Cultura

O ANDARILHO DA CIDADE DA BAHIA 1: SALVADOR, A MÃE DO BRASIL

Em frente aquele mar que o havia deslumbrado e não era mais o menino do sertão
Tasso Franco , Salvador | 30/04/2023 às 10:05
O jornalista TF no Santo Antônio Além do Carmo
Foto: OG
   A CIDADE DA BAHIA


   Era um março de águas do mar revoltas quando a conheci pela primeira vez
   A Pensão de Sêo Lisboa, na Cotegipe, nosso lar
   Casa dos “serrinhas” que vinham do interior pela “Chemin de Fer”
   E saltavam atônitos, perdidos, na imensa estação da Calçada
   Deslumbrante e belo prédio que enchia nossos olhos de esperança
   Do novo, do vidro, do ferro, e quem vinha do sertão, como eu
   Acostumado aos cactus e macambiras, a seca e ao sol
   Entrava na casa da modernidade
   E quem tinha dinheiro como meu pai, meu guia da primeira viagem
   Usava um táxi chevrolet preto, alinhado, em corrida até a pensão
   De tão chique que era senti o deslizar das rodas aos Mares, a Roma
   E num zás até ao meio da Barão casarão da Lisboa
   A mala de couro meu velho levou ao subir a escada da hospedaria
   Eu, atrás, deslumbrado, atencioso, seguindo seus passos
   Fomos acomodados por dona Neném, a real comandante da casa
   Lisboa adorava a boemia, marido da Neném, a empreendedora
   Meu pai iria às compras no Comércio para abastecer sua tipografia e livraria na Serra
   Fomos ao almoço antes de pegarmos a marinete 
   Dona Neném levou-me a lavar as mãos e o rosto 
   Antes de na mesa sentarmos
   A pia ficava numa varandinha que dava vista para o mar
   Olhe a praia do Canta Galo disse-me meu velho
   Fiquei petrificado, imobilizado
   Navios que nunca tinha visto na vida, a imensidão do mar
   A onda, a praia, um pescador que atirava a linha 
   Tudo era deslumbramento, grandeza, poder
   Eu era pequeno e não conhecia a frase o sertão vai virar mar;
   O mar vai virar sertão
   Nem sei se já existia
   Depois, já grande, que sabedoria imensa no sertão virar mar
   Pelo menos na cabeça daquele menino de mente oca, inocente
   Passou essa ideia de que se o mar fosse para a Serrinha
   Adeus seca, adeus falta d'água, adeus juremas
   Absorto, meu pai cutucou-me para o almoço
   Na pensão tinha hora marcada pra comer e pra dormir
   Enchemos as panças
   E de marinete chegamos ao Comércio onde meu pai comprou
   Papel em resma, tintas para máquinas impressoras a pedal e tipos em chumbo
   Os alemães da Westfalen eram os importadores
   Homens enormes, olhos azuis, sapatos diferentes dos nossos   
   Um deles de gravata e camisa de manga curta, imaginei o chefe
   Missão cumprida andamos até o Elevador Lacerda
   Tremi as pernas quando meu velho disse: - Vamos subir o elevador
   Sim, aquilo, pra mim, era um monstro, uma assombração
   Minhas pernas tremiam como varas verdes do bambu
   Por pouco não urinei nas calçadas
   E subimos naquele monstro eu agarrado nas pernas do meu velho
   Que homem impassível! nada me dizia
   Chegamos ao topo e um alívio imenso tomou meu corpo e minha mente
   A Cidade da Bahia vista do alto
   O Forte do Mar, a baía de Todos os Santos, o casario, a igreja do Bonfim
   Lá no fim 
   O povo miudinho e as marinetes na praça Cayru
   E seguimos pela rua Direita do Palácio, pelo comércio de casas chiques
   Era precisa levar lembranças para a Serra
   Uma boina pro papai, um colar para a mamãe, meia para o meu irmão mais velho
   Um laçarote para minha irmã e uma calça comprida para mim
   Foi o dia que virei homem
   Mudei da calça curta à comprida, como os homens da minha cidade
   Sêo Veloso, Sêo Pirulito, Sêo Adelmário, Sêo João da Ema
   Minha alegria era tanta que até o medo de descer pelo mesmo monstro que subira
   Desapareceu, evaporou-se
   Já pensava no retorno à Serra e ir a matinée do cinema 
   Vestido de homem
   Foram as minhas primeiras impressões da cidade da Bahia
   Anos depois, ralos fios da barba saindo no queixo
   Voltei a ela para estudar, trabalhar e viver o resto de minha vida
   Como não amar esta cidade
   O Colégio estadual da PM nos Dendezeiros, dos estudos das primeiras letras
   Em química, física, matemática
   O João Florêncio onde conclui o científico na Ribeira
   O trem para Periperi onde me aventurava com uma namorada
   O Caminho da Areia das festas e forrós
   O bairro de Roma minha morada e seu cinema
   Os shows e festas do rock com Big Ben
   O nascente hospital da irmã Dulce, abençoada santa dos pobres
   A prainha, o bar de Pisca, a Boa Viagem, que praia maravilhosa
   Os babas e os campeonatos de futebol de Areia jogando pelo Brasília, na Canta Galo
