Cultura

PARIS AO SOM DO BANDOLIM, CAP 10: A 1ª DOR DE BARRIGA NINGUÉM ESQUECE

Tem que ter paciência e bom humor para ser atendido por um médico em Paris no seu domicílio
Tasso Franco , Salvador | 23/09/2022 às 14:43
Sêo Franco, Dr Ives Lellouche e a madame Bião de Jesus no "Cantinho do Céu"
Foto: BJÁ
   

  A primeira semana é sempre de turbulências quando se muda de uma cidade para outra, ainda mais que já estou com dois patinhos 77 na lagoa, mais com o pescoço de fora do que nadando com rapidez, e a gente chega com volúpia, entusiasmo, experimentando comidinhas variadas, queijos, vinhos, petiscos, poke havaiano, fritas, croquete de truffe e mais o que se apresentasse à minha vista. 

  Como sabem meus benditos leitores e graciosas leitoras quase todo "véi" é guloso e não pode ver uma compota de doces. Senti, assim, que havia perdido o controle digestivo na noite da sexta-feira, nos primeiros cinco dias em Paris, a cidade com clima frio e céu pesado, chuvas e ventos que iam e vinham de um dia para o outro, e uma "tempestade" também rondava minha barriga. 

  Avisei longo para meu anjo da guarda, a madame Bião que sentia dores abdominais e mal estar. E, antes mesmo que ela respondesse alguma coisa, corri para o banheiro. O que ouvi na minha rápida aflição já executando o serviço foi ela dizer: - Feche a porta por favor, pois o odor não é dos mais agradáveis.

  Tranquei-me no minúsculo sanitário sem sequer uma lucarna para que os gases ganhassem o caminho das nuvens e aliviei-me o quanto pude. Ao sair, ainda meio cambaleante, como um bêbado em soleira de bar, a madame inquiriu: - Fez com a solidez de uma rocha ou como papinha para bebê? 

  - Diria que foi meio a meio, uma parte consistente e a outra nem tanto, mas não ao ponto de ser um mingau de aveia, comentei com contido humor.

  - Vou lhe dar buscopam e creio que vai resolver a parada.

  Depois de tomar as gotas do buscopam com um pouco d'água, medicamento que fazia parte da minha farmácia básica levada da Bahia, fui cuidar do BahiaJá com atualizações das notícias e fiquei confortável até à noite chegar. Jantei frugal: baguete com um pedacinho de queijo e suco de maçã. Depois fui ver programas de TV, o meu favorito em esporte. 

   Já acomodado sob o cobertor um trovão roncou na noite parisiense e pensei que fosse no céu da cidade, porém era comigo. Não assustou a madame, a qual dormia o sono dos justos ao meu lado. Sentei-me na cama e cutuquei-a com o cotovelo: - Vou ao banheiro novamente, pois a coisa está sem controle. 

  E imediatamente levantei-me e sai a passos de quem pratica uma corrida daquelas de atletas da marcha olímpica, espremendo o traseiro. No meio de caminho, 5 metros apenas entre o nosso sofá-cama e o sanitário, ouvi mais uma vez: - Feche a porta por favor.

   No calabouço parecia que estava preso a correntes, espremido, e detonei o que foi possível. De retorno ao bendito sofá-cama, confortável como uma sela de burro chotão, falei para a madame acionar o seguro-saúde, pois as dores eram intensas. Ao que tudo indica - disse - estou com uma infecção intestinal.

  A madame acionou o seguro saúde e uma atendente respondendo da cidade de Milão fez perguntas básicas sobre o quadro do paciente, tudo a ela foi explicado conforme o nosso relato, e instantes depois, diria algo em torno de duas horas, respondeu dizendo que um médico iria me atender no dia seguinte às 11h, mas que se eu estivesse em situação de gravidade poderia levar-me para uma emergência, um hospital, e depois providenciaria o reembolso.

