Cultura

A CADEIRA E O ALGORITMO CAP 7: A MÚSICA DO TAMBOR AO ELETRÔNICO É AMOR

Como coexistem as velhas tecnologias com as novas na produção musical é o que comentamos
Tasso Franco , da reda��o em Salvador | 29/11/2021 às 09:23
Bandolins do autor
Foto: BJÁ
   Filho de músico, músico é. Quando eu era pré-adolescente, meu pai me levou a um relojoeiro para aprender a tocar violão. Meu pai era flautista e clarinetista e tocava na Philarmônica 30 de Junho (ainda se escrevia filarmônica com ph) e o relojoeiro consertava relógios e tocava e ensinava a tocar violâo.  

  Na minha comunidade era assim: o trumpetista era ferroviário; o tuba, mestre de obras; o caixa, barbeiro; o bumbo, pintor de paredes; o trombone, funcionário público; o trompa, sapateiro; funcionava desta forma. Eu, próprio nesta mesma 30 fui sax-tenor quando estudante. Hoje, sigo na música: sou bandolinista.

  Mas, nem sempre os filhos seguem os pais. Meus três irmãos não tocam nenhum instrumento. Veja que curioso: os filhos de Caetano Veloso todos são músicos; os filhos de Gilberto Gil, nem todos. Mas a regra geral é Gongazão, Gonzaguinha; Simonal, Simoninha; Moraes, Davi; Martinho da Vila, Martinália; Bel Marques, Rafa e Pipo e o mundo segue.    

  A música surgiu quando o 'sapiens' descobriu que, batendo um pau ou uma pedra num objeto produzia sons. Elementar. Mas havia os bichos que produziam sons diferentes uns dos outros. Alguns deles, pareciam ter alguma coordenação: os pássaros. E era bonito de ouvir. Um leão urrava, mas, era só; uma girafa, nem isso. Uma ave dobrava os silvos, os cantos.

  Vem daí - da natureza - que o homem se apropriou da organização dos sons que produzia em paus ocos - os tambores primitivos. E os sons foram usados para louvar os deuses, exaltar autoridades, incentivar as lutas. As batalhas, mesmo as tribais, tinham rufar de tambores. As bandas militares surgiram na Alemanha, França e Inglaterra na época do Renascimento.

  Os povos nativos da cidade do Salvador, onde moro, a capital musical mais antiga do Brasil, não tocavam nada. Os astecas, povos da cultura pré-hispânica, no México, 2.000 a.C. tinham festivais e tocavam tambores.

  Liras e harpas já eram tocadas na Mesopotâmia há 3.000 a.C. e o primeiro instrumento de sopro ao que tudo indica teria sido uma flauta de osso.

   Descrever toda a história da música seria uma novela tantos são os exemplos. As raízes musicais da Índia antiga estão na literatura védica do hinduísmo. A base do pensamento indiano combinava três artes: recitais silábicos (vadya), melos (gita) e dança (nrtta). 

   O salto triplo carpado na música deu-se num convento europeu. A denominação das notas musicais deve-se ao monge italiano Guido D'Arezzo (1050). A partir do Sancti Ioannis surgiram ut, ré, mi, fá, sol, lá – e o si, formado pelas iniciais do nome do santo (João).

  O nome dessas notas tem a sua origem na música coral medieval. Guido era regente do coro da Catedral de Arezzo (Toscana) e criou a solmização - nomes das notas. Seis das sílabas foram tiradas das primeiras frases do texto de um hino a São João Baptista. As frases iniciais do texto, escrito por Paolo Diacono, eram: Ut queant laxis, Resonare fibris, Mira gestorum, Famuli tuorum, Solve polluti, Labii reatum. Sancte Ioannes. Cada uma com um tom diferente da outra no momento do canto.

  Mais tarde ut foi substituído por dó, sugestão feita por Giovanni Battista Doni, um músico italiano que achava a sílaba incômoda para o solfejo e foi adicionada a sílaba si, como abreviação de "Sante Iohannes" (São João). . 

  Há uma série de detalhes e estudos que foram sendo acrescentados ao longo dos séculos. Por exemplo, a altura das notas era designada por letras de A a G. Mais tarde, nos países latinos, adoptou-se a designação "dó ré mi fá sol lá si" para representar "C D E F G A B".

   Pautada acima do pentagrama a cifra A, B, C, D, E, F, G representam as notas lá, si, dó, ré, mi, fá e sol. E que podem ser alteradas em um semitom ascendente ou descendente, respectivamente sustenido e bemol. Ex: Am - lá menor; D# - ré sustenido; Bb - si menor; A7+ - lá com sétima. Ou seja, há todo um código que facilita o aprendizado.

   Quando aprendi violão não exista o método cifrado e sim o método clássico dos tons 1ª, 2ª, 3ª e variações. No bandolim, aprendi por música na Universidade Católia, mas também toco por cifra. 

   Chegamos, então, ao ponto de uma primeira reflexão (palavra que detesto, avarenta) que é o objeto central deste livro, a harmonia entre as velhas tecnologias com as novas. Tocamos, pois, no Brasil ou no Japão; na Índia (dos vedas) ou no México (dos astecas) utilizando as notas musicias do monge Guido D'Arrezo, certamente degustador de vinhos como todo monge que se preza, e lá se vão mil anos e os algoritmos não criaram novas notas, novos métodos para facilitar a vida dos músicos.

