Livro que difundiu o niilismo na Rússia e provocou revoltas em Moscou e São Petesburgo obrigando o autor a exilar-se na França
Rosa de Lima , Salvador |
21/12/2022 às 11:08
Pais e Filhos, Companhia das Letras, 2019
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Pode um livro desencadear revoltas num país? Ajudar a desestabilizar um governo? Sem dúvida. Assim aconteceu com o autor russo Ivan Turguêniev, pioneiro da filosofia niilista - aquele que não acredita em nada, abjura as instituições, despreza os governos e considera que o amor não existe - numa de suas obras que levaram a desencadear protestos em São Petersburgo e Moscou provocando distúrbios e abalando o czarismo de Alexandre II, assassinado em 1881. Antes disso, Turguêniev teve que se exilar nos arredores de Paris, em Bougival, onde viveu muitos anos e morreu, só retornando Moscou, em 1883, quando de sua morte sendo sepultado no cemitério central.
A obra que desencadeou essa onda de violência contra o regime da servidão tem o singelo nome de "Pais e Filhos" (Editora Companhia das Letras, tradução de Rubens Figueiredo, 2019, 337 páginas, R$45,00 nos portais da internet) e narra a trajetória de retorno às suas localidades rurais de dois jovens engajados na filosofia niilista, depois de educados em São Petisburgo, os quais provocam choques culturais em suas famílias com novas ideias em defesa do campesinato e da servidão russa no campo (semelhante a escravidão), com recheio de tons românticos, próprio da época.
Na segunda quadra do século XIX a Rússia vivia momentos revolucionários com o movimento "Terra e Liberdade" e "Vontade do Povo" que pressionavam o regime czarista a abolir a servidão, o que aconteceu em 1861, como parte de uma reforma para acelerar a introdução das relações capitalistas no país. Em 1852, Turguêniev publicou a obra "Memórias de um caçador" - composta por vários contos - que girava em torno de um jovem aristocrata que vai descobrindo a verdade e a sabedoria na vida dos camponeses que trabalham na sua propriedade. Conta-se que o livro contribuiu grandemente para que o czar Alexandre II tomasse a decisão de libertar os servos por toda a Rússia. Antes dele, o próprio Turguêniev o havia feito nos seus domínios, desobrigando os seus servos.
A decisão de Alexandre II em libertar os 23 milhões de camponeses da servidão não eliminaram, no entanto, os latifúndios e a servidão em si. No Brasil, só como comparação para melhor compreensão dos nossos leitores, quando da promulgação da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, pela princesa Isabel, põe-se fim a escravidão no país, porém, na prática ela continuou nas fazendas de café de São Paulo e outros propriedades, uma vez que o governo imperial não criou mecanismos de amparo aos ex-escravos. Na Rússia, quando Alexandre II aboliu a servidão, ela continuou nos latifúndios. A diferença entre um país e outro é que os servos russos eram naturais da Rússia; e os escravos brasileiros originários da África, embora, no final do século XIX muitos já fossem nascidos e criados no Brasil.
Na obra "Pais e Filhos", que comentamos, escrita entre 1860 e 1862, o autor apimenta esse quadro social explosivo onde ondas de protestos estudantis aconteciam em Moscou e São Petesburgo, e o termo "niilista" de uso até então no campo da filosofia popularizou-se instantaneamente, o que teria aumentado as revoltas e os atentados. O principal personagem do romance um jovem estudante de medicina chamado de Bazárov em diálogos com o pai e o tio de Arkádi - o outro jovem formado em São Petesburgo - prega a filosofia niilista, que não admite nada, que não se curva diante de nenhuma autoridade, que não admite nenhum princípio aceito sem provas, com base na fé, por mais que esse princípio esteja cercado de respeito, enfim, rejeita tudo.
E nesse contexto, com os idosos consciente de que são gente do tempo antigo os quais adotam princípios, os niilistas avançam com suas ideias seduzindo os servos e sempre enxovalhando a aristocracia reinante. A partir dessa constatação, o autor coloca em cena outros personagens - o pai de Arkádi (Nikolai) que vivia com uma mulher mais nova do que ele (Fiénetchka), em reclusão na propriedade rural da familia, já com filho bebê (Mítia) e uma governanta Duniach; o tio de Arkádi (Pável, 45 anos, militar) que vai duelar a bala com Bazárov; uma aristocrata que vivia numa cidade (Odintsova) que se apaixona por Bazárov e este por ela; e uma irmã (Ana) de Odintsova que vai se casar com Arkádi; e os velhos pais de Bazárov (Vassili e Arina) que os acolhe na hora de morte contaminado por tifo.
O autor cria o romance exatamente para poder contextualizar as ideias niilistas nos diálogos "País e Filhos" - daí o titulo do livro - e promove contradições nos diálogos exatamente para seduzir os leitores e mostrar que o niilismo puro não existia ou ao menos era controverso. Quando Bazárov se apaixona pela aristocrata Odintsova isso fica claro, uma vez que, se o niilismo não valoriza o amor, entende que o amor também não existe, como esse purista do niilismo apaixona-se? O autor, então, em diálogos subsequentes entre os dois atores desfaz a paixão entre ambos, mostrando que a aristocrata tinha personalidade própria e embora seduzida por ele não se entregava facilmente; e Bazárov também a abandona, todo o enredo pondo em exaltação o niilismo com suas contradições.
O melhor do livro são os diálogos entre o tio de Arkádi e Bazaróv o qual (Pável) flagra o estudante de medicina "que não acredita em princípios, mas em rãs" beijando a esposa do irmão, a bela Fiénetcka. E, ao invés de denunciá-los a família guarda o segredo e desafia-o para um duelo a pistolas em punhos, o que é aceito e acontece para a perplexidade dos familiares sem que Pável contasse o encontro amoroso fugaz entre Bazárov e Tiénetcka. Pável é ferido de morte - assim põe o autor em parte do texto - e depois (Pável) reaparece no final morando em Dresden, na Alemanha.
Turguêniev apresenta um epílogo em que aponta a felicidade de Arkádi e Ana e mudanças no latifúndio da família; a morte trágica de Bazárov contaminado por tifo e recolhendo-se na casa de sua familia, o niilista semi morto e ainda sendo socorrido por um médico contratado pela aristocrata Odintsova, a sua morte e o sepultamento num cemitério rural; o casamento de Odintsova com um influente político da Rússia czarista, posteriormente (sinal de que a aristocracia resistia); a mudança de comportamento do pai de Arkádi (Nikolai) que se tornou árbitro oficial da disputa surgida entre camponeses e senhores.
Todo um enredo (supomos nós) que dava contornos romanceados ao niilismo embora, no âmago, na essência, tivesse passado a filosofia niilista aos seus leitores. O livro foi um grande sucesso na Rússia czarista, Alexandre II foi assassinado por revoltosos (nunca se saberá um dia qual a influência de "Pais e Filhos", embora, alguma teve, com certeza) e Turguêniev teve que exilar-se na França só retornando a Moscou depois de morto, em 1883.
Trata-se, portanto, de um livro apaixonante, de leitura agradável, diálogos que traduzem o pensamento na Rússia do século XIX, e que alçou o niilismo para os debates mais abertos na Europa, especialmente na Alemanha, onde Nietzsche já o tinha inserido na cultura alemã. Atualíssimo, até os dias atuais, especialmente no Brasil onde existem niilistas à mancheia.