Cultura

A CADEIRA E O ALGORITMO CAP 23: COMO SOBREVIVE A IMPRENSA NA UCRÂNIA

Graças a rede de satélites e a internet os jornais seguem circulando e o Telegram o aplicativo mais usado
Tasso Franco ,  Salvador | 21/03/2022 às 07:45
The Kyiv Independent
Foto: REP

LuÍs XIV rei da França e Navarra durante 72 anos (1643/1715), aquele que ficou mais tempo no trono em toda história da humanidade (a rainha Elizabeth II tem 70 anos no poder), apelidado de "O Grande" e "Rei Sol" se considerava um predestinado por Deus. Teve duas esposas e várias amantes e com uma delas, a marquesa de Montespan - Françoise-Athénais de Rochechouart de Mortemart - concebeu 7 filhos. Em virilidade, Dom Pedro I, se parecia com ele.

  Natural, portanto, que em reinado tão longo e megalomaníaco - o rei transformou a grande área da cavalariça de seu pai LuÍs XIII, nos arredores de Paris, construindo o palácio mais luxuoso da Europa - Versalhes - com sua sala de espelhos que representava a imagem de grandeza do rei e impressionava os visitantes e as mulheres, mudando a Corte para lá - houvesse muitas intrigas, envenenamentos, traições e assim por diante. Ademais, o rei vivia em permanente guerra com a Holanda e cobrava a cada dia mais impostos dos seus súditos.

  Surgiram, então, as primeiras revoltas populares em Paris, que era a cidade mais importante da França, abandonada pelo rei que morava em Versalhes com a Corte, porém, permanecia como um lugar pulsante, mundano, onde alguns integrantes da monarquia nunca deixaram de frequentar seus lupanares, suas rodas de jogo, vinhos e mulheres. O povo parisiense era espoliado - comerciantes, industriais, artesãos, etc - porque além do luxo de Versalhes que consumia muito dinheiro havia as guerras.

  De vez em quando o rei ia a Paris para mostrar-se benevolente com a população, um pai, um Deus que curava enfermos, um protetor. E, numa anunciada dessas visitas, revoltosos espalharam pela cidade panfletos conclamando para um protesto contra o rei. O panfleto era o veículo de comunicação dessa época mais importante e eficiente, pois, além de ser lançado embaixo das portas poderiam ser colados em paredes e portões. Tinham, portanto, boa visibilidade entre as pessoas que circulavam nas ruas e feiras livres.

  Os agentes secretos do rei entraram em campo e investigaram o aceno à rebelião visando garantir a segurança do monarca e descobriram quem eram os autores dos panfletos e onde eles eram impressos. Primeiro pegaram o dono da gráfica e seus funcionários e os espancaram, o proprietário do estabelecimento até a morte. E, em seguida, 'empastelaram' a gráfica. A segunda etapa era prender os revoltosos. E prenderam e/ou mataram todos, embora alguns mosqueteiros do rei tenham morrido na refrega.

   O importante, no contexto do nosso livro "A Cadeira e o Algorítimo" - a convivência das novas tecnologias com as velhas - é destacar o que significa 'empastelamento'. Trata-se um termo técnico muito usado pela mídia que se traduz em destruir, misturar. Uma gráfica na época de Luís XIV usava tipos de madeira e/ou chumbo, máquinas e calandras de ferro, marretas, alicates, prensas, componedores e grades de ferro o que permitia organizar uma chapa que seria impressa. Então, toda essa estrutura era empastelada (quebrada).

  Isso não aconteceu somente na França, mas, em vários países da Europa e da Ásia e chegou aos jornais de vários continentes e também no Brasil. A lista de 'empastelamentos' no Brasil é grande e começou com o jornal carioca "Corsário" que atacava o Império e seus governantes no final de 1881. O Chefe de Polícia da então Capital do Império, Rio de Janeiro, Trigo de Loureiro, mandou 'empastelar' o jornal. Posteriormente, com a insistência do "Corsário" em circular, o redator Apulcro de Castro é assassinado por militares comandados por Antônio Moreira César diante da própria Secretaria de Polícia, onde fora pedir proteção. 

  Na lista de 'empastelamentos' constam, entre outros, "O Paiz" (Rio), "Gazeta de Santos", "Folha do Amazonas", "Diário de Pernambuco", "Diário Carioca", "A Imprensa", "A Bahia", "Folha da Manhã", "A República", "O Momento" (Salvador Bahia) este por ser órgão de imprensa do Partido Comunista Brasileiro (PCB) foi várias vezes empastelado pela polícia estadual durante os anos de sua existência (1945-1957). Seu primeiro 'empastelamento' se deu em 1945 durante o governo de Otávio Mangabeira que, apesar de democrata, cedia assim aos ditames do governo federal do presidente Dutra. Seu diretor era João Falcão, depois, fundador do Jornal da Bahia.

