Cultura

PARIS AO SOM DO BANDOLIM CAP 9: A MISSA DOMINGO E A VELHINHA HIGH-TECH

Um olhar atento de como vive a comunidade parisiense em Vaugirard, bairro do 15º distrito
Tasso Franco ,  Salvador | 18/09/2022 às 11:23
Em Saint-Lambert com a velhinha ao fundo
Foto: BJÁ

   

    No final da tarde de domingo, primeira semana em Paris, fomos a missa na igreja de Saint Lambert de Vaugiraud. Não sendo católico de carteirinha e missal, acompanhei a madame Bião, esta, sim, abençoada por todos os santos, misseira assídua da Paróquia da Ressureição do Senhor, Ondina, Salvador, de conhecer o padre, comungar e rezar terços. No entanto, digo aos leitores que sou um apreciador e pesquisador de templos religiosos católicos. 

  E, também esclareço de prima que, com todos os conhecimentos que tenho de templos, papas e santos, nunca ouvira falar neste santo em minha vida, o Lambert! - Lamberto, em português. Mais adiante, explicarei quem é esse venerável santo de origem belga e também o que significa Vaugiraud. 

  Diria que é comum na história da igreja católica essa referência de um santo ou santa a um bairro ou rua. Em Salvador da Bahia, onde moro definitivamente, por exemplo, a padroeira da Bahia chama-se Nossa Senhora da Conceição da Praia. Donde deriva essa denominação? Nossa Senhora da Conceição - concepção dogmática da Virgem Maria - era o nome da nau capitânea de Thomé de Souza, fundador da cidade, em 1549. 

  Quando foi erguida a igreja, o governador geral decidiu colocar o nome de Conceição na basílica acrescentando o local à beira mar da Baía de Todos os Santos onde fora erguida - a praia - ribeirinha da Baía de Todos os Santos. Juntou tudo e deu-se: Nossa Senhora da Conceição da Praia.  

  Há, não só em Salvador, mas em todo o Brasil referências de santos a ruas, praças, bairros, cidades e estados: Santo Antônio da Mouraria - bairro de Salvador -; Santo Antônia da Barra - outro bairro da capital baiana: Santa Brígida - cidade da Bahia -; São Desidério - cidade do sudoeste da Bahia; São Félix - cidade do Recôncavo da Bahia; São Paulo - nome de cidade e estado; Santa Catarina - nome de Estado, só para fazer algumas citações. 

  Paris é uma cidade de 4000 anos e de muita história. Narra-se que no século XIII um grupo de pessoas ocupou uma área a sudoeste da cidade e se mudou para mais perto da casa de campo construída no local até então chamado "Valboistron" ou "Vauboitron" (que é tradicionalmente interpretado como o "vale dos estábulos") pelos monges de Saint-Germain-des-Pres. Em memória do fundador, Gérard de Moret, abade de Saint-Germain-des-Prés (1255 a 1278), a localidade tornou-se o “val Gérard” e depois “Vaugirard”. Hoje, considerada, uma das ruas mais extensas da cidade com 4.5 km.

  A comunidade agrícola desse vale foi se estruturando como vila e ergueu uma igreja tornando-se paróquia pelo bispo de Paris, em 1342, inicialmente, dedicada a Nossa Senhora de Notre-Dame. Um século depois, recebeu relíquias de São Lambert de Maastricht e passou a ser denominada Notre-Dame-de-Saint-Lambert. As anotações históricas apontam que, a partir do século XVII, simplesmente Saint-Lambert.

  Ora, mas quem foi este venerável santo e como ele passou a ser cultuado em Paris

  Primeiro, vamos conhecer o santo: 

  Lambert de Maastricht (ou Lambert de Liège ) teria nascido no século VI (640) em Maastricht sendo considerado santo bispo da Alta Idade Média. É o símbolo maior do principado eclesiástico de Liège, considerada uma das cidades mais importantes da Bélgica, centro comercial e cultural relevante ainda hoje. 

 É conhecido como um dos evangelizadores da diocese de Tongeren-Maastricht região que só conheceu uma cristianização superficial. As pessoas que viviam nas florestas e no campo ainda adoravam os deuses celtas, principalmente Cernunnos e Arduinna. 

  Quando adolescente, Lambert foi recomendado por seu pai a Théodard, bispo de Tongres-Maastricht. Sob sua tutela, Lambert recebe uma educação na corte real merovíngia. Quando Théodard foi assassinado (entre 669 e 675), Lambert foi proposto a Childerico II para ocupar a vaga sede episcopal. Lambert torna-se então uma figura influente na corte, talvez até como um dos conselheiros mais confiáveis do rei.

 A história é longa. Em ano desconhecido (696, 700 ou 705) Lambert foi assassinado na aldeia de Liège pelas tropas de Dodon, alto funcionário de Pepino II.  Tornou-se mártir da fidelidade conjugal por denunciar a ligação de Pepino com Alpaida, a futura mãe de Carlos Martel. A catedral de Notre-Dame-et-Saint-Lambert em Liège foi construída no local do assassinato de Saint Lambert.

 Complicado entender a vida deste santo. Observei, no entanto, que os féis da comunidade de Vaugiraud não estavam particularmente ligados na figura de Lambert e sim participando de uma missa católica no sentido da espiritualidade. A rigor, nem há uma imagem de Saint Lambert na igreja; muito menos de outros santos. No altar mor há a imagem de uma pomba e raios de luz uma representação simbólica do Espírito Santo.

