Cultura

O ANDARILHO DA CIDADE DA BAHIA 5: AS RUAS, AVENIDAS, BECOS E CAMINHOS

O Andarilho da Cidade da Bahia aponta os caminhos seguidos pelos fundadores de São Salvador da Bahia
Tasso Franco , Salvador | 28/05/2023 às 10:02
As primeiras ruas da cidade do Salvador
Foto: BJÁ
   Ribombem os couros do Olodum, desfraldem as bandeiras, toquem os sinos da Sé jesuítica que o andarilho vai percorrer os mil caminhos, ruas, jardins, avenidas, praças, largos, vielas e becos da Cidade da Bahia

  A cidade mãe é tão antiga quanto a arca de Thomé e suas botas e de outros fidalgos portugueses, de flamengos, castelhanos, italianos, galegos e alguns homens de cor d'África que foram as primeiras a pisarem o Caminho do Concelho

  Caminho que já era conhecido de Diogo Álvares, o Caramuru, que morava no altiplano da Barra e já havia erguido dizem historiadores as capelas para Nossa Senhora da Graça e Nossa Senhora da Vitória

  Esse Diogo tão desprezado pela história que nem monumento tem apontou a trilha para os exploradores oficiais do novo mundo, “muito que certo colaborou com sua prática do gentio e o conhecer de sua língua”, aponta Theodoro Sampaio.

  Uma fila de homens a subir a montanha em busca do melhor local para erguer a fortaleza contornando a área rochosa à vista mar pelas bordas do oratório da Graça, hoje, a Barra Avenida

  Luís Dias, o mestre de obras, à frente, com as traças em mãos seguido de Thomé de Souza, Antônio Cardoso de Barros, Pero de Góes, o pedreiro Fernão Gomes, o carpinteiro Gaspar Pires, o oleiro Pero Muniz, o caieiro Pero Jorge e outros a saber tantos foram

  No manejo dos facões, roçadeiras, foices, enchós, machados, pás, picaretas e enxadas para limpar o cimo de 74 metros em altura sobre o mar em terreno triangular correndo área maior pelo lado do precipício

  A cortar os paus da Mata Atlântica e abrir a grande via da futura cidade fortaleza que se chamou Caminho da Vila Velha

  Caminho para a vila erguida pelo donatário Pereira Coutinho, a partir de 1536, devorado pelos tupinambás, e que se situava no local de águas mansas na Baía de Todos os Santos, na beira mar da barra

  A casa de Thomé era a nau Nossa Senhora da Conceição até que o cimo depois do Outeiro Grande e das aldeias tupinambás de outeiros menores onde se assentaram o Campo Grande, a Piedade e depois o São Bento, fosse limpo, nivelado, paliçado, onde, hoje, há o Elevador Lacerda que sobe e desce a levar gentes 

  E ergue-se um palácio de taipa e barro de sopapo onde passou a morar o governador Geral do Brasil, Thomé de Souza, em maio de 1549
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  Rufem os tambores da Didá, desfraldem a bandeira da Bahia, toquem os sinos da Sé de Palha em louvor a Nossa Senhora da Ajuda

  Vai partir a primeira procissão de Corpus Christi da Terra de Vera Cruz dita nas 7 folhas da Carta de Caminha, 49 anos depois do achamento de Cabral em Porto Seguro

  Na Fortaleza de Salvador da Bahia que sequer ainda tinha esse nome as autoridades, os tupinambás, os jesuítas, os artífices, os homens em armas espingardeiros e flecheiros a andar na Praça do Palácio protegida em baluartes

   E a pisar nas três primeiras ruas da cidade, Direita dos Mercadores, das Vassouras e dos Capitães conduzindo a bandeira com as armas reais e cruz da Ordem de Cristo e uma cruz enorme de madeira

   Tupinambás mirins descalços com cruzes de pindoba presas aos pescoços dando uma volta nessas ruas até a Sé de Palha, algumas mulheres e homens nativos com vergonhas descobertas, Nóbrega a orar em voz alta com os irmãos jesuítas a repetir suas frases

   Historiadores dão a inauguração da cidade como a 1º de novembro, dia de Todos os Santos, mas mestre Theodoro Sampaio aponta que a data seria o 13 de junho, a reconhecida pelo Senado da Câmara

  E mais diz em sua História da Fundação da Cidade que somente a 10 de agosto, pela primeira vez, registra-se a citação do Porto e Cidade do Salvador, por carta de Nóbrega

 “Desde logo, se fez paz com o gentio da terra e se tomou conselho onde se fundaria a nova cidade, chamada Salvador”, assim escreveu o frade Nóbrega.

