam a montanha rósea do seu rosto e quanto padre completava sua oração com uma frase deveras enigmática

Certamente para falar dos tempos atuais de que o “senhor ruge do alto, de sua santa morada levanta a voz. Ele ruge contra o seu redil entoa uma hurra como os que pisam a uva contra todos os habitantes da terra. Porque o Senhor entra em processo contra as nações, em julgamento contra toda a carne”.

Amém, conclui, e convidou-nos a entoar o pai nosso. O que fizemos com todo ardor.

Antes do final da santa missa solicitou como de costume desde a abertura dos novos tempos com o papa João XXIII que nos cumprimentasse uns aos outros

E juro que tive vontade de dar um amplexo na senhora que há pouco se comovera em lágrimas, mas, o fiz na minha digníssima madame e mais num senhor calvo que estava sentado com sua madona à nossa frente e na minha vizinha de corredor do banco, uma idosa que beirava os 80 e era católica de carteirinha da Congregação Mariana.

Sim, esta mesma senhora miudinha, no momento do ofertório, quando uma ajudante de missa  circulou entre nós com o cesto de vime contendo imagens do glorioso santo, fitinhas à semelhança das que são comercializadas na escadaria da basílica do Senhor do Bonfim, retirou o cartão de débito e crédito e determinou a arrecadadora de donativos que colocasse no crédito o valor de 50 reais, sua contribuição naquele domingo encantado.

A serva de Deus lhe apresentou uma azulzinha ela aproximou o cartão ouvindo-se o ruído de aprovado. Feita a operação a distinta disse (assim ouvi): - Mando o comprovante para seu e-mail.

- Vão com Deus nos corações, em paz, cantando saudando o Senhor, profetizou o pároco adiantando-se aos fiéis e colocando-se no pórtico da igreja para aqueles que assim quisessem o cumprimentassem de perto, em apertos de mãos e abraços, evitando-se a saliência de beijos na face do senhor vigário.

Na saída da missa, no largo do Santo Antônio, encontrei o Avelino, o qual, pareceu-me um tanto atordoado como se estivesse com algum abafamento no corpo, com um tíquete a mexer com os ombros

Após um afogado bom dia, disse-me: Viste? - Uma belíssima missa, homilia perfeita, saímos deveras satisfeito e agora contemplemos o ar desta cidade e tomemos uma gelada enquanto aguardo a madame que se dirigiu até o Museu do Mar para comprar uma brochura, respondi

- Ora, sagaz jornalista, não zombes de minha inteligência, da minha percepção além do culto, eu também adorei a homilia do padre embora não entendesse os saberes do profeta Jeremias, falo, em tela, em foco, é viúva Suzana, que monumento, que Forte do Mar, que Elevador Lacerda, se compararmos ao que de mais belo temos em nossa cidade.

Ah! Desculpe,  se monumento há nesta cidade é a da minha esposa,  se beleza há  mais pura e mais elevada que o Lacerda é a dela, se amor existe mais profundo do que as ondas que batem no Forte do Mar é o nosso, poetizei pedindo ao Ancelmo duas latinhas de puro malte.

- Sim, sábio vate, quem tem o seu bem-querer deve elogiar mas, eu, creio que merecia uma chance daquela deusa viúva, que a conheço de muitos anos, tive o privilégio de conviver com seu falecido marido, o qual, por infortúnio, por uma dessas desídias do destino faleceu num acidente quando sua lancha pegou fogo na Baía  de Tosos os Santos

 E eis-me pronto para preencher novamente seu lar de alegria, pois, como diz o profeta Jeremias quem morre não volta mais a terra, salvo Jesus que há de voltar e, ao que dizem, já retornou ao Salt Lake City, Utah, nos Estados Unidos, onde os mórmons e o profeta Joseph Smith Jr, o “Profeta da Restauração”, o viu a fundou a Igreja Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias e está construído um monumental templo em nossa cidade.

