Cultura

PARIS AO SOM DO BANDOLIM,CAP 30: NOSSO CANTINHO DO CÉU NA RUE DOMBASLE

C'est la vie! Momentos que marcam e ficam para a eternidade. Fugazes que sejam não sairão jamais de nossas mentes e repasso aos meus leitores com alegria
Tasso Franco , Salvador | 08/12/2022 às 07:56
Cantinho do Céu
Foto: BJÁ

  Coloquei o epiteto de "Cantinho do Céu" na nossa morada por 90 dias em Paris, yo e la madame Bião de Jesus, os dois pombinhos. Pareceu-me adequado e sugestivo esse nome, pois o local pequenino com área coberta de apenas 20 metros quadrados possuía uma terrasse de 21 metros quadrados com uma mesa e quatro cadeiras, mais dois caqueiros de plantas e um varal portátil de roupas onde almoçávamos, ceávamos, tocava bandolim e via o céu mais de perto. 

  Então, me sentia como se estivesse ocupando um cantinho do céu, evidente sem a presença de São Pedro e outros hóspedes, local de um silêncio de ouvir o canto dos pássaros e o gorgulho dos pombos, os feixes de luzes da Torre Eiffel, os raios luminosos da Torre de Montparnasse e de observar rastros da fumaças e seus desenhos soltados pelos aviões que seguiam para vários destinos mundiais e também daqueles chegavam à cidade.

  Imagino que meus leitores saibam que Paris é uma cidade caríssima para os padrões brasileiros em vários itens de consumo e os imóveis a alugar têm mais procura do que oferta após a pandemia, ano de 2022, o que requer paciência e o enfrentamento de uma burocracia enorme, acertos com as imobiliárias e os proprietários, exigindo um baita jogo de cintura. 

  Depois de 40 dias em conversas e análises conseguimos alugar um estúdio pequenino no 15º distrito, excelente local, pois próximo da escola onde a madame faria um intensivo em francês localizado no 7º algo em torno de 30 paletando, com estação de metrô a 80 passos situada no entroncamento de duas avenidas gigantes - La Convention e Vaugirard - repletas de residências e casas comerciais, além de uma feira livre à nossa porta e dezenas de bistrôs, supermercados e padarias.

  Diria que foi uma sorte imensa encontrar esse imóvel e deu um grande trabalho a madame Bião, ela que resolve toda essa parada diante de sua prática como contabilista. Eu apenas dava pitacos e acompanhava de perto seu trabalho. 

   Quando ocupamos o estúdio ficamos admirados com sua pequenez, uma vez que estamos acostumados a viver em espaços mais amplos em Salvador e em Vilas do Atlântico, onde temos o luxo de uma casa de praia, e de repente nos encontrávamos espremidos num cubículo de 20 metros quadrados chegando com quatro malas sobre rodinhas, casacos, chapéus, computador e objetos de toucador. Nos assustamos. Com o passar do tempo, nos acostumamos com o "Cantinho do Céu"e curtimos o quando foi possível.  

  Os humanos têm essa capacidade - os animais também - de se adaptarem as novas moradias. O mais importante é ter um local para estirar o corpo, dormir com razoável conforto e tudo o mais necessário. E, em nosso estúdio tínhamos o básico de boa qualidade, salvo o sofá cama que, embora bom para sentar, não era confortável para deitar e ter um sono reparador. Sentimos bastante esse desconforto, o tal a possuir uns desníveis que não permitiam ajustar os corpos com leveza, nem pra dormir; nem pra namorar. Mas, em tudo se dá um jeito e a madame Bião conseguiu nivelar essas depressões com os ededrons deixando-o lisos. 

  No mais, o decorador do imóvel foi milimétrico e sábio, pois acomodar geladeira, fogão, banheiro, sanitário, três armários, duas estantes, copos, talheres, garfos, máquinas de lavar roupas e pratos, vassouras, prancha de passar ferro, TV, duas escrivaninhas e cadeiras em espaço tão pequeno, de fato, foi um estudo cuidadoso. Tudo ficava em seu lugar certo o que dava espaço para a locomoção do casal sem problemas. 

