Cultura

HISTÓRIA DO BAIRROS DE SERRINHA: CAP 4 - A MATRIZ DE SANT'ANNA NO CÉU

O diálogo com Bernardo da Silva e o pedido para reconstruir o Paço feito por Josefa Maria do Sacramento e a descrença nos gestores
Tasso Franco , Salvador | 07/12/2022 às 07:48
Em sonho jornalista esteve no Pedro na matriz da Serra no céu
Foto: Seramov
       
  Certa ocasião, que não me lembro mais a data - minha memória está em falhas como os pipocos do DKW do finado Eládio - sonhei que estava a entrar na porta do céu quando convidou-me a avançar o guardião das chaves, Pedro, o barba alva perfumada e comprida - me pareceu pelos odores borrifada por uma forte lavanda - e quando seguimos adiante ele com a penca de chaves amarrada na cintura e ponta do cajado a apontar-me o caminho deparei-me numa praça, apurei os olhos com o que pude, pois havia esquecido o óculos na nave e verifiquei que estava diante de mim, a distância de 50 palmos das mãos de um Luizão, uma réplica da matriz de Sant'Anna da Vila da Serrinha.

  Para redimir dúvidas perguntei a Pedro se a igreja que via, a visão um pouco turva que mal dava para visualizar o sino da torre esquerda, era, de fato, a igrejinha da Serra.

  - Sim, meu distinto jornalista, trata-se de uma réplica que mandamos construir no céu a pedido da Divino Mestre.

  - Que honra para mim e todos os serrinhas que aqui venham descansar para sempre - agradeci a explicação do protetor das chaves - perguntando ainda se poderia me aproximar um pouco mais e adentrar no templo, lembrando ao santo, o qual usava uma bata branca de cetim tipo camisolão do pescoço aos pés, a mostra somente os dedos protegidos em sandália franciscana de marca espanhola, que a capela original da Serra fora erguida pelo fundador da nossa vila, Bernardo da Silva e pedido de sua esposa Josefa do Sacramento. 

  - Sabemos disso. Em nossos anais constam essas informações e diria que este casal, nosso hóspede, sempre aparece neste templo para orar, uma vez que, no templo da Serra, terrena, não podem mais comparecer às missas e orações.

  - Bem! refleti cofiando a mina barba rala, de repente encontro-os no templo.

  - Não teria certeza disso uma vez que os vejo sempre na missa do domingo, com o Demócrito, mas como hoje é uma quinta de Santa Rita certamente o casal não estará presente. Mas, quem sabe, a Casa de Deus tem seus mistérios.

  - Ora, meu adorado santo, certamente nesta Casa há outros templos e espaços para espíritas, evangélicos, candomblesistas e demais religiões, argui.

  - Sem dúvida, se não sabes, há outros céus reservados para essas almas com seus terreiros e centros espíritas, templos pentecostais e anglicanos, porém a minha jurisdição não é tão ampla como a de certos ministros do Judiciário do seu Brasil e se restringe aos católicos donde estás.

    - Entendi - disse com ar de benevolência, tal qual Agapito, e fomos andando em direção a igrejinha réplica da Serra.

    Nas proximidades da entrada do tempo, Pedro pediu licença para ausentar-se pois iria atender a outro suplicante que estava a bater na porta do seu céu, e eu adentrei ao templo o qual, estava vazio. Ouvi, no entanto, uma música cantochão que emanava do coro e olhei para o alto e percebi uma maestrina que regia um coral e uma senhora a executar um piano.

   Subi por uma escada lateral e vi, se meu olhar turvo como as águas do Abóboras não falha, que conhecia aquelas duas mulheres, a primeira, em pé regendo o coral, a senhora Pipe e a segunda, uma Nogueira, a Lulude.  

  A música parou e a maestrina veio cumprimentar-me: - Que imenso prazer recebê-lo aqui. Estamos ensaiando uma peça do Azevedo que foi muito tocada pela 30 e regida pelo maestro Vianinha. 

  - Percebi isso, por isso mesmo tomei a ousadia de subir a escada e ver de perto. 

  - É sempre uma honra para nós receber um visitante tão ilustre. No piano está a Lourdes e na primeira voz a Astrogilda; no destaque barítono a Marília; e no tenor o professor Jefferson.

  Fiquei encantado e dona Lulude, discreta como sempre, apenas lembrou a Pipe que fora seu aluno da matéria francês no ginásio. Voltaram a tocar e cantar e desci a escada para fazer uma oração em frente ao nicho de São Joaquim. Ao chegar no solo deparei-me com Zé Sacristão que limpava a área onde repousava uma imagem de Jesus, deitado, protegido por um vidro e uma cortina com bordados. 