  A cidade fortaleza na inicial com sete ruas e duas praças, a saber, a Direita dos Mercadores, a maior correndo de Norte a Sul longitudinal, com 140 braças; nesta mesma direção a Capitães, a Pão de Ló e a Ajuda

  Três transversais, a da Assembleia onde os passantes tiravam os chapéus das cabeças em reverência às autoridades (a Tira Chapéu), a das Vassouras (malváceas) e a Travessa da Ajuda, depois Berquó

   E as praças do Palácio onde estavam o palácio e o Senado da Câmara, casas feitas de taipa de mão e cobertas de palmas; e a pracinha da Ajuda, em frente à igreja, onde hoje há, se já não caiu, um busto de Nóbrega 

  E no correr dos anos outras ruas foram sendo abertas, a Ladeira da Praça que dava na da Vala, os becos da Água do Gasto e do Mocotó, a do Tijolo, do Curiachito, da Lama, da Barroquinha, dentro e fora da fortaleza
Protegida que era por quatro portas de madeira e ferro, de Santa Luzia, ao Sul; de Santa Catarina, ao Norte; a que dava para o lado do mar no Pau da Bandeira; a do lado da Terra em direção ao beco da Água do Gasto e da Vala
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   Repiquem os taróis do Cortejo Afro, desfraldem a bandeira dos revoltosos da Conjuração Baiana, deem vida aos sinos da Basílica de Nossa Senhora da Conceição, a primeira da cidade baixa

   Assim nasceu a cidade da Bahia, a rancharia no cais da Ribeira do Góes, as ladeiras da Montanha, da Preguiça e da Gameleira ligando as duas cidades, as fontes d’água e a feira livre em frente ao palácio do governador

   Com Mem de Sá lá se foi a cidade para fora dos muros, das portas, em todas as direção, o Colégio dos Jesuítas ao Norte e o Terreiro de Jesus onde deitavam os irmãos jesuítas para ver as estrelas e o Deus no céu; ao Sul com os beneditinos a ocupar área de uma aldeia no Caminho da Vila Velha

  O Caminho de Baixo a entroncar com a Gamboa; os caminhos para Água de Meninos e Tapagipe; outros a Oeste para a aldeia do Espírito Santos e Carmo; e foi seguindo em todas as direções

   O Caminho da Vila Velha, depois Avenida do Estado, hoje e desde 1915, Avenida Sete de Setembro, obra de J.J. Seabra a derrubar igrejas e tudo o mais que via pela frente e a cortar 9 logradouros: São Bento, Relógio, Piedade, Mercês, Campo Grande, Corredor da Vitória, Ladeira da Barra, Porto da Barra e Farol de Santo Antônio.

  Onde estanca para dar lugar a Oceânica que beira o mar aberto do Atlântico na trilha nova do Caminho Antigo para o Rio Vermelho, para a aldeia dos Franceses onde teria morado o Caramuru.

   A ainda neste século XXI a mais querida avenida, a Sete, é abraçada por casas e apartamentos de alto padrão, igrejas, comércio e catorzes becos, tortos e retos, estreitos e lagos a contar: 

  Maria Paz, da Nova de São Bento, 11 Junho, Coqueirinho, Mocambinho, da Forca, do Mijo (ou da Farmácia), Paulo Autram (ou do Rosário), da Quebrança (Jonas Abot), Salvador Pires (ou do Sebrae), Hugo Wilson (ou do Abaixadinho), das antigas tendas de massagens (na descida da Ladeira da Barra), do Leite de Camelo (Cézar Zama)

    Hoje, passados 474 dessa aventura quixotesca a Cidade da Bahia acolhe 3 milhões de almas pecadoras em todos os quadrantes avançando para o litoral Norte e miolo, com milhares de novos caminhos, estradas, travessas, becos, glebas, escadas, praças, largos, pracinhas, larguinhos, avenidas, tantos são difíceis de conter e saber

