Cultura

PARIS AO SOM DO BANDOLIM, CAP 29: MEUS VIZINHOS VISTOS DA TERRASSE

Os leitores vão dizer que sou abelhudo. Nada disso. É a paisagem urbana que nos impõe essas observações fortuitas, sem qualquer dano,
Tasso Franco , Salvador | 04/12/2022 às 08:18
Meus vizinhos vistos de longe
Foto: BJÁ

   Peço permissão aos meus abnegados leitores para falar sobre os meus vizinhos em Paris, os quais não conheci e (imagino) nunca irei conhecê-los pessoalmente. Tenho-os comigo em lembranças na temporada em que me hospedei com a madame Bião no 10 Rue Dombasle, 15º Arrondisement.

   Só depois de quarenta dias em que estava morando neste prédio de um amarelo desbotado vi na fachada do edifício uma pequena placa de metal onde se lia: "Aqui morou Walter Benjamin", uma singela homenagem a um dos mais representativos intelectuais da Alemanha, autor - entre várias publicações - do livro "Paris, a capital do século XIX" e outros escritos sobre cidades.

   É provável que, alguns dos meus leitores nunca tenham ouvido falar deste judeu alemão formado em filosofia, literatura e história da arte, em Berlim - onde nasceu, 1892 - doutorado em Freiburg e Munique. Já adulto e perseguido pelo nazismo refugiou-se em Paris, 1933, onde já morava sua irmã, residindo (provavelmente com ela) exatamente no 10 Rue Dombasle.

  O mais cruel é que Benjamin - tradutor da obra de Marcel Proust - "Em Busca do Tempo Perdido" (sete volumes) e dos poemas de Baudelaire para o alemão depois de obter um visto para emigrar para os Estados Unidos, em 1940, já em Portbou, na fronteira da França com a Espanha, na iminência de ser capturado (a França estava ocupada pelos nazistas) e enviado a um campo de concentração, deu fim a própria vida.

  Perceba, portanto, a simbologia de morar no mesmo prédio onde viveu Benjamin, algum período de sua vida, é muito forte. Este critico alemão destacou os aspectos econômicos que possibilitaram o surgimento das passagens comerciantes (precursores de centros comerciais, hoje, shoppings) como os técnicos - usos do vidro, o ferro e o concreto, uma nova interpretação e início da revolução moderna na arquitetura.

  A obra de Benjamin é extensa. Doutor em filosofia escreveu uma série de textos e artigos sobre política e filosofia da linguagem, entre els "Critica da violência, crítica do poder", o fragmento teológico-político e o ensaio "A tarefa do tradutor, introdução às traduções dos poemas que Benjamin fez nos "Tableaux Parisienses de Bauldelaire", em 1923.

  Por posto, sem qualquer tipo de esnobismo, Marcel Proust, Charles Baudelaire, Andre Gidé e Vicotr Hugo são meus escritores franceses prediletos.

  Como estou falando dos meus vizinhos pulo adiante para dizer de um casal de afrodescendentes que morava em frente ao meu prédio, no mesmo nível do andar, o 7º, o que permitia que eu os visse com frequência. E o que mais admirava na casa dele, com uma pequena terrasse, menor do que a minha, era a presença diária de um gato preto a tomar sol.

  De imediato lembrei-me do conto de Edgar Allan Poe sobre o gato preto quando o genial escritor empareda a esposa numa parede do porão - como faziam os monges - após desferir um golpe de machado fatal em sua cabeça. Longe disso passavam meus pensamentos sobre o gato de minha vizinha, dengoso que era, astuto porque não se arriscava um passo a mais na terrasse que pudesse cair no asfalto numa altura de sete andares, o que le seria fatal, e como se comportava discretamente sem miar, sem o cio gritante daqueles gatos de telhados.

