Cultura

ANDARILHO DA CIDADE DA BAHIA 6: A POPULAÇÃO DE SALVADOR VIVE ENJAULADA

Uma situação lamentável a cidade se transformou numa grande prisão
Tasso Franco , Salvador | 04/06/2023 às 09:38
Grades e cercas elétricas em toda a cidade
Foto: BJÁ
   Somos os novos passarinhos do século XXI

Vivemos como cardeais, pintassilgos, coleirinhos e curiós em gaiolas protegidos por grades, cercas elétricas, guaritas elevadas e blindadas, portas metálicas, trancas de ferro, fechaduras digitais, cercas de arame farpado estilizadas usadas na primeira guerra mundial

É como estivéssemos numa grande prisão naquela que um dia foi uma cidade livre e a mais bela do Atlântico Sul 

Ora, se agora estamos enjaulados perdemos essa condição de beleza e ainda nos restam as ruas, as praças, os jardins e as praias até que a grades cheguem

E já chegaram no antigo outeiro grande, hoje, Campo Grande, do monumento da liberdade à Independência da Bahia, do caboclo com sua lança, e na praça da Piedade onde o portão principal de acesso vive no cadeado e na corrente

Os capuchinhos quando andam nesta praça rodeiam-na pelas laterais beirando o Gabinete Português de Leitura, de um lado; e o templo para São Pedro, do outro e abençoam os aposentados sentados nos bancos da frente à Sete

Antes, no tempo de Thomé, neste espaço viviam livres, sem grades, sem correntes, sem jaulas, os tupinambás a comer e a pescar o que havia na natureza

Ainda não determinei que pássaro sou

Gosto da pega, a pega do Sertão, e seu canto carretilha bem agudo e estridente

Na minha jaula noutro tempo morou o pintor Rescala donde via o mar de Ondina e as ondas das águas a zoar na praia, os gatos a vadiar num morrinho que homenageava os felinos e a viverem plenos com a natureza

Rescala pintou muitas representações da Bahia suas paisagens e seu casario ainda sem as jaulas circundando-as e correu o mundo mostrando-as de Chicago a Madri, de São Paulo a Porto Alegre

Edificou-se neste sitio um condomínio residencial Mansão Rescala uma prisão cercada de grades por todos os lados, guarita suspensa com vidros à prova de balas, porta metálica blindada e câmeras em cada canto

É, onde, pois, o pega do Sertão mora a cantar com seu bandolim, enjaulado

Um de nós desta mansão que assim se apelidou e de outras com nomes pomposos que existem no morro onde os bichanos não miam mais em seus cios se aventurar-se, à noite, descer até à beira mar perde a carteira de notas, se for homem, e os batons e os reais se for mulher

Sim, podemos contemplar o mar, os dos andares mais altos, atrás das grades; e dos andares mais baixos o concreto adiante de outras mansões só se enxergam janelas, os lampejos das TVs e as redes a balançar

As jaulas não estão somente no Morro que foi dos Gatos, há outras e tantas quantas quiserem contar nos morros do São Caetano, no Alto das Pombas, no Alto do Saldanha, no Alto de Ondina, no Alto da Terezinha, no Alto do Cabrito, no Alto do Coqueirinho, no Monte Serrat, na Colina do Bonfim, por outros tantos que existem

E nas milhares de residências em ruas e becos, travessas e avenidas dos habitantes pobres e ricos, dos remediados, dos estabelecimentos comerciais, das agências bancárias, dos candomblés, das igrejas católicas, dos templos evangélicos e até do Paço municipal, ninguém escapa

Prendem-se também aparelhos, castiçais de prata, objetos os mais variados, aparelhos de ar condicionados, caixas de equipamentos telefônicos nos postes, imagens de santos, oratórios, cofres de dízimos e demais seres imóveis

Pede-me a esposa: vai ao Chame-Chame na revendedora de bebidas e traga-me um pacote de cerveja duplo malte, um de água e um de coca cola teremos visitas ao domingo e dirijo-me resoluto ao Edgar, o fornecedor

Chego, observo, pergunto: onde estás meu nobre? – Aqui, responde-me com a mão através de uma jaula minúscula, abanando-a, e faço o pedido; ele faz as contas e por esse mesmo buraco passa a máquina do cartão para o pagamento, enquanto noutra jaula, um pouco maior, seu filho despacha meu pedido

- Prazer em vê-lo (sem vê-lo) e despeço-me. – Obrigado chefe apareça sempre.

Parto feliz, salvo. É assim, também o método usado em farmácias, padarias, armarinhos, mercearias menores de bairros, quitandas e tantas são a perder de conta onde os fregueses ficam nas ruas e os donos dos negócios enjauladas

 Há um belíssimo quadro da Lagoa de Abaeté do mestre Rescala vendo-se as lavadeiras, as dunas como se fossem uma montanha de neve e as águas azuis e lembrei-me que o pega do Sertão quando violeiro, hoje bandolinista, ia com amigos e amigas às serestas, aos drinks, a ouvir o canto de Abaeté na conquista de sua sereia

Como era gostoso e saudável esse viver livre sem as jaulas, sem o medo de perder a viola, sem o sobressalto de não encontrar o fusca no retorno da jornada, alguns dos nossos e de outros boêmios até a dormir e esperar o dia amanhecer nos braços d’alguma amada

Bem, são os tempos do passado meu caro, do Rescala, do Calazans e suas baleias e bodes, do violeiro Vinicius de Moraes, do Genaro de Carvalho, de Jorge Amado, Godofredo Filho e de tantos outros que andavam pela cidade a assoviar

Não há queixumes, só constatações, o pega do Sertão não é saudosista

E até admira a indústria das jaulas que é criativa, que usa as novas tecnologias e está sempre a inovar e a oferecer novos modelos, câmeras interligadas ao iphone, aplicativos que garantem sua família numa jaula feliz, conexões automáticas com delegacias, rondas em veículos blindados na sua rua, tantas são as inovações e emoções

- Vamos a pracinha, convida-me o vizinho Xavier disposto a respirar ar livre fora da jaula e a contemplar o verde da Centenário, a prosar, a caminhar, e lá fomos protegidos pelo guardião do Pulo do Gato, a mercearia do nosso bairro, o cão boca, um vira lata destemido

Sim, segurança absoluta, confesso a Xavier e ele sorri: - Parece-me que o boca não seria capaz de trazer ao atirador dos campos de Ibitiara uma codorniz capenga chumbada

Chegamos ao destino e ao verde que te quero verde a contemplar a mais bela avenida da cidade cujo rio dos Seixos onde banhavam-se Caramuru e Dias Adorno, Catarina e Magdalena, já foi tamponado com placas de cimento e por uma nova reforma passa com tratores à bailar, pás e picaretas a dançar

- Que achas? – pergunta-me. – Temo pelas grades

Acionamos imediatamente boca espreguiçado sob a brisa de uma mangueira a olhar-nos, vigilante, sagaz, ágil como a flecha de Oxóssi que se levantou esperto, à postos, e retornamos para nossas jaulas em casa

É assim que os pássaros da cidade do Salvador tomam seu banho de sol no admirável mundo novo enjaulado