    Esse fenômeno se deu no Império e nas fases republicana (Velha, período Getulista, redemocratização e Golpe Militar de 1964) que implantou censura rigorosa aos jornais e alguns jornalistas foram assassinados sendo o caso mais notório de Wladimir Herzog, outubro de 1975.

  A partir da segunda quadra da década de 1960 esse processo industrial se modificou com a implantação da impressão 'off-set' e as composições a frio. Ou seja, foram aposentados os linotipos, as caixas americanas e europeias de composições com tipos de chumbo das tipografias e as composições passaram a ser feitas em máquinas datilografias elétricas que imprimiam tiras de papel. Essas tiras eram coladas em 'past-ups' formatando uma página e daí era feito um fotolito e depois uma chapa que se acoplava na máquina impressora. 

  Quando comecei no jornalismo profissional como repórter do "Jornal da Bahia", em 1968, as oficinas do JBA, "A Tarde" e o "Diário de Notícias", no centro de Salvador, respectivamente, na Barroquinha, Praça Castro Alves e rua Carlos Gomes ainda eram na base do linotipo, composição a quente (chumbo) e enormes e pesadas placas para impressão. As oficinas pareciam a ante-sala do inferno com cheiro de chumbo derretido, fumaça e penumbra, tanto que os linotipistas e gráficos recebiam doses de leite para evitar contaminações, mas, eram inevitáveis.

  Somente a partir do pioneirismo da Tribuna da Bahia, novembro de 1969, isso foi se modificando. "A Tarde" e o "Jornal da Bahia" também aderiram ao sistema 'off-sett', no inicio da década de 1970, e o DN desapareceu no final dos anos 1970. Tive a oportunidade de trabalhar no DN, em 1975, onde conheci o sambista Batatinha trabalhando na oficina. 

   Em 1993, pilotando um projeto bancado pelo empresário Pedro Irujo, tivemos a ousadia de mudar todo esse sistema implantando o primeiro jornal computadorizado do Nordeste brasileiro, o Bahia Hoje. Com isso, aposentamos a composição a frio, os labs de fotografias, os telex e outros e tudo passou a ser feito pelos computadores com a composição e fotografia nas telinhas sem uso de papel.

  Em 2006, mais uma vez com pioneirismo na Bahia, implantei o www.BahiaJá.com.br que foi ao lado de Samuel Celestino (ainda não tinha o nome de Bahia Noticias), o primeiro jornal eletrônico (sem impressão) individual da Bahia, isso posto sem o suporte de uma grande empresa de comunicação. Ousadia e tanto.  

                                              *****

  Conto essa história toda para vocês entenderem como é que, na Guerra da Ucrânia, é possível editar um jornal sem ser 'empastelado', sem os diretotes e jornalistas irem parar na cadeia, tudo feito de forma remota. Assim circula o The Kyiv Independent. 

 Os atuais funcionários do jornal perderam seus empregos na imprensa tradicional de Kiev. Então, trinta jornalistas decidiram lançar uma campanha sob a hashtag #SaveKyivPost. Um novo CEO (Daryna Shevchenko), uma nova editora (Olga Rudenko) e a mesma equipe de repórteres lançaram o Kyiv Independent. Para continuar a ser os "tradutores da Ucrânia para o resto do mundo", diz Brian Bonner, em comunicado. Esta “pequena start-up”, como lhe chama o seu editor-adjunto, Toma Istomina, 26 anos, tornou-se a fonte preferida para acompanhar esta trágica guerra. 

  Uma semana após o início da guerra, The Kyiv Independent tinha 1.6 milhões de seguidores em sua conta no Twitter. Tem, também, um canal no aplicativo Telegram criptografado e seguido por 42.000 assinantes. Existem outros veículos na Ucrânia que operam on-line: Zaxid Net, Ykpaíha Interfax, Pravda Ucrânia e demais.

                                              *****

  E como se comporta a imprensa mundial em relação a guerra da Ucrânia e o uso das novas tecnologias? A imprensa brasileira já tem alguma experiência em guerras e os veículos mais importantes do país estão cobrindo a Guerra da Ucrânia com enviados especiais ao palco da Guerra e correspondentes na Europa, Rússia, EUA e Ásia.

