Cultura

ALGUNS HERÓIS vivos do meu tempo de menino na Serrinha, por TF

Vivências dos anos 1940/1950 quando Serrinha tinha ares civilizatórios e havia respeito entre as pessoas
Tasso Franco , da redação em Salvador | 31/05/2017 às 10:09
Comerciantes usavam roupas de linho e camisas de magas dobradas e gravatas
Foto: Museu Pró-Memória
   Já comentamos sobre os meus dentistas de Serrinha no meu tempo de menino - Augusto Palma e Arnaldo Cohim - dos médicos - Miguel Nogueira e Germano Araújo - do sapateiro "Pirulito", do alfaiate Titi, do barbeiro Vicente, de dona Maria do Mingau, e leitores pedem que amplie a crônica, pois, muitos dos que leram sentiram grandes recordações e gostariam que falasse de outros personagens. Existem centenas e não dá pra lembrar de todos até porque os textos falam do meu tempo de criança, na Serra, idos dos anos 1940/1950 e algumas lembrranças fugiram da memória.

  É nessa fase da vida, no entanto, que mais recordações guardamos na cachola e há uma relação entre o que é real e o que é ficção. A criança não consegue separar essas duas coisas e para ela o Zorro é real; assim como o sapateiro "Pirulito"; e Tarzan é tão real, quanto Nêgo Minho, um estiloso jogador de bola da Serra. 

   São personagens imortais nas cabeças das crianças e elas só conseguem diferenciar isso com o avançar da idade e algumas desses personagens passam para o templo dos 'heróis'.
  
   Isani Moraes, uma serrinhense de longo curso, lembra-me de Neném Gonzaga, da elegância e do trato carinhoso de Evandro Mota no seu Armarinho Rosecler e de Albertão sapateiro, no seu dizer, "que solava nossas sapatilhas" e do tempo em ia ao mercao de carnes com o irmão Gilson e seu paí comprar chã de dentro e outras iguarias e levava o bocapio cheio para casa, cada qual segurando numa alça para aliviar o peso. De quebra, ainda crianças, para amenizar o esforço sentavam-se nalgum meio fio para descansar, no percurso entre suas casas e o mercado.
  
   Lembro muito dos três e, com um deles, convivi bastante, Albertão zagueiro do ACEC. Eu era garoto virando rapaz quando tive a oportunidade e o prazer de jogar bola ao lado de Albertão, campeão baiano pelo Botafogo, em 1949. Foi o primeiro jogador que vi colocar caneleira embora nem precisasse, uma vez que era alto como um poste, típico da familia Ramos, ele era irmão do goleiro Zé Ramos, apelidado de Coqueiro, e de Alfredo Ramos, centro-avalante clássico, e a gente até temia Albertão porque quando se chocava com ele ia ao chão. E seus tiros de meta, no velho campo ao lado do Cemitério, se bobeassem atravessavam o campo, passavam por cima do muro do cemitério e a bola caia nalguma cova.
  
  Certa ocasião, já nos idos de 1960, eu atuando pelo ACEC, teve um pênalti contra o Fluminense, nosso adversário, e colocaram Albertão pra bater. O goleiro do FLU era Lourinho, filho de Cícero Freitas, irmão de Foba. Lourinho era baixinho, magro, braços curtos. No momento da cobrança do pênalti, o coletor era o juiz, Albertão afastou-se uns 10 metros da bola e Lourinho ficou pálido no meio do gol. Quando Albertão partiu e deu o tirombaço, Lourinho já tinha abandonado a meta. A bola passou feito um foguete e furou a rede. 
  
   Sêo Neném Gonzaga tinha sua loja atrás da igreja matriz, hoje, sob comando do seu filho Gonza, e a gente era menino e ficava admirado quando chegava um caminhão de cimento para descarregar e os homens pegavam aqueles sacos de 50k como se fossem uma pena. Sêo Neném tinha um carregador - para distribuir o cimento no varejo - que todos nós admirávemos porque era um gigante e nessa época no cinema a gente não conhecia nada igual em fortaleza.
  
   E Sêo Evandro parecia um europeu. Creio que tinha os olhos esverdeados e atendia os clientes usando gravata e camisa de manga comprida arregarçada até o cotovelo. Era de uma gentileza fora de série. Ele, Alfredo Mota, Juca Cândio, Vadinho, Sinfrônio, Aldemário e outros.  

   Serrinha tinha ares civilizatórios copiados do modelo europeu, com a diferença que muitos dos senhores usavam ternos de linho branco e não roupas pesadas para o frio.

   Nós, crianças, tínhamos basicamente três tipos de comportamento com os adultos: de respeito, de medo e de pirraça. As famílias só ensinavam o primeiro item, o respeito, e as crianças só chamvam os adultos homens de "Sêo" e as mulheres de "Dona". As familias católicas colocavam os filhos na catequese e ensinavam a pedir a benção. 