  Eu dava risadas, apenas, quando após o almoço a madame dizia-me: - Vá andar um pouco. Eu a obedecia e ficava a contar os passos: - Um, dois, três, quatro, cinco e voltava para o mesmo lugar. Ela sorria e comentava: - Muito bem.

   A casa cada qual faz a sua. Certa vez escreveu Vinicus de Moraes ao residir em Itapuã após se apaixonar por Gesse e encomendar a Jamison Pedra e Silvio Robatto o projeto construído e batizado como "Principado Livre e Autônomo de Itapuã" (hoje, Memorial Casa de Vina), que a imortalizou com a canção "Tarde em Itapuã" - Um velho calção de banho/O dia pra vadiar/Um mar que não tem tamanho/E um arco-íris no ar. 

  Como estou longe de ser poeta e Paris não tem mar, havia em nosso cantinho, a terrasse para ver o arco íris e também cantar ao som do dedilhar do bandolim: que é bom passar uma tarde em Paris. Ficava a cantar Vinicus trocando a frase do poetinha - Passar uma tarde em Itapuã/Ao sol que arde em Itapuã/Ouvindo o mar de Itapuã/Falar de amor em Itapuã. Trocando a palavra Itapuã por Paris.

  Mas também tocava na terrasse "La Vie Rose", de Edith Piaf; cantava "O Ciúme", de Caetano Veloso; Iolanda composição de Chico Buarque e Pablo Milanés; e outras tantas canções com minha voz barítono de taboca rachada. O importante era (como fiz) usar os espaços da melhor maneira possível. Fizemos várias ceias românticas, saboreamos petiscos variados produção da madame, recebemos meu filho e nora para brindes, enfim, curtimos o local de maneira integral, abençoados pelo amor.

  Eu gosto sempre de contar histórias. No ano de 2014 fizemos uma viagem ao Peru, país que gostamos muito pelo colorido das vestes do seu povo, pelos lagos e montanhas, por sua magia, curandeirismo, tradições arraigadas e tudo o que se parece natural com as plantas e os pássaros. E fomos a área onde sobrevoam os condores e um local que parecia o fim do mundo: Puno.

  Interessamo-nos por um passeio ao campo onde iríamos a beira de um lago e depois almoçaríamos numa casa de campo de uma família. No lago ficamos encantados com o silêncio. O guia nos atentou para ouvirmos os deuses e creio que conseguimos.  

  Depois, chegamos a uma casa modesta com cerca de pedras e atendeu-nos uma jovem senhora. Achei estranho que estivesse sozinha, pois imaginava encontra uma família com mais pessoas. Ela nos recebeu muito bem com cordialidade e mesuras. Possuía uma lhama que estava amarrada na entrada e nos olhou com indiferença. Achei-a linda e encostei nela para fotos. 

  A mesa estava posta ao ar livre com petiscos, queijos e vinho. Amamos. Ela então nos convidou para conhecer o interior de sua casa e a seguimos. Foi mostrando a sala, a cozinha e o quarto de dormir. Era solteira. Tudo muito simples, minimamente decorado com tapetes coloridos nas paredes.  

  Quando chegamos ao quarto ela apontou para uma arara de roupas e abaixo da peça havia apenas 1 par de sapatos. Então perguntei: - A senhora só tem um par de sapatos? - Ela respondeu: - Só uso quando vou a Cusco. Aqui uso essa alpercata e apontou para os pés. Brinquei com a madame Bião possuidora de uma sapateira com vários pares: - Você está vendo, né. Ela não me deu ouvidos. Depois, fomos almoçar.  

