Cultura

ANDARILHO DA CIDADE DA BAHIA 3: PROTESTO NO PELÔ E O PINTOR DE LEQUES

Manifestantes gritam "O Pelourinho é nosso" e o pintor que pinta deitado não se levanta
Tasso Franco ,  Salvador | 14/05/2023 às 08:58
Jones, o pintor que pinta deitado
Foto: BJÁ
  
    Eu canto a cidade, respiro a fragrância do Pelourinho
    Não a do cepo, da chibata e dos grilhões, dos gritos de dor, do acoite
    Mas aquele que vem da brisa da Baía de Todos os Santos e que sobe a encosta com os ventos
    Atravessa o corredor da Sé e chega ao Terreiro de Jesus
    Percebo, no entanto, uma atmosfera de protesto
    Rufam tambores! Ouvem-se sons de falares e o ronco de uma cuíca
    Alguém sobe num banco da praça e grita: - Salvem o Pelourinho, nosso ganha pão
    Leio num cartaz: - Os marginais venceram, a PM perdeu
    São gritos de dor sem o zunir das antigas chibatas portuguesas a cortar corpos, matar gentes
    O que exigem na sinfonia dos tambores pelas ruas do centro histórico é a sobrevivência da vida
    Sigo com eles até o largo da Fundação Casa de Jorge Amado, da matriz de Nossa Senhora dos Homens          Pretos
    Há um silencio na praça. Todos se perfilam olhando para o Carmo
    O líder ergue os braços e acena aos manifestantes como se fosse um maestro
    A um sinal que fez com sua batuta imaginária ouvem-se apelos ritmados:
    "O Pelourinho é nosso", "O Pelourinho é nosso", os tambores voltam a rufar
    A cuíca chora, o surdo marca o passo, o repique alegra, o monsenhor ergue um cartaz
    A toada avança pela ladeira do Pelô, o símbolo da resistência, pés pisam as pedras roliças
    Filmo, fotografo, anoto, estamos no século XXI, da internet, dos avanços tecnológicos
    Não poderia ver, se quisesse, o poeta Gregório de Matos a chacoalhar os barões do século XVII
    Nem os personagens de Jorge Amado e os bedéis da Faculdade de Medicina
    Vejo o guardião do Pelô em terno branco, impecável; a guardiã, cabelos alvos, com uma tarja de luto              exposta no braço
    A turma da palhaçaria usa narizes vermelhos, artistas de rua que vivem do Pelô bramem
    Os guias turísticos, comerciantes de artesanato, donos de pousadas e botequins bradam
    Trançadeiras, músicos, comerciários, artesãos, manicures, a gente do povo soluça
    O grupo avança para falas finais no Terreiro, os apelos às autoridades, cegas, insensíveis.
    O Pelourinho quer segurança, animação, cultura, arte, quer pulsar, ter vida 
    Já chegando no local onde os jesuítas deitavam na relva, descansavam, daí ser o Terreiro de Jesus
    Vejo um homem que se fez cair no chão, a cabeça inclinada levemente, pincel em mãos
    Não! Deparo-me com um pintor, um artista da rua, deitado no chão frio da Portas do Carmo
    Pensei que estivesse morto! Suspiro! Está vivo, pintando um leque
    Os manifestantes passam um a um gritando as palavras de ordem para acordar as autoridades
    Ouvem-se sinos d'alguma igreja, o badalo repica em São Domingos
    Acordem senhores gestores, senhores donos do Poder, não deixem o Pelourinho morrer
    Detenho-me, fotografo-o, sou um homem do século XXI, não esqueçam
    Estamos na Cidade da Bahia do século "high tech” a robótica, dos computadores, da roda gigante
    Do metrô, do VLT, dos viadutos, do BRT, dos shoppings, do delivery
    Jones não se altera nem com a ruidosa passeata nem com esses termos novos que usei
    É a encarnação de "Louco" o pintor famoso que, obras cinzelou no portal da Basílica da Sé
    Não! diz-me o guardião Clarindo: -É apenas mais um artista da rua do nosso Pelô, anônimo
    Aproximo-me dele, astucio, vira-se de lado, limpa o pincel numa poça d'água
    Observo sua arte, seu semblante, sua mansidão interior, um bebê a chupar bico
    Ouço na praça os gritos finais dos manifestantes, "O Pelourinho é nosso", bem alto
    O pintor deita-se novamente no passeio da escola criada por dom João VI
    Os séculos passam, a vida se movimenta e o pintor pinta como no tempo de Vieira
    Pinta deitado na relva de pedra na porta que também é do Terreiro de Jesus
    Pensei! É, mais conforto tinham os jesuítas que repousavam na relva de grama
    Paciência! O Cristo a tudo consente e abençoa na praça de Jesus.