Cultura

A HISTÓRIA DOS BAIRROS DE SERRINHA, CAP 30: OS GLADIADORES DA SERRA

Como surgiram as turmas de jovens dos bairros e a demarcação de territórios
Tasso Franco , Salvador | 14/06/2023 às 09:06
"Gladiadores", João Galinha à frente, na conquista do Morro Guarani, sexta santa
Foto: Arquivo de Jorge Matos

  Somente a partir das décadas que vão entre 1940/1960 é que Serrinha - a cidade e os bairros - ganham uma maior dimensão em função do seu crescimento populacional natural impulsionado com as estradas de rodagem (Transnordestina e a BR-116 Norte), dos cursos ginasial e do magistério com as inaugurações do Ginásio Estadual do Nordeste e da Escola Normal, expansão do comércio, incremento da indústria sisaleira e ampliação do setor de serviços. 

  E vai desencadear um movimento sociológico já existente nas cidades de maior porte do estado e do país a criação de uma vida própria nos bairros com comércio iniciante, alguns serviços, etc, e surgir as comunidades de bairros.

  Observa-se que, até essa data citada acima, as relações se davam com a Serrinha como um todo - a festa do Natal, o desfile dos Ternos de Reis, o Carnaval, Semana Santa. acontecendo na praça Luís Nogueira, uma única igreja, com comércio centralizado nas ruas centrais, etc - e a partir dos anos 1960 se espacialisa, se expande para os bairros que começam a ter vida própria e nesse contexto surgiram, também, as turmas (ou gangues) infanto-juvenis e de adolescentes dos bairros e até das ruas. Os festejos juninos foram os primeiros realizados nos bairros e não num único lugar, assim como a subida ao Morro Guarani, na sexta-feira santa.

  Esse fenômeno já existia em Salvador com as famosas turmas da Ribeira, capitaneada por Berereco; e do Campo da Pólvora, o menino e depois jovem ACM à frente (este mesmo que foi governador da Bahia), a do Barbalho, do Santo Antônio e outros, fenômeno que já existe nas grandes cidades mundiais, São Paulo, Londres, Paris, NY. Em Londres, até hoje, as "gangues" - lá têm esse sugestivo nome - infernizam a vida de alguns locais e os "hooligans" são grupos de torcedores de futebol que usam da violência, bebem alcoólicas feito camelôs e arrepiam.

  Eu estava em Paris, 2022, quando aconteceu final da "Champions" entre o Liverpool x Real Madrid, jogo vencido pelo Real, e parte da cidade foi invadida pelos "holligans" do Liverpool centenas de jovens que quebraram bares, tumultuaram a praça da Prefeitura e o entorno do estádio causando muitos tumultos e a Polícia teve que agir com força, prendendo dezenas deles.

   Em Serrinha, essas turmas não chegaram a ter nome de "gangues" e não saberia dizer se ainda existem. Nos anos 1950/1960 havia várias e eu integrava a turma do Largo da Usina, praça Miguel Carneiro, juntamente com Boi, filho de Titi Magalhães, Dinho e Toinho, filhos de Neco Bilheteiro, Belmiro Mercês (filho de Antônio Mercês), Dem, Fio, Miro Pezão e Bacalhau e na nossa praia, isto é, no nosso campinho de futebol do largo só quem jogava babas éramos nós e convidados de ruas próximas. Se uma turma de outro bairro quisesse ocupar nosso espaço, o "couro comia", havia "porrada", como se dizia na gíria baiana.

  Tinha turma do bairro da Rodagem, a turma dos Capuqueiros do Oséas, a turma da Barão de Cotegipe, a da Rua da Estação, a do bairro do Cruzeiro, a do Largo da Matança e assim por diante. Cada qual no seu espaço. Eu por exemplo, jamais jogava bola na Rua do Cruzeiro que tinha um campinho ótimo porque não seria aceito. No máximo, meu território ia até o campinho do Jardinzinho na praça Luís Nogueira e num campinho que havia no final da Rua da Estação, em frente à casa de Aurelino Paes.

