Cultura

O ANDARILHO DA CIDADE DA BAHIA 2: O VENDEDOR DE CABIDEIROS

És o avesso dos tempos modernos, cutuco-o. Mudes, se recicle, avance, a biomedicina está fazendo milagres, a informática dominando todos os campos, comenta o prosador
Tasso Franco , Salvador | 07/05/2023 às 10:01
O vendedor de cabideiros e a prosa poética de Sêo Franco
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 Há anos é o meu caminho de casa a avenida de cima. Do outro lado tem uma outra que chamo avenida de baixo. Uma vai para o centro da cidade e a outra em direção ao mar.

Existe um templo de missa, a Ressurreição do Senhor, um colégio de meninos e meninas pequenas, um hotel e uma banca de revistas e lá está ele, vejo-o à distância, o vendedor de cabideiros de chão.

Mas, como existe este ser se estamos na 4ª era industrial da Inteligência Artificial, da Tecnologia da Informação e da robótica? Será que alguém ainda compra cabideiros de vendedor mascarado, presumo, protegendo-se contra a Covid.

Paro o caro, vejo uma enorme cruz do templo católico a nos sinalizar que estamos na semana santa com um pano roxo embandeirando-a, marcho em sua direção como um gladiador, aproximo-me e pergunto: que vendes?

Cabideiros, pano de chão, mesinhas de madeira, cadeirinhas do Ceará e esta maravilha de máquina – aponta-me uma raquete – de matar moscas e muriçocas. – Zás, mexe-a de um lado para outro, não fica uma viva.

Astucio, absorto, incréu, ainda há quem mate moscas e muriçocas desta maneira na Cidade da Bahia? E há quem compre cabideiros na era dos computadores e dos robôs que lavam louças e limpam residências, espantam mosquitos e perfumam chapéus?

- Sim - responde convicto - gente como senhor que coleciona bonés, a viúva que reza ao senhor Deus e usa escovão e pano de chão para limpar a casa, o bebedor de vinhos que acha minhas mesinhas ótimas para suas taças.

- És o avesso dos tempos modernos, cutuco-o. Mudes, se recicle, avance, a biomedicina está fazendo milagres, a informática dominando todos os campos, as novas profissões conquistando espaços. Exemplifico sobre as novas profissões: cientista de dados, analista big data, digital influencer.

- Não me xingues, advertiu-me. Este é meu ganha pão. Com os cabideiros e as raquetes sustento à minha família, vivo feliz, não tenho patrões, não frequento salões, não babo os senhores ladrões de plantão e não estou sujeito a mordaças.

- Este verniz marfim me agradou. Examino o cabideiro de chão. Ele me olha com desconfiança, cuba-me da cabeça dos pés, observa a boina quadriculada que uso, minha camisa guayabera branca com a caderneta de anotações à mostra e caneta tinteiro no bolso.

Deve ser um comunista, um velho chato, desses que anota tudo, quiçá, um jornalista – assim imagino eu o que pensava o vendedor - sem dá uma palavra, sem elogiar o produto à venda deixando que eu analisasse a qualidade do objeto.

- Vou levar este – soletrei - ainda que esteja na dúvida se o marfim ou o marrom tabaco, mais escuro, mais adequado às minhas boinas. – Eu, se fosse o senhor levaria o mais escuro, é mais sério, tem sua cara de homem a antiga como meu pai.

- Rabugento! queres dizer, comentei meneando a cabeça e olhando para a cruz ostentação do templo. – Não, de forma alguma, meu pai é, mas o senhor não sei, sinto que é um homem bom, educado, aí também se parece com meu pai.

- Vale quanto o cabideiro – perguntei - já segurando o objeto com as mãos e pronto para colocá-lo do porta-malas do meu carro. – R$70,00 – responde. Pensei em pechinchar, mas, desisti. Um velho bom – pensei – não pechincha.

- Recebes cartão? Solfejei. –Cartão e pix. No pix faço um desconto de R$5,00 – respondeu. - Só minha esposa é que tem pix cobre neste cartão, retirei o cartão da carteira e dei-lhe já colocando o cabideiro no meu veículo.

Ele pegou um pacote com cinco panos-de-chãos e falou: - Faço R$80,00 numa promoção os panos e o cabideiro. – Mirei sua testa, seus olhos esbugalhados brilhavam como o Farol da Barra, e inquiri: - Quem lhe ensinou essa técnica de marketing comum entre os lojistas?

- A vida, a prática, nunca tomei curso de nada e nem sei o que é marketing, respondeu. Desconversei e autorizei que cobrasse só o cabideiro os combinados R$70,00 explicando-lhe: - Temos carpetes no quarto e banheiros, tapetes na sala e máquina que faz esse serviço.

- Então, creio, jamais o senhor compraria uma raquete de matar mosquitos, sinto isso, em casa de rico não há insetos nem muriçocas como nas nossas, arreliou passando o cartão e dando-me o comprovante da compra.

- Não busco saber onde o jovem vendedor mora e digo-lhe (olhei para o templo) diante dessa cruz do salvador, que se fosse rico não andava de gol velho, comprava cabideiros na rua e ovos no carro do ovo. – Sou um operário das letras, provavelmente um supérfluo, como diz o papa.

- Desculpe. Não quis ofendê-lo. Meus clientes são a minha razão de ser, de existir, disse.

- Achas também ser um homem invisível? Um pária da sociedade desprotegido da máquina do poder e levado a tentações pelo pé-de-Botelho? – provoquei-o.

- Cruz credo. Sou protegido do padre, do dono da escola, de Deus, e perfeitamente visível. Pegue em mim, apalpe meu braço – estirou o braço portando a raquete de matar insetos – e antes que eu tocasse em seu braço...zás, imprimiu velocidade e matou uma mosca que voava próximo.

Fiquei admirado com sua destreza e seu conhecimento do valor do ser. - Vejo que, de fato, és ágil e visível, provavelmente sem pecados e sem tentações – argui pronto para me despedir abrindo a porta do carro para partir.

Ele pegou um palito no bolso e espetou a mosca morta na grade da raquete jogando-a no chão e esmagando-a com o pé. – Que pecados podes ter um vendedor de cabideiros? Meu pai, velho, viúvo, vive tentado por mulheres. Eu, não, sou feliz com minha esposa e minha filha, trabalhador de sol a sol, de chuva a chuva. Como diz o padre: - Sou pio.

Embarquei, liguei o veículo, encaixei a primeira e fui indo. Ele se aproximou da janela do veículo e disse: - Em setembro, voltes com a esposa para comprar buquês de “sempre-viva”. Cheguei em casa com um cabide carregando-o nas costas e meditando e sonhando com as flores do campo.

A esposa estava sentada no sofá da sala assistindo TV quando entrei e admirou-se, não tanto pelo cabideiro em marrom tabaco, cor que ela sabe ser a minha preferida, mas por meu semblante contemplativo, mediúnico, como se estivesse a levitar.

- Que me dizes, acorda, mais um cabideiro para seus chapéus, mais boinas, mais bonés, hás de entupir o gabinete com eles, de inspirar-se nas letras – sorriu – mandando que eu levantasse os ombros e a cabeça diante da minha coluna amarrotada.

Estirei o pescoço como as mulheres girafas da África, inalei o ar da sala, um cheiro de incenso de lavanda inundava o ambiente e poetizei: em setembro, quando as sempre vivas brotarem, o operário das letras, o piedoso, (lembrei-me do pio do padre) será saudado com beijos.