- Não reparei na beleza da senhora que aludes, mas, se assim dizes que é formosa, quem sou para duvidar do que falas e quando estava a papear Avelino me cutuca e diz: - Ela está saindo do tempo, mira como dizem meus antecedentes espanhóis

 Nisso desponta a distinta, já sem o véu sobre a cabeça, o roxo do batom iluminando as escadarias do templo e eis que, retira da bolsa moedas para oferecer a um deficiente visual que estava a implorar uma “esmolinha pelo amor de Deus”, frase que repetia sem cessar

 E curva-se para colocá-las na cuia de queijo do pedinte quando, neste momento, escapa-lhe dos seios, do entre os seios, uma imagem de Santo Antônio que conduzia de cabeça para baixo naquele estratégico lugar

Ao que reza a cultura popular quando alguém faz um apelo dessa natureza ao santo lisboeta, é porque clama, apela e solicita ao venerando santo que consiga um marido para si

Avelino alvoroçou-se quando viu a imagem do santo ser lançada involuntariamente à cuia do pedinte, deixou a latinha da puro malta na tampa do isopor da tenda onde bebia  e correu para atender a viúva, a qual, digamos assim, ficou aflita, pois, embora o ceguinho não enxergasse, muita gente viu suas belas taças

E ela tentou ajustar-se como pode, recuperando o santo e segurando ardorosamente com as mãos

Já ao lado da viúva Avelino gagueja:  – Se a madame quiser alguma ajuda estou aqui para cumprir os desejos do Senhor. – Oh! Quanta gentileza do amigo, mas, estamos em paz graças a Deus, eu, piedosa que sou e gratifiquei o nosso querido pedinte, como faço sempre que venho a esse templo e agora irei para casa.

Avelino pigarreou, olhou para as nuvens do céu, pensou em convidar a viúva para uma gelada, mas, entendia que ela não era uma senhora de tenda, de botequim, de pé-de-balcão do Mercado Modelo, de bater caranguejo, e acrescentou: - Falo também da imagem do santo, se sofreu alguma avaria.

– Como o senhor é bondoso. Meu protetor, meu conselheiro (mostrou a imagem a Avelino) está bem, ótimo, não necessita de reparos. – Se quiseres posso ajudá-la a guarda-lo com todo carinho.

A viúva sorriu e foi extremamente elegante com Avelino: - Creio, meu amável senhor, que este não é o local ideal para fazeres isso, na porta de um templo. Lhe agradeço e vou colocar Antônio, como vês, na bolsa.

E assim fez deixando-o Avelino desarmado, porém, espirituoso como é, deu a volta por cima e soletrou: - Quando a esbelta senhora quiser estou à disposição para um vinho, a troca de ideias, um pouco de filosofia, de psicologia, isso lhe fará bem. – Agradeço o convite e lhe avisarei, em oportuno, quando faremos isso, será um imenso prazer.

Avelino retornou ao largo, a viúva entrou no veículo estacionado ao lado da igreja e ainda deu para ver que um motorista, engravatado e com quepe, a conduziu para sua mansão no bairro da Graça, informações que o amigo me passou.

Eu acabara de beber a latinha do puro malte e encaminhava-me com a madame para o Poró onde iriamos almoçar, enquanto Avelino, que tinha outro compromisso com amigos na Cruz do Pascoal, em mesa de b ar e samba, disse-me que estava levitando, que a conversa com a viúva foi esplendorosa

Que ela aceitara um convite para ir as taças, que estava no papo, que daria o melhor de si, iria, inclusive decorar uns versos do Rui Espinheira Filho para declama-los, não como se fossem seus, mas dando a fonte, vestiria o seu melhor em linho,

 O tempo é maldoso e senhor da razão e foi passando, passando e nada da viúva retornar uma ligação para Avelino, o qual, diante da promessa de um encontro a brindar taças do blanche passar a andar sempre com uma imagem do santo milagreiro no bolso

Lá um dia, aproximando-se da trezena para o santo casamenteiro, estivemos no restaurante do Lionel Rocha e da Isa, na rua Direita, e eis que encontramos Avelino, soturno, tristonho, a tamborilar na cabeça da imagem de santo Antônio um choro do Waldir Azevedo que um músico da casa executava numa clarinete

E as conquistas, os novos amores, a viúva Suzana foram as taças? Inquiri.

Avelino retirou do bolso da jaqueta em recorte da coluna da Coeli, de A Noite, com o relato de novas núpcias da mais endeusada viúva baiana com senhor igualmente viúvo das vinhas da Oliveira, em Portugal, a viver em nova família num sobrado no centro velho da Lisboa, em frente a basílica de santo Antônio

O clarinetista chorava “Apanhei- te cavaquinho” de Ernesto Nazaré e Avelino curtia sua solidão castigando a careca do santo protetor das mulheres com as pontas dos polegares

Minha esposa, espirituosa como é, ao nos acomodarmos adiante numa mesinha de canto para um risoto, cochichou no meu mouco ouvido: “Em santo protetor de mulher; homem não mexe a colher”

O clarinetista chorava e no correr da música percebia-as a ouvidos plenos e sãos que há trechos em que a clarineta gargalha sem perceber a dor de um apaixonado traído pelo santo e pela viúva charmosa