  Jorge Matos, "cacique" da Barão de Cotegipe, me contou uma briga que houve entre as turmas da Barão e da Rua da Estação que ocorreu no Beco da Galinha Morta diante da disputa de arraias, uma turma cortando as arraias da outra, e o filho do delegado Euvaldo Campos, Roberão, que morava na Estação, foi de bicicleta até as proximidades da Barão de Cotegipe na área da rocinha de Sêo Dezinho dizer lero aos oponentes do seu bairro e a porrada correu solta, havendo, inclusive uma "guerra" de pedras e turrões com Celsão, Evandrinho, Vlademir (filho do promotor), Barrão, Zé Filho, Paulinho (filho de Paulo do Armazém), etc; de um lado e ele (Jorge), Valdemir, Cacau, Mário Wilson, Gedinho, Getúlio filho da fateira, os irmãos Ademário e Rubem Bonfim, do outro lado.

  Nessa briga, Valdemir foi capturado pelos adversários e amarrado num poste e Gedinho, filho de Sêo Dedé da Leste chegou a produzir um arco e flecha onde na ponta da flecha colou um osso.  Valdemir, conhecido também como Demir, contou-me que não foi brincadeira e, na confusão, os "gladiadores" da Barão recuam para seu território (após tentaram invadir a Rua da Estação pela área do largo em frente à Casa de Aurelino Paes onde havia montes de areia e tijolos em produção) e ele foi amarrado pelos "espartanos" com cordas até que foi salvo horas mais tarde por sua avó Rosinha, a qual dando falta do "moleque" foi lá e libertou-o, sem nada avisar a Vavá, pai de Demir, que era "brabo".

   O jornalista Valdomiro Silva (Mirinho) que mora em Feira de Santana desde 1984 e já foi secretário de Comunicação da Prefeitura, gestão José Ronaldo, contou para este BJÁ como uma turma de bairro, em 1970, ocupou uma área da fazenda de Oséas (hoje, bairro Oséas) e fundou o campo do Capuco. Agamenon Sales, o Agá, especialista em "história do Capuco", diz que a ideia partiu de Bizagão, a idéia de capinar o mato em torno de uma pequena "clareira", nas terras de Oséas, para fazer ali um campinho de bola.

   A turma batia ponto diariamente nas calçadas do armazém de Zé Reis e combinou - Agá e seu irmão Plínio, Nilton e Val Capão - pegaram enxadas e campinaram uma área onde a Cooperativa Mista dos  Agricultores de Serrinha, cujo galpão era próximo, processava milho e mandava carroceiros jogar os sabugos naquelas redondezas

  Segundo Mirinho, fizeram parte da "primeira geração" do Capuco os irmãos de Nilton (Vavá e Nenen), Galegão da Sucam e o irmão Galeguinho, Massimino Caceteiro, Raimundinho, Cebola Podre, Puciano Nariz de Ferro, Tarzan Apolo Nove, Cocota, Zé Carlos Sapateiro, Faninho, que mais adiante se tornou um importante diretor do Vitória (Vitória profissional, o tradicional clube de Salvador), entre outros. Sucederam outras gerações de "capuqueiros".

  Como vocês veem, as turmas, além de demarcar seus espaços nos bairros também edificam e foi assim que nasceram os campos da Rodagem (hoje, do Bahêa da Rodagem), do Crrzeiro (este não existe mais), etc, e tudo não era somente brigas.

 As turmas caçavam passarinhos (usavam badoques e arapucas), tomavam banho no Riacho da Bomba e do Tiro de Guerra, subiam o Morro Guarani, jogavam pião, ferrinho, etc, e (já um pouco maiores) namorava somente as meninas do bairro, no nosso caso, até a Praça Luís Nogueira. Eu, por exemplo, nunca namorei uma garota do bairro Cruzeiro (a gente dizia que era longe), nem sei de alguém da Bomba que tenha namorado em nossa área.

  As turmas também eram do “bolinha” e da “Luluzinha” e muitos desses jovens se casaram com garotas dos seus bairros embora, o Ginásio e a Escola Normal, tenham democratizado e ampliado essas competências.