   Isso é o que chamo de harmonia entre o velho e o novo no aperfeiçamento do que é bom e eterno colocando a tecnolgia a serviço de algumas inovações sem perder a ternura, sem abdicar do passado. 

   Salvador é uma cidade musical e a convivência do tambor asteca, do tambor africano, do tambor baiano com o som eletrizado (gravado, mixado) é real. O grupo musical e cultural Olodum - aquele de maior visibilidade internacional do estado e do Brasil - protagonizou uma cena, com Michael Jackson, no Pelourinho, em 9 de fevereiro de 1996, para gravar o clipe da música "They Don't Care About Us" - também gravou na favela Dona Marta, Rio de Janeiro.

   Sua equipe se utilizou de equipamentos de alta tecnologia (da época) na gravação, porém, o som produzido pelos músicos do Olodum foram dos tambores afinados a mão e ao sol no curtir dos couros.

   Olha só: Na lista dos clipes mais vistos do cantor na plataforma YouTube, “Billie Jean” ocupa o primeiro lugar, com mais de 665 milhões de visualizações. Em seguida, vem “They don’t care about us”, com 610 milhões, seguido de “Thriller”, com 597 milhões de views. Ou seja, a gravação do Pelourinho está acima de "Triller".

   Hoje, o Olodum mixa tambores com guitarras em seus ensaios e em seus desfiles carnavalescos com os mesmos tambores que usava há 43 anos quando o bloco foi fundado e com aqueles que tocou com Jackson, há 25 anos. 

   Uma inovação tecnológia - ou pulo do gato - que aconteceu em Salvador, ano de 1950, deu-se na criação do trio elétrico idéia de dois estudantes de música e eletrônica - Adolfo Antônio do Nascimento (Dodô) e Osmar Álvares Macedo (Osmar) que se conheceram num programa de rádio e criaram o "pau eletrico", em 1942 (considerado a primeira guitarra do Brasil). 

   A "Dupla Elétrica" tocou em instrumentos adaptados as canções do grupo Vassourinhas, de Recife, que se apresentava em Salvador a convite do governador Octávio Mangabeira. Em um ano fizeram aperfeiçoamentos e incluíram Temístocles Aragão formando o trio elétrico, em 1951. No ano seguinte a Fratelli Vita percebeu o enorme sucesso do trio e colocou um caminhão decorado à disposição dos músicos, inaugurando o formato consagrado por todos os carnavais até hoje.

   É pouco? O trio é a maior invenção do Brasil nesse campo. O Palmeiras, ontem, desfilou pelas ruas de São Paulo comemorando a conquista da Libertadores das Américas em cima de um trio elétrico.

   Ao longo desses últimos 70 anos o trio foi se modificando sem perder a base, a raiz. Vários modelos foram surgindo - garrafa, nave espacial, aves, etc - e incorporando o canto e os sistemas eletrônicos. Na inicial, os componentes do trio - guitarra baiana, guitarra base e baixo - ficam na plataforma alta e os outros músicos - caixa, surdo, bumbo - nas laterais. Hoje, todos estão na plataforma alta e o destaque fica para o cantor (a) no topo. Há similaridade, portanto. 

   Um trio tem uma engrenagem complexa com o uso das novas tecnologias e técnicos em computação e eletrônica comandados por um engenheiro para fazer toda mixagem e mistura canto, metais, guitarras, violinos, tambores e outros elementos de percussão. Ou seja, há uma convivência entre o novo e o velho, salvo em trios que usam apenas os eletrônicos, caso do DJ Alok. É possível fazer um trio holograma sem músicos e sem humanos visíveis numa plataforma? É. Mas, ainda não aconteceu. Mas, poderá acontecer. 

   Em 2019, o professor japonês Akihiko Kondo, 35 anos, se casou com cantora holográfica (em realidade virtual), Hatsune Miku. Veja que tem doido pra tudo. Quando o trio eletrônico desfilou pela primeira vez no Carnaval de Salvador - sem cantor, sem banda - imaginava-se que ninguém seguiria. Mas, milhares de pessoas seguiram o 'pancadão'. Decretou-se a morte da poesia que, se já tinha um gosto duvidoso com a axé música, morreu de vez com o 'pancadão'.

   Onde vamos parar? Ninguém tem uma resposta. As novas tecnologias são desafiadoras e o cérebro humano não é metalizado, porém, aceita do Iron Maiden a Vinicius de Moraes; da Sinfônica de Berlim a Pablo. Ainda assim, a nós, os mortais comuns - a maioria da população - a harmonia entre as velhas tecnologias com as novas na música, na composição musical, nos arranjos, na poética, no uso da voz no clássico ou no popular é que predomina. 

   Estamos salvo ou como cantava Zaratustra, em "A Canção da Noite": - Só agora despertam todas as canções dos que amam. E também minha alma é uma canção de alguém que ama".

   Não há música, em sua essência, sem a poética, sem esse amor.