   A ocupar todos os espaços como diziam os antigos cronistas ao rei de Portugal que “a terra é generosa e em se plantando tudo dá”, e espaços onde só cabem uma família faz-se um puxadinho e cabem duas, três, e novas almas vão sendo geradas, novas ruas surgem do dia para a noite

   A criatividade popular supera o planejamento urbanístico e mora-se nas travessas do Pilão sem Tampa, do Bozó, do Brandão, do Bacelar; ou nos becos do Carrão, do Mingau e do Tijolo; como bebe-se e fornica-se no Off e no das Cores; reza-se no Oração; baila-se no Ferrão e em Laranjeiras; anda-se no Caminho da Areia, nas Travessas do Gama, na Legalidade, na Lopes Trovão, na Santos Titara

Eu, rapaz forte e ágil, tantas vezes percorri esse Caminho da Areia, a sair de Roma sem ver o papa, passando pelos Jardim Cruzeiro, pela Vila União, pela beirada do Campo de Lasca para ir remar em Porto Tanheiros, no São Salvador; e depois num pulo de ônibus para chegar a Dendezeiros onde estudava no colégio da PM

Façam isso hoje que lhe roubam as calças, mas nos 1960 nada acontecia e nas noites, já no jornalismo, no Jornal da Bahia, na Barroquinha rua que tanto andei em direção a Nova do São Bento, onde morava, alguém gritava na redação: “Quem vai ao Maria da Vovó nesta noite de estrelas”

E, se íamos, a pé, que era um pulo passando em frente à igreja da Barroquinha, se benzendo, tomávamos o cruzamento da Sete com a Ladeira da Montanha e chegava-se ao dancing para namorar com as senhoras da noite e/ou às vezes só pastorear, beber, prosar

E se fossemos de carro a deixar o veículo na Montanha e, na saída, nas madrugadas, a cúpula da Conceição onde se viam as torres e os sinos chamando para as missas, o carro estava lá intacto na cidade da paz, do amor, da não violência

Quando desabaram casas na Gameleira e morreram alguns heróis das noites e das camas a ironia do destino mostrava que a cidade e seus castelos, o Melancia e outros eram os olhos das noites e das ruas
Hoje, se ainda existisse uma dessas casas de acolhimento na Montanha e parrassem seus veículos no retorno e se dirigissem para uma prosa, não encontrariam nem a chave das rodas

Ruas que de quero e ainda ando, flano, danço, canto, só durante o dia, andarilho que sou do saber
A Câmara de Vereadores, no entanto, prefere dar títulos de cidadãos da minha cidade a generais, almirantes e cardeais que sequer sabem onde fica o Maciel de Baixo, a Cruz do Pascoal, nunca ouviram João da Matança e Sandoval do Bandolim, ora, pois, deixe-me em paz a andar a pelejar a vadiar

Minhas botas ainda bailam pelas ladeiras do Pelô, do ICEIA, da Princesa Isabel, da Conceição, do Cacau, do São Caetano, do Curuzu

E dancei a ferver os sapatos na praça do poeta Castro Alves, no larguinho do Relógio, no outeiro do Campo Grande, na Sete do Farol

Zanzei pelo Jardim Cruzeiro e subi as colinas do Bonfim, da Água de Meninos, de Nazaré, do Boqueirão, do Santo Antônio da Barra e em ruas por onde passaram os vendedores de acaçá, os vassoureiros, os bananeiros, os amoladores de tesouras

E fico triste ao ver que o Largo do Pelô, das chibatadas e morte dos escravos, homenagear José de Alencar, um escravocrata, e a Rua Mercadores do Palácio se mudar para Chile tantas são essas e outras aberrações, a Luís Vianna ser Luís Viana Filho trocando-se pai por filho, melhor, pois, ser Paralela, a Afrânio Peixoto ser Suburbana, o largo histórico da Graça ser Dr Paterson, a fonte da Catarina entupida de merda, o rio dos Seixos a Rua da Vala cobertas com placas de cimento, a Laranjeiras sem o perfume das laranjas.

Quão dessemelhantes és Cidade da Bahia onde há a Liberdade no Caminho das Boiadas e a fé no Caminho da Vila Velha.
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