  Em Paris, por posto, lembrava a madame sempre essa história do Peru e dizia: - No Cantinho do Céu só há espaço para dois pares de sapatos e foi o que levei comigo. A madame dava de ombros e dizia: - Pudesse eu seria igual a Imelda e compraria a Loubatin de cima abaixo, igual a sua neta. 

  Trabalhei atualizando o Bahia Já e escrevendo crônicas durante 90 dias numa cadeira de treliças que apelidei de "quebra costelas" e tentei ajustá-la as minhas doloridas costas comprando almofadas e encontros numa loja da Vaugirard. Eventualmente, trocava-a por uma cadeira melhorzinha com acento de telinha que usava para ver televisão. A madame também a usava nas suas tarefas de dar "prints" e cuidar da nossa área financeira. Foi uma luta. Tinha hora que dava vontade de arremessar a cadeira pelos ares. Pensei em comprar uma cadeira de melhor qualidade, mas a proprietária do imóvel não quis compensar o meu gasto.  

  Com a ameaça de um possível "sequestrador" pairou sobre nessas cabeças a intenção de levarmos nossas economias em euros amarradas às cinturas sempre que saíamos de casa ou deixa-las escondidas sob cobertas. Certo final de semana fomos a Lyon e a madame, precavida como é, disse: - Vou levar meu capilé no porta euros da cintura. - Eu deixarei o meu em casa dentro de uma meia na cômoda. - É louco! Podes perder o pouco que tem. Felizmente, no retorno a meia estava intacta.

  Na data do aniversário da madame recebemos filho e nora que estavam morando em Milão. Foi uma imensa alegria. Vinho de melhor qualidade foi servido e os petiscos também. Fomos até o Monoprix e compramos mais duas taças e queijos especiais. Foi emocionante. A madame foi as lágrimas e cantamos parabéns com a noite iluminada pelas estrelas. Contei 51 delas. E se não foram 51 flores nos vasos foram tantas e belas.

   Tínhamos um zelo de excelentes donos de casa. Cabia a madame produzir as refeições sempre leves e com sucos, queijos e vinhos; No petit dejaneur não dispensávamos cafés, croissants, iogurtes e pães. Eu ficava com a tarefa de lavar os pratos e talheres e recolher o lixo posto em sacos e levá-los até o depósito no térreo.

  Com a chegada do verão compramos um ventilador de pedestal e montamos com a ajuda do manual. Foi uma trabalheira de horas. Quebrou um galho danado. Deixamos de herança para a proprietária do imóvel. Eu brincava com a madame: - Vou levar esse troço para a Bahia. - Só se for na sua cabeça porque a mala não cabe mais nada - respondia. - E aquela garrafa do limoncelo que os meninos trouxeram da Itália para nós posso embarcar? - Bebamos o conteúdo e leve a garrafa para o lixo, ralhava. - Em sendo assim vamos deixar as almofadas e os caqueiros de plantas que compramos? - Já temos plantas e almofadas demais em casa. Vá assistir televisão, ralhava comigo.

  Via de tudo na TV desde os programas jornalísticos aos esportivos, documentários, musicais, filmes e programas de variedades. A TV francesa dava uma cobertura imensa a guerra entre a Rússia x Ucrânia com seus correspondentes nos campos de batalhas.  

  Faxinar o "Cantinho" era missão conjunta e lavar e passar roupas confesso que a madame me superava. Quando estava na prancha de passar falava: - Venha ver o que é bom para a tosse. Eu olhava para o horizonte e dizia: - Vou tomar um banho de sol na piscina - e me deslocava até a terrasse para receber os raios solares e vitamina D. Ela gozava: - Passe protetor solar e pense que está no Porto da Barra.

  C'est la vie! Momentos que marcam e ficam para a eternidade. Fugazes que sejam não sairão jamais de nossas mentes e repasso aos meus leitores com alegria para que, quando surgirem essas oportunidades em suas vidas não desperdicem, não tenham medo de pratica-las quer seja em Paris ou em qualquer outro lugar do planeta.