  De vez em quando, a madame dona do gato se colocava a fazer algum trabalho e/ou estudar numa mesinha posta na terrasse protegida do sol por um toldo, sua área residencial voltada para o poente. E, neste mesmo espaço, eventualmente via seu esposo, barriguinha de fora, rabo-de-cavalo bem amarrado na cabeça, estendendo roupas. Salvo engano o casal tinha uma filha adolescente. Raramente a via. A televisão do seu apartamento permanecia ligada dia e noite, creio, assim, que adoravam televisão. A madame também dava massagens fisioterápicas no gato estriando suas pernas como fazem em pilates.

   Nunca os cumprimentei num aceno de mãos, pois não tinha intimidade para isso. Meus cumprimentos eram para o gato e creio que ele me compreendia. Dizia de cá com meus botões: - Cuidado para você não cair - avisa sempre que algum passarinho passava por ele deixando-o mais ouriçado. - Seu onde piso, respondia.

   Abaixo deste casal morava uma senhora de fino trato, elegante, magra como um pé de milho seco, que toda manhã, ao acordar, regrava as plantas de uma varanda com um regrador verde. Instantes depois, sentava-se numa cadeira posto diante de uma pequena mesa de abrir colada a grade onde promovia seu "petit dejaneur" - o café da manhã dos franceses - com fatias de melão, croissant e suco. Era delicada em todos os gestos. Silenciosa sentava e silenciosa saia com o pires e a xícara em mãos. Também, apreciava uma tacinha de "rouge" ou "blanch". Creio que fosse solteira ou viúva. Nunca a via com outra pessoa.

  Já a vizinha de cima do casal do gato era uma jovem extrovertida, assanhada, que gostava de receber amigos em sua terrasse e no dizer nosso do baianês, arrepiava no vinho. Coloquei o apelido dela de a vizinha gorda e falava para a madame Bião: - A gorda ontem, à noite, arregalou. Fui fazer xixi as 3 de madrugada e quando olhei pela freta da cortina ainda estava com amigos e amigas a brindar as estrelas e o frescor do céu. - A senhora do gato não a acha simpática diante da zoeira em seus ouvidos, dizia-se a Bião.

  Mais adiante, neste mesmo prédio, havia um casal que também gostava de receber amigos e montou um quiosque de madeira em sua terrasse. Num fim de semana a conversa estava tão animada por lá que falei para a madame Bião: - Essa festa bem que eu poderia ir. - Vá pra seu sofá-cama e deixe de sonhos.

  Minha vizinha de porta era uma senhora idosa e invocada. Só há vi duas vezes em 90 dias. Certo dia estava chegando em casa com a madame - as portas dos apartamentos em Paris não têm numeração - e enfiei a chave na fechadura dela fazendo aquela zoadinha. Imediatamente troquei de porta, mas a velha abriu a dele, manteve a tranca de segurança firme, e meu deu um boa noite. Noutra ocasião - ela se mudou do prédio - e encontrei-a no corredor ao redor de várias caixas de papelão repletas de objetos. Dei um bonjour e entrei em casa. Diálogos, portanto, de curto curso.

  O síndico só conheci de papel. Numa noite ao chegarmos em casa havia um aviso no elevador escrito a mão dizendo para termos cuidado com o "sequestrador" que estaria invadindo nosso prédio. Ficamos assustados e até imaginei que ele pudesse estar na nossa habitação. Por isso mesmo, nesta noite, abri a porta com todo cuidado, mas não havia ninguém dentro de casa. No outro dia, a madame Bião procurou informar-se melhor sobre aquele sinistro aviso e a explicação dada foi de que era um "sequestrador" casual. Que deveríamos ter cuidado ao acessar a porta de entrada do edifício, pois eventualmente algum ladrão poderia se aproveitar e entrar conosco, ou qualquer outra pessoa.

  Em Paris, sempre é bom sempre explicar, os prédios não têm porteiros como estamos acostumados no Brasil. Nem as portas dos apartamentos têm numeração. Em Salvador, moro no apartamento 202; em Paris morava no 7º andar e haviam mais 2 apartamentos no andar. Ao nosso, se fosse convidar alguém para visitar-nos era aquele a esquerda da porta do elevador. Certo dia chamamos um médico para me atender. E, por conseguinte, a madame Bião foi recebê-lo na entrada do prédio.

