Cultura

NO MEU TEMPO DE MENINO os sinos da matriz eram o relógio da Serra (TF)

Marcavam as horas, regulavam o comércio, chamavam para missas e novenários e anunciavam casamentos e mortes.
Tasso Franco , da redação em Salvador | 15/11/2016 às 10:52
O relógio de Serrinha no meu tempo de menino era os sinos da Matriz de Sant'Anna
Foto: BJÁ
    Com a chegada da velhice, a cada ano que se passa, fica-se mais saudosista e as lembranças do passado, tempo que não volta mais, afloram. Tem um cantinho da memória, enquanto é-se lúcido, que não deixa a borracha do tempo apagar.

   No meu tempo de menino, em Serrinha, década após o fim da II Guerra Mundial (1945/1955), poucas eram as pessoas que possuiam relógios de pulso. As mulheres só os usavam nos dias das missas e dos cultos evangélicos, em datas festivas, aniversários e casamentos. Era raro vê-se alguma no dia-a-dia portando-os. Relógio era uma espécie de jóia.

   Os homens, alguns os tinham, mas, a maioria usava os relógios de bolso fabricados pela primeira vez em Nuremberg, Alemanha, em 1504 (o ovo de Nuremberg).

   Indicavam, inclusive, o status das pessoas. Um folheado a ouro 18 kilates Patek Phillip com aquela corrente de ouro exposta fora da calça ou do bolso do jaquetão indicava que o camarada era rico. Um mais modesto, de prata, um Longines, indicava outro status. Nas calças dos homens - as mulheres não usavam calças compridas nessa época - havia um bolsilho na altura da virilha onde se colocava o relógio e a corrente trespassava até o bolso maior da calça.

   Havia ainda os relógios de paredes, a maioria importada dos EUA, e os relógios de móveis em madeira e louça. Era dessa forma que se regulava os horários na cidade. 

   Mas, de fato, quem marcava as horas de uma forma mais ampla, eram os serviços de alto falantes - Comercial e A Voz do Sertão - e os sinos da Igreja Matriz de Sant'Anna. Esses, sim, eram pontuais e indicavam o meio dia e às 18 horas ou seis horas da Ave Maria. Além dos sinos da matriz havia ainda o apito do trem noturno que sinalaizava a meia noite. 

   Serrinha, no dizer popular, era um ovo. Cidade pequenina.Da balaustrada do chalé de meu avô e depois de meu pai, onde morávamos, no Largo da Usina, podia-se ver o fim da cidade no lado do cemitério do padre e do outro lado o morro da fazenda de Samuel Nogueira. No Norte, era mato, o sítio do meu avô; e ao Sul era a estação do trem que não dava pra ver porque ficava numa baixada.

   O comércio se limitava a Praça Luiz Nogueira, Rua Direita, Beco da Lama, um pouco na Barão de Cotegipe, Largo da Federação e rua do Mercado Municipal, inaugurado em 1950.

   Meu pai tinha uma livraria e tipografia "O Serrinhense" na Praça Luis Nogueira. Do lado direito ficava o Bar Itauna, de Edmundo Veloso, depois a loja de Wilson Ramos, e em seguida a Farmácia do Povo, de Sêo Cosme; do outro lado, a loja dos irmãos Bacelar, Almiro e Zé; a casa de Antonio José Araújo e a Farmácia de Sêo Paulino Bieta. E, em frente, a loja de peças e querozene de Sêo Demá, a Loja de João da Ema, a de Zé Fatustino, a de Sêo Juca Cândido, o Ciclamen e outros.

   Quando dava meio dia Zé Sacristão mandava tocar 12 badaladas nos bronzes, ainda hoje, na mesma torre da matriz. Blém...blém... blém... doze vezes. 

   Meu pai tinha 5 operários na tipografia e mais minha tia Dalva Paes no balcão da livraria. Nas primeiras badaladas minha tia fechava as portas da loja e os operários paravam as máquinas, movidas a pedal, e todos iam para suas casas para almoçarem. Todo o comércio fechava. Só ficavam aberto os bares, o mercado e os snokeres. Não havia restaurantes nem supermercados.

    Nas escolas também era assim. Eu estudava na Agripino Barbosa. Tocou o sino da igreja a professora Edna Santos encerrava a aula. Em todas as escolas, até as distritais.

   Meu pai ia pra casa, almoçava com todos da familia na mesa e depois puxava uma 'siesta' numa cadeira espreguiçadeira da sala. Quando o relógio da parede lá de casa marcava 13h30min, que todo mundo só falava uma e meia da tarde, apenas uma badalada, ele levantava, passava água no rosto e descia para seu comércio.

   Às duas da tarde, todo o comércio já estava aberto e quando dava 6 da noite os sinos da igreja tocavam seis badaladas ...blém...blém...blém e o comércio voltava a fechar suas portas só abrindo no dia seguinte. 

   Entenda-se comércio de uma forma mais ampla - também serviços, dentistas, bancos, etc. A cidade, literalmente, morria. Depois das 6 horas da noite, quando os serviço de alto falantas executavam a canção de Peter Schubert, aquele canto lamurioso operístico, 'Aveeeeé Mariaaaa' a população ia para suas residências dormir.

   Claro que havia pontos de diversão, os snokers, o brega, o seresteiros e os boêmios que se concentravam no Bar de Romão, no Jardineiro, no Beco da Lama e no Cabaré de Viana.

   Como a cidade era pequene e não havia poluição sonora diz-se que os sinos da matriz eram ouvidos em alguns povoados e distritos, estes também regulavam seus horários pelos sinos da igreja.

   Os sinos da matriz também chamavam para as missas aos domingos e nos novenários de Maria e de Sant'Anna, em maio e julho, e aí as badaladas eram diferentes. 

   Para as missas o chamamento começava às 7h com bléns...bléns...bléns bem ritimados. Quando dava 7h30min o ritmo ficava mais intenso bléns..bléns...bléns...bléns, como uma carretilha. As pessoas já sabiam: a missa está perto de começar e aqueles que eram católicos se dirigam a igreja.

   Faltanto 5 minutos para às 8h aí era blém...blém...blém...com toda força nos dois sinos. A missa iria começar. Os toques nos dois sinos era uma arte.

   Os sinos também badalavam na hora da eucaristia e nos finais das missas. Toques diferenciados. O toque da eucaristica era compassado, triste; e do final da missa, alegre, 'scatato' em itliano, disparado.

   Quando uma autoridade ou pessoa católica influente morria - um comerciante, um fazendeiro, um cristão frequentador dos cultos - os sinos badalavam vagarosos ...blém...blém...blém... com batidas espassadas, isso fora dos horários do meio dia e das seis da noite.

   A gente já sabia. Sino batendo fora de hora dessa forma. Hic! morreu alguém. A noticia se espalhava logo pelas familias no boca-a-boca até que o serviço de alfo-falanta fazia o anúncio fúnebre e o convite para o sepultamento.

    Os sinos só tocavam às noites nos novenários de Maria, de Sant'Anna, na Semana Santa e no Natal, na tradicional missa do galo. 

   Foi assim no meu tempo de menino e por longos anos até que o relógio de pulso se popularizou, o comércio cresceu e passou a ficar aberto o dia todo e chegou a primeira rádio em 1969. Mas aí eu já estava adulto e é outra história.