Cultura

O ANDARILHO DA CIDADE DA BAHIA 7: COMO SALVADOR MUDA A SUA PAISAGEM

O bairro dos Barris que era eminentemente residencial se transformou em comercial e de serviços, com poucas residências e mesmo assim com placas de vende-se
Tasso Franco , Salvador | 11/06/2023 às 09:49
A Rua Conselheiro Junqueira Aires, Barris, antes de residências; hoje, só comércio e serviços
Foto: BJÁ
 
Quando ando nas ruas e praças da Cidade da Bahia constado a realidade da urbe em movimento e muitos de nós não percebemos que mesmo em alguns sítios que se conservam históricos, aparentemente, imutáveis, há mobilidade

 Uma rua parada imóvel e seu casario quer antigo ou novo se transforma, veste-se de vidro onde era madeira; de aço onde era tijolos; de alumínio onde era ferro; de acrílico em toda fachada antes bela
  Ouço sons! São os sinos da matriz! Ouço alguém tocando violão numa casa em que se vendem instrumentos, ouço timbres de berimbaus e o jogo da capoeira na praça do Terreiro que jesuítas descansavam e contavam as estrelas 

  Desço a rua das Laranjeiras, tomo a Santa Isabel até a escadaria da Ladeira da Ordem Terceira, paro, penso, pergunto: Onde andarás Alaíde do Feijão? Ah! Dizem-me, faleceu e o feijão que era na Ladeira está em Laranjeiras

  Tomo a antiga rua da Vala até a Barroquinha! sou Moisés andando sobre as águas da Baixa dos Sapateiros, do rio das Tripas, subo a Ladeira das Hortas até o Largo de São Bento, oro, rezo aos pés de São Sebastião, temo que a flecha que atingiu o seu peito se volte para mim

  Sinto-me aliviado, sem pecados, puro, sublime ao deixar o templo beneditino e observo uma multidão de pessoas a andar na Sete

  Vou adiante até o Beco da Maria Paz e avanço em direção ao Largo do Relógio e observo como tudo mudou desde a época de J.J. Seabra e Arlindo Fragoso, as fachadas dos prédios antigos desapareceram, há lojas com sprinter e cadeiras giratórios e faço um exame de vistas gratuito numa óptica onde era uma antiga chapelaria

  Ora, pois: Seabra e Fragoso com seu projeto Haussmeniano a imitar Paris derrubaram quarteirões de casas em adobes, uma banda da Casa do Senado, colocaram no chão a igreja velha de São Pedro e nem imaginam o que fazem agora com o casario que restou vestido de placas de acrílico e neon 

  Percebo que os homens não usam mais chapéus e ternos de linhos, os carregadores não ostentam mais roupas de sacos de linhagem, vende-se bags e não sacolas, bocetas são bolsas, brinquedos eletrônicos substituem os artesanais, perfumes "francess" falsos são vendidos em tendinhas que imitam os vendedores da Élysée

  Vejo a identidade brasileira a flor da pele, mas ainda não perdemos a mania de ser Paris e há, adiante, no Beco do Mocambinho uma montanha de relógios Cartier a R$25,00 cada 

  O trajeto da avenida é o mesmo do Antigo Caminho para a Vila Velha onde havia aldeotas de tupinambás nus a comer beijus, no São Bento, na Piedade, no Passeio Público, a viver como a mãe natureza acolhia-os noite e dia

  Ah! vejo os camelôs e os vendedores de todo tipo de mercadorias a gritar oferecendo blusas, sandálias, calças, biquinis, sutiãs e outros tantos frutos de comilança e do mar como os antigos mercadores da Direita do Palácio a mercar pinha, peixe, camarão, siri, paçoca, acerola, abacate, aipim meu pai, uma cestinha por cinco reais 

  Estou diante do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia - a casa do saber - e do romano prédio da OAB - dos togados - e não há ninguém das letras e da história a declamar, vivalma de juristas a vagar, tertuliar, e o que ouço são as vozes dos mercadores, dos homens e mulheres da periferia a vender quiabos, tomates, cenouras, batatas - a do reino e a doce

