Missão cumprida andamos até o Elevador Lacerda
Tremi as pernas quando meu velho disse: - Vamos subir o elevador
Sim, aquilo, pra mim, era um monstro, uma assombração
Minhas pernas tremiam como varas verdes do bambu
Por pouco não urinei nas calçadas
E subimos naquele monstro eu agarrado nas pernas do meu velho
Que homem impassível! nada me dizia
Chegamos ao topo e um alívio imenso tomou meu corpo e minha mente
A Cidade da Bahia vista do alto
O Forte do Mar, a baía de Todos os Santos, o casario, a igreja do Bonfim
Lá no fim
O povo miudinho e as marinetes na praça Cayru
E seguimos pela rua Direita do Palácio, pelo comércio de casas chiques
Era precisa levar lembranças para a Serra
Uma boina pro papai, um colar para a mamãe, meia para o meu irmão mais velho
Um laçarote para minha irmã e uma calça comprida para mim
Foi o dia que virei homem
Mudei da calça curta à comprida, como os homens da minha cidade
Sêo Veloso, Sêo Pirulito, Sêo Adelmário, Sêo João da Ema
Minha alegria era tanta que até o medo de descer pelo mesmo monstro que subira
Desapareceu, evaporou-se
Já pensava no retorno à Serra e ir a matinée do cinema
Vestido de homem
Foram as minhas primeiras impressões da cidade da Bahia
Anos depois, ralos fios da barba saindo no queixo
Voltei a ela para estudar, trabalhar e viver o resto de minha vida
Como não amar esta cidade
O Colégio estadual da PM nos Dendezeiros, dos estudos das primeiras letras
Em química, física, matemática
O João Florêncio onde conclui o científico na Ribeira
O trem para Periperi onde me aventurava com uma namorada
O Caminho da Areia das festas e forrós
O bairro de Roma minha morada e seu cinema
Os shows e festas do rock com Big Ben
O nascente hospital da irmã Dulce, abençoada santa dos pobres
A prainha, o bar de Pisca, a Boa Viagem, que praia maravilhosa
Os babas e os campeonatos de futebol de Areia jogando pelo Brasília, na Canta Galo
O mar aos meus pés, a bola correndo ágil, jovem arisco se livrando dos sarrafos
Eis, o menino da Pensão de Lisboa dominando a pelota
Em frente aquele mar que o havia deslumbrado e não era mais o menino do sertão
Era, com orgulho, um jovem da Cidade da Bahia
Que mudança extraordinária
Nem tanto ao céu; nem tanto à terra; pois nunca deixe que meus pés
Se afastassem do meu Sertão onde vim ao mundo
A raiz, o mandacaru, a ancestralidade, essa ninguém perde
Enterra-se o umbigo onde se nasce
Ama-se outra terra como amo a Cidade da Bahia
Que me deu a conhecer as letras e o jornalismo
Que me deu o feijão de cada dia e onde nasceram meus filhos
Dois que são já vivendo em outras terras mais distantes
E eu, ainda aqui, velho, no trabalho, na luta
E, vez por outra, também andando por terras estrangeiras
Mas, sempre lambendo a minha serra pequena e a cidade da Bahia
Meu flanar entre a cidade baixa e a cidade alta, a subida na vida
O início da maturidade, o saber mais profundo
O alisar os bancos de estudos da universidade, da Faculdade de Filosofia
No jornalismo, no bater da Remington numa redação da Barroquinha
E são muitas lembranças e flanares na Joana Angélica, na Poeira
No caminhar rápido pela Piedade e Mercês; Campo Grande e Corredor da Vitória
Para matar a fome no Restaurante universitário, que delícia
Canela, Garcia, Federação, Barra, a cada dia descobrindo novos lugares
Quantos porres tomamos na tenda dos orixás do vale
No Havana e nos inferninhos da Nova de São Bento
No Caberá do Jaime, na Maria Vovó e na casa abençoada de Cinara
De belas meninas moças das noites
Dos saraus com João da Matança e Sandoval do Bandolim, no Pau da Bandeira
Com Jeová de Carvalho e Rui Espinheira a fazer versos
Com os Pastores da Noite, Rêmulo e Rafel, com Zé Maria e Félix, o Anízio
O jornalista era também uma arte, a poética, o mundanismo
As senhoras da noite que nos serviam feijoadas e abarás
Os caminhões de comidas, os vendedores de rosas, os eternos boêmios
Os cantinhos de comer mais sossegados, no Moreira, no Tabuleiro da Baiana
No Chile, o clássico hotel da Rua Direita do Palácio
Ah! entrar no Adamastor para comprar uma camisa social
Nas Duas Américas para adquirir um par de meias e uma gravata
Na Sloper para buscar o perfume da amada
Sim, penetrei em muitos bailes de 15 anos das filhas dos espanhóis
Os ricos donos de padarias e das sorveterias
Fomos ao Cirex, ao Fantoches e ao Cabana da Barra
A carnavais dos pierrôs e colombinas e as festas de formatura
Claro, usei smoking com peças desconexas e chupei abacaxis na Conceição
Dobrei o ano na Boa Viagem e lavei os olhos no Pilar
Assisti os ternos de reis na Lapinha e o pipocar de fogos para Santa Bárbara
De vermelho saudei Iansã; de branco joguei flores para Iemanjá
Cidade de tantas andanças que vi se transformar
Que o flanar ficou enjaulado nos shoppings e mudou de direção
Mas que ainda resiste com o guardião Clarindo Silva no Pelô
O rufar dos tambores do Olodum
O padre de missa do Terreiro e a baiana do acarajé no São Francisco
Os capoeiristas lançando as pernas ao ar em frente a medicina
A faculdade que dom João VI, em 1808, abriu a Bahia ao mundo
Os aposentados a contar causos na Piedade, o vendedor de livros da praça
O ourives da Sete, as vendedoras de comidas do Relógio
A Cidade da Bahia se reinventa se move sem perder a sua raiz ancestral
Sim, vou amolar alicates num beco da Sete, comprar umbus da Joana Angélica
Abacates e bananas no Mocambinho onde um dia bebi o xixi de anjo
Comprar pães de coco na Bola Verde a padaria dos sonhos do 2 de Julho
Andar na Faísca para consertar a capa fixa do sapato da madame
Orar no pé do caboclo do Campo Grande como fiel rubro negro
Ouvir Fred Dantas soprar seu trombone e a Tepsicore tocar um dobrado
Ao 2 de Julho, nossa data máxima da independência
Flanar, flanar, flanar
Dia desses um compadre que se chama Lapa inquiriu:
Ainda estás a andar como nos tempos da Maria da Vovó
Do Mococof a cantar, da Castro Alves a gritar, a praça é do povo
Das meninas do relógio e do beco Maria Paz
Dos monges do São Bento e dos frades da Piedade
Da Rua K e da Placa Ford a namorar
De Dodô e Osmar a trinar?
Sim, eternamente a flanar
Do Porto da Barra ao Pelô; da Sé ao mar
Do Além Carmo ao bar
Da fonte de Catarina na Graça, ao altar
Flanar, sempre flanar
A cidade aos meus pés
A gente, o povo, a vida no meu olhar