 

  O domingo era do Dia das Mães - no Brasil - e ocupamos assento na monumental e sóbria igreja, ainda sem entender o palavreado do padre. Como a madame conhece o ritual de uma missa conseguiu acompanhar. Eu comportei-me como um monge seguindo o rito: no sinal da cruz, eu repetia; ficar em pé, eu ficava; sentar, idem. Ajoelhar, não deu porque falta-me a prática e a calça que usava estava apertada. Ando acima do peso. 

 Cochichei para a madame: - Não entendo nada do que esse padre está falando?

 - Concentre-se na fé em Deus e pronto. Se não falas francês e ainda é surdo como vais entender o santo ofício? 

  Calei-me como bom baiano que sou.

   Observava com refinado olhar os fiéis nas proximidades em sua maioria constituído por idosos, alguns de longo curso, como um casal que estava próximo de mim, a senhora já portando uma bengala sem descuidar de sua bolsa, a tiracolo; e o senhor, como eu, usando aparelho auditivo nos dois ouvidos. Eu, por enquanto só uso no ouvido direito. Havia um casal de maduros bem elegante à nossa frente, uma senhora de cabelo ruivo também bem perto de nós, por sinal, uma das colaboradoras no ofício de arrecadar ofertórios numa cestinha de vime, duas senhoras de cabelos brancos adiante, um casal de jovens à minha direita, uma senhora com cara de professora a orar contrita, uma velhinha elegante trajando sobretudo azul noir que mal conseguia olhar em direção ao padre no altar, coroinhas conduzindo incensos e velas, acólitos, diáconos e outros.

   Não desgrudei o olhar da velhinha a nossa direita, distante menos de dez metros, que portava um missal eletrônico e acompanhava o culto orientando-se pelo celular, enquanto nós por um folheto litúrgico impresso. Achei fantástico e cutuquei a madame: - Vou fazer uma foto daquela senhora que parece um personagem dos contos de fadas dos irmãos Grimm usando as novas tecnologias para acompanhar a missa.   

  - Mas será possível, tudo você quer fotografar. Pare com isso, estamos na casa do Senhor, repeliu-me.

  - Que mal pode fazer?

   - Nenhum, porém, deselegante gesto e não condiz com a local reservado a orações.

    Fiquei na minha, mas não desgrudei os olhos da velhinha. Em determinado momento do ofertório a ruiva que estava à nossa frente se aproximou da velhinha com a cesta para depositar euros em moeda ou papel, Ela, então, pacientemente como o bíblico Jó, retirou da bolsa um cartão de crédito com a marca da igreja, da associação religiosa a que pertencia, e fez a doação.

    - Ufa! suspirei para a madame Bião ouvir - nunca vi um gesto desses. A igreja, de fato, se moderniza. E, o mais grave, não fiz a foto.

   - Vejo que você ainda está no tempo do papa Gregório XV, da Bolonha do século XVII, e estamos no momento de Francisco. Em nossa Paróquia da Ressurreição do Senhor fazemos doações com PIX ou QR Code.

    - Pelos chifres do bode da Fazenda das 7 mulheres! Preciso me atualizar, confessei.

    No momento da comunhão a fila para ser glorificado com a hóstia se formou imensa. Falei para a esposa: - Donde saiu tanta gente? 

   - É porque você não viu. O templo está lotado de fiéis, respondeu a madame pedindo mais uma vez que me aquietasse e rezasse um pai nosso, alertando-se que minha máscara de proteção contra a Covid estava mal posicionada no rosto cobrindo parte das lentes dos óculos. 

   - Imagino que minha surdez parcial chegou também à visão. Deduzo ou não olhei para trás para observar quando se deu a chegada dos fiéis à missa, um a uma, pingados, comentei ajeitando a máscara.

   Com fila serpenteando a nave da igreja, o padre teve a ajuda de três diáconos para conceber a hóstia. Toda essa cerimônia foi acompanhada por música executada por um organista daqueles enormes instrumentos de tubos difíceis de serem executados, salvo para poucos abnegados.

  Estava no final da missa e fiquei a observar a majestade da igreja em estilo gótico e renascentista com seus 58 m de comprimento, 25,5 m de largura e uma torre sineira que se eleva 50 m, ocupando áreas das rues de l'Abbé-Groult, Blomet, Maublanc e de Vaugirard.

  Terminada a missa, saímos em cortejo enquanto o esbelto e simpático padre cumprimentava os fiéis, um a um, na porta principal do templo. Diria que - educado como sou - também saudei o vigário e quase beijo sua mão. A madame vendo que eu estava interessado era no destino da velhinha pegou-me pelo braço e advertiu-me baixinho: - Cuidado com os batentes para não ir ao chão. 

  Ela vinha longo atrás de nós com passos bem lentos, miudinhos, quase passando-ferro no solo como se diz no popular, cumprimentou o padre, desceu as escadas da igreja protegendo-se com uma bengala, sozinha, toda encapotada, sapatos, bolsa e sobretudo em cores combinadas, creio, beirando seus 80/90 anos de idade e tomou o caminho da rue Moublanc.

  Fiquei a olhá-la até que entrou em sua residência. Retirou o chaveiro eletrônico de sua bolsa, ticou no portal da porta principal do seu prédio e recolheu-se. Bendito sejam os santos e as novas tecnologias. E mais saint Lambert que era da venerável Ordem de São Bento. 

  Os nativos não vão entender porque estava observando aquela personagem dos contos de fadas - nem creio que alguém percebera meu olhar intencional. Sua trajetória era normal para eles. Para um estrangeiro que chega à cidade grande entender essa caminhada ajuda na compreensão geral de como vive um povo.