Manifestantes gritam "O Pelourinho é nosso" e o pintor que pinta deitado não se levanta
Eu canto a cidade, respiro a fragrância do Pelourinho
Não a do cepo, da chibata e dos grilhões, dos gritos de dor, do acoite
Mas aquele que vem da brisa da Baía de Todos os Santos e que sobe a encosta com os ventos
Atravessa o corredor da Sé e chega ao Terreiro de Jesus
Percebo, no entanto, uma atmosfera de protesto
Rufam tambores! Ouvem-se sons de falares e o ronco de uma cuíca
Alguém sobe num banco da praça e grita: - Salvem o Pelourinho, nosso ganha pão
Leio num cartaz: - Os marginais venceram, a PM perdeu
São gritos de dor sem o zunir das antigas chibatas portuguesas a cortar corpos, matar gentes
O que exigem na sinfonia dos tambores pelas ruas do centro histórico é a sobrevivência da vida
Sigo com eles até o largo da Fundação Casa de Jorge Amado, da matriz de Nossa Senhora dos Homens Pretos
Há um silencio na praça. Todos se perfilam olhando para o Carmo
O líder ergue os braços e acena aos manifestantes como se fosse um maestro
A um sinal que fez com sua batuta imaginária ouvem-se apelos ritmados:
"O Pelourinho é nosso", "O Pelourinho é nosso", os tambores voltam a rufar
A cuíca chora, o surdo marca o passo, o repique alegra, o monsenhor ergue um cartaz
A toada avança pela ladeira do Pelô, o símbolo da resistência, pés pisam as pedras roliças
Filmo, fotografo, anoto, estamos no século XXI, da internet, dos avanços tecnológicos
Não poderia ver, se quisesse, o poeta Gregório de Matos a chacoalhar os barões do século XVII
Nem os personagens de Jorge Amado e os bedéis da Faculdade de Medicina
Vejo o guardião do Pelô em terno branco, impecável; a guardiã, cabelos alvos, com uma tarja de luto exposta no braço
A turma da palhaçaria usa narizes vermelhos, artistas de rua que vivem do Pelô bramem
Os guias turísticos, comerciantes de artesanato, donos de pousadas e botequins bradam
Trançadeiras, músicos, comerciários, artesãos, manicures, a gente do povo soluça
O grupo avança para falas finais no Terreiro, os apelos às autoridades, cegas, insensíveis.
O Pelourinho quer segurança, animação, cultura, arte, quer pulsar, ter vida
Já chegando no local onde os jesuítas deitavam na relva, descansavam, daí ser o Terreiro de Jesus
Vejo um homem que se fez cair no chão, a cabeça inclinada levemente, pincel em mãos
Não! Deparo-me com um pintor, um artista da rua, deitado no chão frio da Portas do Carmo
Pensei que estivesse morto! Suspiro! Está vivo, pintando um leque
Os manifestantes passam um a um gritando as palavras de ordem para acordar as autoridades
Ouvem-se sinos d'alguma igreja, o badalo repica em São Domingos
Acordem senhores gestores, senhores donos do Poder, não deixem o Pelourinho morrer
Detenho-me, fotografo-o, sou um homem do século XXI, não esqueçam
Estamos na Cidade da Bahia do século "high tech” a robótica, dos computadores, da roda gigante
Do metrô, do VLT, dos viadutos, do BRT, dos shoppings, do delivery
Jones não se altera nem com a ruidosa passeata nem com esses termos novos que usei
É a encarnação de "Louco" o pintor famoso que, obras cinzelou no portal da Basílica da Sé
Não! diz-me o guardião Clarindo: -É apenas mais um artista da rua do nosso Pelô, anônimo
Aproximo-me dele, astucio, vira-se de lado, limpa o pincel numa poça d'água
Observo sua arte, seu semblante, sua mansidão interior, um bebê a chupar bico
Ouço na praça os gritos finais dos manifestantes, "O Pelourinho é nosso", bem alto
O pintor deita-se novamente no passeio da escola criada por dom João VI
Os séculos passam, a vida se movimenta e o pintor pinta como no tempo de Vieira
Pinta deitado na relva de pedra na porta que também é do Terreiro de Jesus
Pensei! É, mais conforto tinham os jesuítas que repousavam na relva de grama
Paciência! O Cristo a tudo consente e abençoa na praça de Jesus.