   Os outros dois itens - a pirraça e o medo - a gente aprendia com a rua, na vivência. Um dos que a gente mais pirraçava era Rodrigo, um pedinte baixinho que tinha as pernas entrevadas, andava com dificuldades e usava um cacete para se apoiar. Fazia ponto para donativos, a popular esmola, na porta do Mercado Municipal que dava de frente com a loja de cereais de Sêo Emilio Ferreira. Quando a gente passava por ele gritava: "Bufa de Véio". Rodrigo se azucrinava, rodava o cacete, e responsia "é sua mãe fdap...".

   A gente tinha medo, só para dar um exemplo, do veado mais famoso da Serra (ninguém falava no nome gay), Elieser Boca Murcha. Ele tinha esse apelido porque, é o que se dizia, levara um tiro na boca durante uma de suas incurssões como provável pistoleiro de aluguel, onde atuava fora do município. De vez em quando, de fato, ele sumia da cidade e reaparecia meses depois, abonando. E aí, 'caçava' meninos para um programa que podia ser nos matos. A gente temia ele porque se dizia que andava sempre armado. Que eu saiba nunca atirou em ninguém na Serra.

   E o respeito era a coisa que vinha de casa. Menino não se dava com adulto. Mas, se conheciam. Como eu morava no Largo da Usina, oficialmente Praça Miguel Carneiro, por proximidade eu conhecia os adultos que viviam no Largo e arredores. 

   Nossa familia era vizinha de Sêo Vilela e dona Sisi, uma casa depois se situava a familia de Sêo Maninho da Licurituba e adiante a casa de Sêo Manoel Carneiro. Do outro lado do chalé do meu avô, onde morávamos, era a sede da Usina onde ficavam os motores a óleo da PMS que iluminavam as ruas da cidade, e depois, a casa de dona Maria Edistia. 

   No corredor do largo descendo para o Mercado tinham as casas de Sêo João Freitas, o Licouri; Sêo Nozinho do Lamarão; os irmãos Antonio e José Nunes, este último casado com uma prima de minha mãe (Pipe Paes) e contornando a praça as casas de Sêo Zé Faustino, dos tecidos; Sêo Jair Novaes; Sêo Torquato Sacristão e dona Todinha e Sêo Demá. 

   Adiante, o armazém de Sêo Feliciano gerenciado por Paulo Oliveira; a residência de Sêo Padreco e a casa de Sêo Neco Bilheiteiro geminada com a das suas irrãs (hoje, supermercado Chama); a casa de Sêo Adbon Costa e mais acima a de Sêo Cerqueira, da Fábrica de Sabão; de Sêo Antonio Mercês e de Sêo Conrado marceneiro.

   Esses eram os adultos que eu conhecia e cujos filhos - Jeferson e Nilson (de Zé Faustino), Dinho e Toinho (de Neco Bilheteiro), Serrador e Zé Potó (de Demá), Tó e Belmiro (de Antonio Mercês), Rominho e Veinho (de Sêo Cerqueira), Miro Pezão (filho adotivo de Nozinho do Lamarão), Fona e Pequinho (filhos de Paulo Oliveira) jogavam bola com a gente no Largo, daí que era tudo gente boa.

   Cada um deles tem sua história. O quarteto Antonio e José Nunes (irmãos), Zé Faustino e Toraquato Sacristão eram católicos fervorosos; João Licouri, Nozinho e Antonio Bernardes eram fazendeiros; Sêo Cerqueira era nosso Mr Pardal com sua fábrica de sabões coloridos; Conrado um perfeccionista da madeira. Fez um banco lá pro cahlé que durou 60 anos sem amolecer as pernas.

   Quando dava trovoada na Serra o melhor local para tomar um banho de chuva era nas bicas do Armazém de Sêo Feliciano; e se você quizesse ficar rico tinha que comprar um bilhete da Loteria Federal com Sêo Neco; e se gostasse de futebol, especialmente do Vasco, tinha que ser amigo de Sêo Padreco, um especialista em culhudas.

   Pra fechar, dois outros imortais foram os magarefes Diú, que apelidamos de Delho; e Pedro Magarefe. Diú foi o goleiro mais 'mascarado' da Serra. Um clássico. Fazia defesas extraordinárias, elegantes, e também engolia cada 'frango' medonho. Teria sido Diú quem inventou a 'cera' dos goleiros nacionais. Quando sentia que seu time estava fraquejando, numa bola mais dificil, caía e ficava estirado no chão. Não havia grama nem massagistas. Todo mundo corria pra socorrer Diú e de, de repente, ele se levantava numa boa.

  Pedro Magarefe era lateral direito do FLU e não perdia uma boa. Se não acertasse na disputa da bola você que tirasse sua canela do caminho. O camarada tinha tutano de aço. Rivalizava com Carrancudo, o lateral direito do ACEC. O nome diz tudo. Carrancudo era baixinho e parecia um touro Miúra. 

   Acabei falando de três outros personagens e lá vai mais um pra o the end, o zagueiro Toninho Gago, uma 'delicadeza' na defesa.