Cultura

EMPREENDEDORES DE RUAS INVISÍVEIS EM SALVADOR, 3:CASAL DE JORNALEIROS

O casal de irmãos trabalha há 42 anos, sem férias, numa banca de revistas, jornais e bombons
Tasso Franco ,  Salvador | 06/05/2023 às 11:22
Cirilo e Flora, jornaleiros do Chame-Chame, 42 anos na luta
Foto: BJÁ
 
     Viver toda a sua vida profissional como vendedor usando a rua, a calçada, a praça, o largo como local de trabalho é também uma arte. É preciso ter persistência, muita disposição para enfrentar as adversidades e as mudanças da cidade, os humores das autoridades, enfim, uma luta permanente e eterna. Assim pensa Cirilo do Lago, 79 anos de idade, 42 anos, comandando ao lado da irmã Flora Conceição do Lago, 83 anos de idade, a banca de revistas do Chame-Chame, bairro de Salvador.

  - Somos de Catu e instalamos a nossa banca na esquina da Frederico Scmidt, Barra, com a Avenida Centenário, em área à beira da calçada onde havia no recuado um enorme terreno que servia para babas diversos - de crianças a adultos - local em que está erguido o Shopping Barra. A banca era de revistas e jornais como era comum naquela época.

  Os negócios iam bem, se ajustando com o tempo. O primeiro impacto na vida de Cirilo e Flora foi a construção do Shopping Barra inaugurado em 1988. Estavam há 6 anos no ponto, um bom local, confluência do acesso ao Jardim Brasil, por um lado; e mais adiante acesso à praia do Farol da Barra e a rua Miguel Bournier que já tinha algum comércio. Ponto, diríamos, excelente com boa movimentação de clientes.

  Era preciso, no entanto, deixar o local. Retirar sua barraca e ir para outro ponto. Mas, para onde? O shopping era imenso tomava todo o quarteirão, ao lado já havia um supermercado do Paes Mendonça, e Cirilo colocou a boca no mundo junto aos seus amigos. Eu era um deles, não amigo diretamente, mas, cliente, freguês como se dizia e trabalhava na imprensa. Ele me pediu socorro e eu ajudei na medida em que publicava notas dizendo que a Prefeitura tinha que arranjar um local para Cirilo e Flora, realocarem sua banca.

  O senador Jutahy Magalhães era freguês influente; Joviniano Neto era outro que poderia ajudar. Ajudaram no que puderem e a banca de Cirilo/Flora foi levada para a rua comendador Francisco Pedreira na esquina com a Ari Barros, atrás da Igreja de Santa Terezinha, a paróquia do Chame-Chame. Menos mal. Era um ponto sem grande visibilidade como o da esquina da Frederico Scmidt, porém garantida o ganha-pão do casal e a permanência de sua banca.
 
  Assim, antes mesmo do Shopping Barra ser inaugurado, em 1987, o casal se instalou neste novo local onde havia, também, o posto Luana, de combustíveis, do João Farjala, e neste local durante 36 anos permaneceu e angariou novos clientes e novas amizades. No governo do Prefeito Imbassahy quando houve uma requalificação das bancas de jornais e revistas, a essa altura muitas delas já vendendo doces, cigarros, bebidas, brinquedos, etc, as barracas de chapa foram substituídas por modelos mais estruturados e a banca de Cirilo/Flora foi uma das contempladas. Ganhou um "up-grid".

  O tempo foi passando e veio o impacto da internet que, não só atingiu a dupla Flora/Cirilo mas centenas de outras na cidade na medida em que a venda de jornais e revista começou a minguar e se aprofundou a partir de 2007 quando Steeve Jobs lançou o iphone e as pessoas foram migrando (os leitores) das revistas e jornais para as telinhas dos computadores. Foi um baque. A banca, que vendia centenas de jornais ao mês, passou a vender dezenas. "Os leitores desapareceram num processo gradativo e que impactou em nossas finanças", confessa Cirilo.

 A alternativa - não somente da banca Chame-Chame mas de todas as outras da cidade do Salvador - foi diversificar a oferta de produtos para os fregueses com a venda de bombons, cocadas, cigarros, álbuns, etc numa alternativa para a sobrevivência. Já nesta quadra no final dos anos 10 e início dos 20, os jornais do Sul - Folha, Globo, Estadão - deixaram de circular e entregar na banca e as vendas dos locais - A Tarde, Correio, Tribuna, Massa - caíram assustadoramente.