  Como é fantástica esta cidade da Bahia

  Há um formigueiro de gente no Portão da Piedade e não dá para andar por lá. Sigo pela Ladeira da Conselheiro Junqueira Ayres observando os envidraçados shoppings vizinhos do Convento dos Capuchinhos, que contraste fabuloso meu caro Walter Benjamin, são as novas passagens comerciais que atraem os clientes pela sensualidade, pelo prazer, pelo sabor das frutas, e lá vou eu adiante para os Barris 

  A Junqueira que era habitada por famílias a tomar café na varanda e ouvir os passarinhos que cantavam no fundo do convento são lojas com nomes bem sugestivos do Mundo Indiano ao Bazar do Valter; Atreva-se Moda Íntina a Linda na Festa; arrisco-me a comprar um par de meias

  Há nas casas louças, móveis, utensílios, sombrinhas, sapatos, cadarços, chapéus, bisquís, tudo a venda quando havia famílias a prosar e beber cafés com biscoitos, torradas com mel

  Sigo sem leme e na minha frente só existe a ladeira e o céu lá em cima sombrio, nublado, chuvoso como sempre foi nesses maios de tantos séculos

   Esta é a cidade do Salvador e eu sou o andarilho ando onde dá na telha e tudo me interessa à frente e aos lados, os velhos e moços que sobem e descem, que nos olha com indiferença, que não nos dão um bom dia

  Havia esse hábito é verdade e o tempo o engoliu com raiva, com força, somos seres errantes cada qual em seu caminho longe estamos da beira mar e andamos numa colina que um dia foi a Chácara do marquês de Barbacena, Felisberto Caldeira Brant Pontes de Oliveira Horta 

  Que nome pomposo, que sitio de fontes abundantes a encher d'água os barris, em épocas da Colônia e também do Império pois assim fomos durante muitos anos

   Barris que também foi dos batuques do Ilê Axé Oxumaré, da Roça do Lobo, do colégio de Dr Abílio César Borges tem perfume antigo e andamos em silêncio contemplando a história noutra paisagem, carros a buzinar nos meus ouvidos, felizmente moucos

  Como é bom ser surdo nestas horas e alguém, um passante, grita no meu pé de cima, ouvido, não está vendo o carro não "véi" e eu nem vi o carro e o aviso do passante, o que ouço é uma canção de amor

 O andarilho está com os pés cansados e de olhos atentos a todas essas mudanças que a cidade proporciona vendo um bairro que eminentemente residencial virar um grande bazar, a céu aberto e a céu fechado

  Os shoppings têm charme diz-me Eulália, a manicure que analisa cuidadosamente minha unha encravada; mas a rua é a rua, mais barata, mais solta, mais livre, sem notas de nada, sem impostos sem faturas e a gente do povo ama

  Calço minhas meias novas e digo que vou até general Labatut, a Biblioteca Central erguida pelo governador das letras Luis Viana Filho realizar umas pesquisas sobre a cidade e ela sorri e desaconselha: lá anda mais fechada que aberta

  Não perco a viagem e contemplo o templo da leitura mas não consigo o que queria observando o elefante branco ainda imponente em arquitetura e desço às suas escadas até a Salete, espio o Convento da santa dos alpes franceses, a Cayru, passo na Dionisio Cerqueira, subo a Teodomiro Sampaio, a Almeida Sande, a comendador Gomes Costa onda ainda há residências e infinitas placas de vende-se

  Estou exausto e descanso nu Velho Espanha abraçando uma gelada, bem que mereço, e poderia aqui erguer a beira da calçada uma taça ao símbolo da liberdade de poder andar pelas ruas da Cidade da Bahia vendo-as mudar de tom, de donos, de paisagens o casario com mangueiras e janelas envidraçadas virarem bazares, sedes de sindicatos e empresas

  A fotografia de um tempo atual, apenas o presente