  Depois que a madame me consultou disse que meu quadro era de dores, mas dava para resistir até o dia seguinte sem precisar ir a uma emergência. E, assim, consegui chegar ao dia seguinte, um sábado, dando mais duas corridinhas ao sanitário, uma delas colocando os burros n'água na pia do sanitário, o que me aliviou sobremaneira, até que o doutor Yves Lellouche chegou quase ao meio dia.

  Em terno azul escuro, perfumado como gostam os franceses, óculos estilosos, gravata branca e camisa azul céu claro, bem humorado - o que é raro entre os franceses - e falando um espanhol de cais, o médico mandou que deitasse no sofá cama, deu alguns toques na minha barriga, perguntou o que tinha de mais grave, ora usando palavras em francês e outras em espanhol, a madame com o tradutor do iphone em mãos para redimir as dúvidas e disse que não parecia ser nada grave e receitou uma dieta a base de leite in-natura no café da manhã e arroz com Coca-Cola no almoço e no jantar.

   Curioso, quis saber se eu era casado com a madame e o que estávamos fazendo em Paris, cidade que considera fria, enquanto o Brasil "um país quente". La Bião, então, pegou três porta-retratos presente de Agapio e mostrou para ele, nosso filho, minha nora Vitoria Giovanini e a minha neta Lua, e disse que estava frequentando um curso intensivo de francês. 

  Elogiou: - Sua família é linda. 

  Estranhei a dieta e até brinquei com o doutor: - Minha neta iria adorar essa dieta com Coca-Cola que ela adora. Além disso, receitou omeprazol (para o meu refluxo), loperamide 3 vz ao dia e solicitou uma ecografia do meu abdome.

  Quando o doutor foi embora disse para a madame: - Já experimentei todo tipo de receita para dor de barriga, chá de pau de rato da fazenda do meu compadre Lapa, chá de erva cidreira, mas essa coca cola com arroz é inédita. Você acha que devo tomar?

   - Se o médico prescreveu deve ser bom. Fique calmo que vou a farmácia comprar os medicamentos.

  De retorno, a madame confessou que falando com a atendente da farmácia, uma angolana de origem chamada Lena, lhe disse que a coca cola com arroz era um bom remédio complementar, e mais falou que amava o Brasil, já tinha ido ao Rio de Janeiro e adorava Copacabana.  

  A madame falava que era de Salvador, uma bela cidade, mas a angola só se referia ao Rio de Janeiro como se fosse a coisa mais linda do mundo.

  O certo é que fiquei bom no decorrer da semana seguinte, embora com o intestino preso. A madame ligou para o Dr Lellouche primeiro dizendo que ele havia esquecido as "lunetas" (óculos) e falando da retenção. Ele disse que voltaria para buscar os óculos e liberou geral minha alimentação suspendendo o dueto coca-cola com arroz. 

  A etapa seguinte, observando a burocracia do seguro médico, era dirigir-me a Clínica Jack Senet, em Monteparnasse, para fazer a ecografia. 

  Na clínica, após a identificação do paciente e a requisição do Dr Lellouche fui para a sala de espera. Meia hora depois, a técnica de enfermagem, uma portuguesa, mandou que ficasse só de cuecas e bateu as chapas. Mais meia hora e fui atendido por uma médica mal humorada, francesa de uma língua só, que disse algo que não entendi bem, mas não vira nada demais.

  A partir daí, nova burocracia. A clínica avisou que só liberava a exame se eu desembolsasse 26.60 euros. A madame Bião explicou que o seguro já havia pago, mas não houve jeito. Tivemos que pagar os euros pedidos e fomos embora.

  Pra completar a novela Dr Lellouche, o bem humorado médico cheiroso foi no nosso apê, examinou a ecografia, recolheu seus óculos e - mais uma vez - perguntou se éramos casados, se tínhamos filhos e pediu um copo d'água pedindo permissão para ir a terrasse. De quebra, ainda elogiou o cabelo da madame.

   - Olha! - falando na cobertura - isso é um privilégio em Paris. Aproveitem bem. 

  Para seu paciente completou: - Também vá às ruas, saia de casa, tome sol e dê uns beijinhos na madame.