  A propósito, nosso outro vizinho de porta era um velho conversador, mas só papeava com a madame Bião quando ela descia para ir a escola. Comigo nunca trocou palavras. Morava, ainda, no 6º andar, um casal de gays e eu abelhudamente observava da terrasse a mesinha posta para o jantar da dupla com presuntos e sucos. Nos finais de semana saiam com raquetes e mochilas para jogar tênis nalguma academia.

  Mais adiante e a nossa direita, na Domblase havia um casal que morava num imenso cobertura com um 'jardim tropical" à vista. Todo dia, um circunspecto monsieur molhava as plantas. Os passarinhos adoravam essa terrasse,

  Mais distante um pouco, na frontal de uns 300 metros, um prédio com frente para a Rue de La Convention e fundos para o nosso, bizurava, ao menos, quatro vizinhos sendo que um casal de idosos era o que mais gostava de olhar. Invariavelmente, jantava às 20h30min e eu falava para madame Bião, os "velhinhos já estão jantando na varanda". Era uma refeição que durava menos de 30 minutos. Depois, limpavam o local e iam para a cozinha. Casal adorável. De vez em quando recebiam (imagino) filhos e noras para jantar e aí demoravam mais nos petiscos e nos vinhos.

  Viajaram para uma quinzena estada de veraneio e sentimos uma falta enorme deles. Falava para a madame Bião: - Os velhinhos fecharam os toldos da varanda e sumiram. - Oh! que lástima, respondia. - Não vejo a hora de voltarem logo. Quando voltaram sentimos uma enorme alegria.

  Numa andar abaixo donde residia este casal havia uma mulher, de aparência alta, esguia, que fumava um cigarrinho todos os dias na varanda. Um ou mais de um cigarro. Era um deleite para ela. Lançava rolos de fumaça ao ar formando figurinhas e dava um gole no vinho. E, um outro vizinho do casal dos idosos, mais acima do apartamento eles, gostava de tomar banho de sol usando uma sunga colorida e fazendo exercícios físicos.

  A esquerda, acima do casal de idosos, morava outro casal mais jovem que estendia as roupas para secar ao sol e gostavam de tomar sol deitados em espreguiçadeiras, como se estivessem nas praias. Alguns toldos que os franceses usam nas terrasses dos apartamentos são muito parecidos com o que usamos no Brasil, nas praias.

  Os leitores vão dizer que sou abelhudo. Nada disso. É a paisagem urbana que nos impõe essas observações fortuitas, sem qualquer dano, até agradáveis porque verificávamos gestos e atitudes no vagar do tempo e das horas, às vezes eu sentado na nossa terrasse tocando bandolim e cantando alguma música. E, obviamente, saboreando algum petisco e adoçando o palato com um Saint Emilion.

  Para completar essa crônica não poderia deixar de falar de nossa vizinha sapateira, uma gordinha que trabalhava numa loja artesanal de sapatos sob medida e bolsas de couro, pois toda vez que saia de casa cumprimentava-a com um bonjour madame. E ela dava aquele sorriso maroto imagino a dizer: - Que ‘véi’ simpático.

  No corredor do 10 havia uma lanchonete onde, eventualmente, comprávamos coca cola e sanduiches, e um boy sempre alegre ficava dia e noite no batente; mais cinco passos, uma loja que vendia produtos à base da maconha, administrada por um jovem que o apelidei de cabeludo e a madame Bião o cumprimentava com "bonjour" quando descia para a escola; e a jovem angolana Lina, da farmácia, sempre a nos atender dom simpatia.

  Só mais um detalhe para facilitar a leitura da crônica. Em Paris, os bairros são chamados de distritos (Arrondisemante) e, em alguns deles, determinadas ruas podem se situar em mais de um distrito. A nossa rua, a Domblase, ficava somente no 15º distrito. Já a Vaugirard, a grande rua no sentido horizontal, a rua mãe do nosso distrito, se estendia também até o 7º distrito.