   O mar aos meus pés, a bola correndo ágil, jovem arisco se livrando dos sarrafos
   Eis, o menino da Pensão de Lisboa dominando a pelota 
   Em frente aquele mar que o havia deslumbrado e não era mais o menino do sertão
   Era, com orgulho, um jovem da Cidade da Bahia
   Que mudança extraordinária
   Nem tanto ao céu; nem tanto à terra; pois nunca deixe que meus pés 
   Se afastassem do meu Sertão onde vim ao mundo
   A raiz, o mandacaru, a ancestralidade, essa ninguém perde
   Enterra-se o umbigo onde se nasce
   Ama-se outra terra como amo a Cidade da Bahia 
   Que me deu a conhecer as letras e o jornalismo
   Que me deu o feijão de cada dia e onde nasceram meus filhos
   Dois que são já vivendo em outras terras mais distantes
   E eu, ainda aqui, velho, no trabalho, na luta 
   E, vez por outra, também andando por terras estrangeiras
   Mas, sempre lambendo a minha serra pequena e a cidade da Bahia
   Meu flanar entre a cidade baixa e a cidade alta, a subida na vida
  O início da maturidade, o saber mais profundo
   O alisar os bancos de estudos da universidade, da Faculdade de Filosofia
   No jornalismo, no bater da Remington numa redação da Barroquinha
   E são muitas lembranças e flanares na Joana Angélica, na Poeira
   No caminhar rápido pela Piedade e Mercês; Campo Grande e Corredor da Vitória
   Para matar a fome no Restaurante universitário, que delícia
   Canela, Garcia, Federação, Barra, a cada dia descobrindo novos lugares
   Quantos porres tomamos na tenda dos orixás do vale
   No Havana e nos inferninhos da Nova de São Bento
   No Caberá do Jaime, na Maria Vovó e na casa abençoada de Cinara
   De belas meninas moças das noites
   Dos saraus com João da Matança e Sandoval do Bandolim, no Pau da Bandeira
   Com Jeová de Carvalho e Rui Espinheira a fazer versos
   Com os Pastores da Noite, Rêmulo e Rafel, com Zé Maria e Félix, o Anízio
   O jornalista era também uma arte, a poética, o mundanismo
   As senhoras da noite que nos serviam feijoadas e abarás
   Os caminhões de comidas, os vendedores de rosas, os eternos boêmios
   Os cantinhos de comer mais sossegados, no Moreira, no Tabuleiro da Baiana
   No Chile, o clássico hotel da Rua Direita do Palácio
   Ah! entrar no Adamastor para comprar uma camisa social
   Nas Duas Américas para adquirir um par de meias e uma gravata
   Na Sloper para buscar o perfume da amada
   Sim, penetrei em muitos bailes de 15 anos das filhas dos espanhóis
  Os ricos donos de padarias e das sorveterias
   Fomos ao Cirex, ao Fantoches e ao Cabana da Barra
   A carnavais dos pierrôs e colombinas e as festas de formatura
   Claro, usei smoking com peças desconexas e chupei abacaxis na Conceição
   Dobrei o ano na Boa Viagem e lavei os olhos no Pilar
   Assisti os ternos de reis na Lapinha e o pipocar de fogos para Santa Bárbara
   De vermelho saudei Iansã; de branco joguei flores para Iemanjá
  Cidade de tantas andanças que vi se transformar
   Que o flanar ficou enjaulado nos shoppings e mudou de direção
   Mas que ainda resiste com o guardião Clarindo Silva no Pelô
   O rufar dos tambores do Olodum
   O padre de missa do Terreiro e a baiana do acarajé no São Francisco
   Os capoeiristas lançando as pernas ao ar em frente a medicina
   A faculdade que dom João VI, em 1808, abriu a Bahia ao mundo
   Os aposentados a contar causos na Piedade, o vendedor de livros da praça
   O ourives da Sete, as vendedoras de comidas do Relógio
   A Cidade da Bahia se reinventa se move sem perder a sua raiz ancestral
   Sim, vou amolar alicates num beco da Sete, comprar umbus da Joana Angélica
   Abacates e bananas no Mocambinho onde um dia bebi o xixi de anjo
   Comprar pães de coco na Bola Verde a padaria dos sonhos do 2 de Julho
   Andar na Faísca para consertar a capa fixa do sapato da madame 
   Orar no pé do caboclo do Campo Grande como fiel rubro negro
   Ouvir Fred Dantas soprar seu trombone e a Tepsicore tocar um dobrado
   Ao 2 de Julho, nossa data máxima da independência
   Flanar, flanar, flanar
   Dia desses um compadre que se chama Lapa inquiriu:
   Ainda estás a andar como nos tempos da Maria da Vovó
   Do Mococof a cantar, da Castro Alves a gritar, a praça é do povo 
   Das meninas do relógio e do beco Maria Paz
   Dos monges do São Bento e dos frades da Piedade
   Da Rua K e da Placa Ford a namorar
   De Dodô e Osmar a trinar?
   Sim, eternamente a flanar
   Do Porto da Barra ao Pelô; da Sé ao mar
   Do Além Carmo ao bar
   Da fonte de Catarina na Graça, ao altar
   Flanar, sempre flanar
   A cidade aos meus pés
   A gente, o povo, a vida no meu olhar