 E, além do mais, com a requalificação da Av Sabino Silva e o entorno do Chame-Chame onde está o Victória Center e encontrava-se a banca de Cirilo-Flora a empreiteira que fazia a obra determinou que sua banca fosse removida do local.

 "Mas, como! ir para onde, berrou Cirilo ao engenheiro que administrava a obra, e pediu tempo para se entender com a Prefeitura. Apelou mais uma vez para os amigos e um deles, freguês antigo, intermediou o amparo da dupla junto a Prefeitura e a banca foi relocada para o ponto de ônibus quase em frente a entrada da igreja de Santa Terezinha, até melhor do que o da comendador Francisco Pedreira. 

 "Foi a nossa salvação" - comenta Flora - que, aos 83 anos de idade, ativa, altiva, todos os dias trabalha na banca no expediente à tarde e início da noite, quando dá folga a seu irmão. Flora - brinca e diz - "eu criei Cirilo e trabalhamos juntos há muitos anos". Cirilo - também em tom de brincadeira comenta - "ela (a Flora) não me deixa.

 Solteiros, bem humorados apesar das adversidades da vida, vão sobrevivendo graças as mudanças que imprimiram no negócio, a diversificação, e admite que a venda de cigarros - a retalho, sobretudo - e de água e mais doces e pequenas guloseimas é que ainda dão sustentação à banca.

 "Ainda temos clientes antigos como Joviniano e outros, poucos que são, que ainda compram jornais e revistas, mas a venda desses produtos caiu demasiadamente e muitas revistas desapareceram e que vendiam bem como Caras, Playboy e outras. Até as revistas de sexo sumiram do mapa porque a população toda com a popularização do iphone, o barateamento deste produto, acompanha o noticiário e outros pela internet", confessa Cirilo.

 - O que fazer então, pergunto?

 "Não há o que fazer e temos que seguir o que a população (os fregueses) procura. Cigarro dá pouco lucro em vendas as carteiras inteiras e muita gente compra no retalho o que é bom para nós porque o lucro é maior. Muita gente pode pensar que é uma bobagem, mas para nós é importante", confessa Cirilo.

  A banca como fica localizada em frente a um ponto de ônibus é um local de referência e solicitação de informações dos passageiros que perguntam a toda hora para Cirilo ou Flora, onde "pegar um ônibus para o Iguatemi, para o 5º centro, para a rodoviária". 

  Cirilo diz que se fosse cobrar por informação estaria bem, mas passa esses dados gratuitamente. "É um serviço que prestamos e faz parte do nosso negócio ainda que a maioria dos que pedem a informação não compra nada", diz.

  - Vocês acham que contribuem para o desenvolvimento econômico e social do país?

  "Evidente, estamos neste negócio há 42 anos, pagamos impostos, pagamos licença a Prefeitura, somos também consumidores, então ajudamos o país", confessa Flora.

  - E as novas tecnologias vocês usam para alavancar as vendas?

  "Nosso negócio é pequeno. As vendas aqui são à vista, em dinheiro vivo, até porque ninguém vai comprar dois cigarros por 3 reais no cartão, e os fregueses antigos como Joviniano (uma referência, sempre) pagam por mês. Nem pix recebemos e não vamos mudar, nem temos mais idade para isso", alude Cirilo.

  Frequento a banca de Cirilo/Flora há anos e esta conversa foi recente, duas rodadas de conversas, uma delas por volta das 13h e observei que o relógio que Cirilo usava marcava 9h30min e disse: - Poxa, seu relógio está atrasado e sinto já vontade de ir a um coma kilo no Barra, que horas temos?

  "Esse relógio aqui do meu pulso é enfeite, coisa bem baratinha, só para fazer presença. A cidade está cheia de ladrões e uso esse que se levarem não vale nada. O outro, o melhor, está aqui guardado (mostra-me) e diz são quase uma e meia".

  Nos despedimos e eu fui almoçar deixando a dupla Flora e Cirilo e/ou Cirilo e Flora no batente como há 42 anos, com a mesma disposição de pequenos empreendedores.