  Recentemente um editor executivo do Le Monde disse que, entre os pontos mais sensíveis com os quais tem que lidar na guerra está a questão das fotos dos corpos de civis ou soldados mortos durante os combates e os bombardeios. "O que mostrar? Assumimos publicar fotos dos mortos, para contar a realidade da guerra. Fazemos isso de acordo com as regras que o Le Monde sempre estabeleceu: sem complacência, sensacionalismo ou voyeurismo. Nosso dever é mostrar aos nossos leitores o que nossos fotojornalistas veem em campo, mesmo que essas imagens às vezes possam perturbar ou chocar", afirma.

  O Le Monde já publicou milhares de posts, teve mais de 50 milhões de visitas, milhares de perguntas e a transmissão ao vivo permanente que dedica à guerra na Ucrânia já está entre as mais intensas e difíceis parta os editores realizarem.

 Esta não é a primeira vez que a redação se mobiliza há vários dias. Durante o primeiro confinamento, a transmissão ao vivo durou oitenta e três dias – mas parou por várias horas durante a noite, narrando o desastre de Fukushima em 2011, depois os ataques de janeiro e novembro de 2015 foram mantidos por vários dias sem interrupção.

 Na guerra da Ucrânia a live distingue-se pela intensidade dos acontecimentos e pelo material particularmente difícil: como cobrir uma guerra em "tempo real", informando o melhor possível os nossos leitores e oferecendo-lhes uma desencriptação e em - exames de profundidade, mantendo nossa linha editorial rigorosa de seriedade e rigor? - essa é a questão crucial para a direção da empresa. 

 A primeira dificuldade é classificar a multiplicidade de informações provenientes de várias fontes: autoridades russas e ucranianas em um contexto de propaganda significativa, outros Estados oscilando entre sanções e ações diplomáticas, o mundo econômico, a sociedade civil, mas também os – muito – muitas imagens publicadas nas redes sociais. Nunca uma guerra interestadual foi tão documentada ao vivo. 

Para isso, os quinze editores que se seguem na live não estão sozinhos. A decisão de publicar ou não informações é de responsabilidade do editor-chefe e, para os pontos mais sensíveis, da direção editorial. Em caso de dúvida, toda a redação está em apoio.

O Le Monde atua com 10 enviados especiais, repórteres e fotógrafos (na Ucrânia e nos países vizinhos); e correspondentes em Moscou e na Europa Oriental.

Os jornalistas do serviço internacional são aqueles que já fizeram reportagens na Ucrânia antes do início da guerra e que têm muitos contatos - fontes que podem testemunhar a realidade quotidiana ou verificar informações questionáveis; jornalistas dos departamentos de Decodificadores, Pixels e Vídeo para verificar e autenticar imagens e desmascarar informações falsas que circulam sobre o assunto; e o serviço de Fotografia, em conjunto com os fotógrafos enviados a campo; os serviços de Infográficos e Decodificadores que acompanham a evolução da situação dia após dia com mapas constantemente atualizados.

                                                *****

  Veja, portanto, como é complexa a cobertura de uma guerra e estamos falando, hoje, do uso das novas tecnologias, o que não aconteceu na II Grande Guerra, porque o mundo está conectado numa rede de satélites e da internet que acabou com o 'empastelamento', mas, criou novos cenários que só a grande mídia tem condições de competir.  

  E, neste jogo, o que é real e o que é fake-news ou propaganda dos governos, é muito difícil identificar esses campos, claramente.

  Quando Putin vai a um estádio de futebol e fala para milhares de pessoas, ao vivo, dando a sua visão da guerra, claro está, pois, que se trata de uma peça de propaganda oficial do governo russo e a Tass, a principal agência da Rússia entra em campo para divulgar o que interessa a Rússia e a Putin. E, obviamente, a imprensa internacional põe um filtro na mensagem e verifica os pós e contra do que ele falou. 

  Portanto, para o povo russo será divulgada um tipo de mensagem; e para o mundo, outro tipo. E isso só é possível fazer, rapidamente, ao vivo, graças a internet e a rede de satélites. Putin pode estar falando e, ao vivo, um comentarista na Alemanha ou no Brasil contestar o que ele está dizendo.

  Circulou, recentemente, na rede, que a Ucrânia estava sendo usada como base de laboratórios para testes de virus poderosos (do tipo Coronavirus ainda mais letais) e esse informe chegou a ser levado até a ONU. Seria, uma das justificativas para o ataque russo. Mas, isso tem algum fundamento ou é peça de contra-informação? 

                                                ******

  O valioso a destacar é que os jornalistas, radialistas, cinegrafistas, fotógrafos e outros profissionais da comunicação, quer na época do uso das velhas tecnologias; quer nos dias atuais, das novas tecnologias, estão no campo das batalhas e das guerras; e nas coxias das redações, dando os melhores de si para informar seus leitores e telespectadores, sem medo da morte e cumprindo suas missões profissionais. É apaixonante.