  Pela barriga do papa, confesso que me emocionei e só não fui às lagrimas por pouco. Lembrava que, quando eu era pequeno e entrava no templo da Serra, ficava com medo de olhar aquela imagem de Jesus. Sacristão deu-me um pouco de água de uma moringa, por sinal, gelada, água trazida do poço do Lorens, e orei aos pés do nicho do avô de Jesus.

  Quando estava concentrado na segunda Ave Maria eis que alguém toca no meu ombro e quando observo era um senhor vestindo uma casaca no modelo inglês, de risca de giz, gravata com tiras pretas, chapéu de feltro em mãos, um anelão de ouro no dedo anular, assim e falou: - Você não me conhece, pois quando nasceste na Serrinha eu já estava residindo na morada eterna. Sou o Bernardo da Silva fundador de sua cidade e ali - apontou para um banco à esquerda da nave - está minha esposa Josefa Maria do Sacramento.
  Confesso, adorado leitor, que tremi dos pés à cabeça, mas tive fôlego de cumprimentá-lo: - É um imenso prazer conhecê-lo e uma ótima oportunidade de tirar algumas dúvidas consigo, inclusive, a principal delas, a sua origem se português ou brasileiro.

  - Sou descente de portugueses e quando cheguei a Tamboatá no final do século XVII e me estabeleci por lá fomos os pioneiros juntamente com os Santiagos, os Motas, os Carneiro, os Moura, noutras fazendas, até que comprei da Joana Guedes de Brito o sitio que já se chamava Serrinha e mudamos pra lá, comentou - e fomos andando a passos curtos em direção a sua esposa Josefa.

  - O senhor era filho de quem mesmo?

  - Ora, meu astuto jornalista, cabem aos historiadores pesquisarem, pois eu mesmo tenho dúvidas - disse já próximo de Josefa a qual se manteve sentada e ele me apresentou com distinção: - Eis, Josefa, o nosso historiador a visitar-nos. A senhora levantou a ponta do véu que cobria parte do seu rosto, seus olhos negros vivazes se acenderam como as luzes das antigas lamparinas, e disse estar encantada. Eu, de minha parte, fiz uma deferência toda especial dobrando levemente os joelhos e beijando sua mão que fora estendida em minha direção, tal como os súditos beijavam levemente a mão da rainha Elizabeth II.

  Disse-me ela com uma voz doce e quase inaudível que o casal estava decepcionada com os gestores da Serrinha, os quais não cuidavam do Paço Municipal em ruínas onde construíram sua casa de morada e viveram e o descaso com a matriz de Sant'Anna, erguida como capela, hoje servindo como um paliteiro de sombrinhas. - Fazemos um apelo ao senhor quando voltares por lá solicitar a recuperação.

  - Minha distinta senhora isso farei com grande prazer. Aliás, tenho feito apelos nessa direção há anos, porém não sou atendido, nem eu nem a comunidade que também solicita. 

  - Não percas a esperança - atalhou Bernadro ressaltando que, hoje, após leituras de Turguniev havia se tornado um niilista e não acreditava mais em nada, era um descrente das coisas terrenas do Patropi.
  - O Bernardo anda com esses pensamentos, mas eu tenho muita fé em Sanhora Sant'Anna e creio que algum dia a reforma acontecerá nos dois monumentos, que algum prefeito e um bispo entusiasta assim possam agir.

  - Prezo a opinião da misericordiosa senhora, porém confesso que estou a seguir a opinião do seu eterno esposa com sentimentos niilistas e cito o sábio Nietzsche: - Que possa então despedaçar tudo o quanto em vossa verdade possa despedaçar-se! Há ainda muitas moradas a se construir! Assim falou Zaratrusta.
  Bernardo aplaudiu-me discretamente enquanto Josefa passou-me um olhar severo de censura e assim também falou" - Os românticos e sonhadores vencerão.

  Bernardo, mansamente replicou também citando Zaratustra: - Pois o que não é não pode querer; mas o que está na existência, como poderia querer ainda a existência?!

  Enquanto estávamos nessa tertúlia ouvi um toc-toc-toc nos ladrilhos da nave, salvo engano obra em piso do mestre Zé Ramos, e observei de soslaio que era o cajado de Pedro a tocar no solo e assim se aproximou de nós e falou: - Meu devoto jornalista seu tempo se esgotou e convido-o para se retirar e partir. 

  Despedi-me do casal fundadores da Serrinha e saímos do templo em direção a porta do céu. Pedro agradeceu a visita e disse que estava cansado, o dia fora puxado diante da guerra da Ucrânia com muitos devotos chegando ao céu. 

  Nada mais tive a dizer em gratidão e dirigi-me a nave voltando a mãe Terra.