Cultura

NO MEU TEMPO DE MENINO EM SERRINHA: A semana em que se conhecia peixe

Na procissão do Fogaréu (foto) as crianças mais sapecas apagavam as tochas dos tabaréus
Tasso Franco , da redação em Salvador | 19/06/2016 às 11:24
A procissão do Fogaréu, só com homens, e o prefeito Carlos Mota (de terno) com a cruz
Foto: Arquivo pessoal
No meu tempo de menino, em Serrinha, lá pelos idos dos anos 1945/1957, a terceira festa popular que a gente mais curtia era a Semana Santa. 

   Diria que, na Serra, todas as festas populares estavam ligadas a igreja católica - Natal, Reis, Semana Santana, Santo Antônio, São João, São Pedro, Sant'Anna - exceto o Carnaval que, embora seja a festa da carne ('carnis levale' ou adeus à carne) que a partir dela se fazia um longo período de abstinência à carne, uma quarentena até a semana santa, teria nascido na Grécia 520 d.C. e chegou ao Novo Mundo pelas mãos dos cristãos portugueses e genoveses que aportaram no Brasil

   A semana santa era um periodo que a gente gostava com certo receio, até com medo, porque se falava da morte de Jesus e sua crucificação, e menino não gosta dessas coisas. E ainda havia (e há) uma imagem de Cristo no tamanho de um homem num nicho da igreja Matriz de Sant'Anna coberta com uma cortina que a gente tinha medo de olhar, e só ia lá com amigos ou com os pais. 

   Menino também não gosta de coisas relacionadas a morte e criança não entende nada de ressureição e assim por diante daí que, o que a gente curtia mesmo era a Procissão do Fogaréu, a subida do Morro, a queima de Judas e a comilança que havia durante a semana santa com peixes, vatapás, castanhas, carurus e outras iguarias.

   Serrinha, como se sabe, foi a terra que Judas amarrou sua bota e deixou no sopé da Serra, e não tem mar, nem rio, nem lagoa, e seus açudes não eram piscosos, mas o certo é que durante a semana santa apareciam nas vendas e nos armazéns de secos e molhados, o bacalhau e alguns pescados. 

   Nessa época não havia geladeiras, freeses, e tudo era conservado na base do sal. 

   Meu pai conseguia comprar umas trairas negras na Cabeça da Vaca quando voltava de sua fazenda Capitão montando num cavalo baio e as colocava nas bolsas do alforge. Tinham que ser tratadas e comidas no mesmo dia ou no seguinte.

   Eram deliciosas embora tivessem muitas espinhas e era preciso ter todo cuidado para comê-las. Minha mãe ficava preocupada e até contava histórias - pra amendrontar a gente - de crianças que se engasgaram com espinhas de peixe.

   Peixe era um animal tão raro na cidade que, de fato, a gente só comia na semana santa ou noutro evento da familia. Na semana santa dáva-se a descoberta do peixe. Acostumados a comer carne, a gente perguntava: - Que bicho é esse mãe? Muitos meninos não comiam.

   O bacalhau, este sim, era uma maravilha mas as familias compravam pouco porque era caro. Era pouco bacalhau na mesa e muita batata do reino pra encher o prato e os olhos da gente. 

   Minha mãe não era boa cozinheira. Meu pai nunca deixou ela ir para a cozinha porque tinha 4 filhos e não era moleza dar conta da molecada. Agora, Zildinha fazia um vatapá de castanhas que vamos tirar o chapéu junino. 

   A Procissão do Fogaréu a gente adorava. Primeiro confecionando tochas de papel e fundo de papelão para vender pro pessoal das roças que vinha para a festa religiosa. Meu tinha tinha uma livraria e tipografia na praça Luiz Nogueira e eu armava uma banquinha pra vender as tochas. Depois, uma das nossas diversões - meninos em pequenos grupos - era apagar as velas das tochas dos 'tabaréus' durante a procissão.

   A gente ficava de butuca esperando a hora que o padre Demócrito anunciava os cânticos ao Senhor Deus Misericórdia e as pessoas se ajoelhavam, só homens porque nessa época só homens participavam da procissão, e soprava as velas e saia correndo pelo meio do povo.

   A procissão tinha o percurso só urbano saindo da matriz de Sant'Anna, pegando a rua Direita, Largo da Matança, seguia até a rua da Estação fazenda uma parada em frente a casa de dona Marieta, mãe adotiva de Paulo Teiu, e depois seguia até a praça Luis Nogueira parando na casa de Tia Pequena de Basílio (hoje, Hotel Diamantino) onde havia outra parada. 

   Meus país ficavam aí. Tia Pequena era madrinha de meu pai. Daí a familia se reunia e depois a gente ia pra casa, lá pro chalé. 

   A procissão terminava cedo, por volta das 20h30min, a tempo do pessoal voltar para as roças. Não havia atos teatrais, nem 'romanos' estilizados desfilando portando lanças, nada. Só a proissão, normalmente com o prefeito conduzindo a cruz processual e pronto.

   A procissão acontecia na quinta-feira, dia que era semi-feriado, nas escolas não havia aulas e a Prefeitura era fechada. O comércio funcionava. Ainda hoje é assim, com as naturais mudanças na procissão.

   A sexta-feira santa era um dia triste, sombrio, salvo pela subida ao morro. Não me recordo a primeira vez que subi o morro se foi em 1953 ou 1955, quando completei 10 anos. Tenho impressão que foi em 1955. Fui com amigos. Meu pai não era de subir o morro. 

   Pra chegar ao morro mais alto da Serra, na antiga estrada para Barrocas, a gente atravessava o pontilhão da bomba e depois pegava a estrada. Não havia o bairro Nossa Senhora de Fátima. Era tudo mato, fazendas, sitios. O bairro dos 13 já existia, pequenino. 

   Serrinha era pequenina e a gente ficava admirado com sua beleza lá do alto. Ninguém tirava foto porque não havia celular, nem máquinas fotográficas. Eram poucas as pessoas que tinham esse equipamento na cidade, as velhas Roleiflex.

   A tarde tinha a procissão do Senhor Morto na praça Luis Nogueira. O momento marcante era quando dona Valda do Cartório fantasiada de Verônica entoava um cântico e desfraldava uma pequena bandeira com o rosto de Jesus ensanguentado. 

   Era também um dia apavorante porque se dizia que menino ou rapaz que batesse na mãe virava lobisomem. E aquele que tentasse por brincadeira se espojar onde se espojara um jegue ou uma mula virava lobisomem. A mula mais famosa de Serrinha era a de Sêo João Devoto.

   A gente se pelava de medo com essas histórias, ainda mais na sexta-feira santa quando a cidade parecia um cemitério, o comércio era fechado, os poucos bares que havia não podeiam vender bebidas alcoólicas e os 'balaios' das mulheres estavam fechados. 

   A gente não entendia nada desse negócio de 'balaio fechado' (a proibição de fazer sexo durante a semana santa) e levava com humor.

   A alegria voltava a cidade no sábado de Aleluia com a feira livre, comércio aberto, mais guloseimas nas mesas das familias e a queima dos Judas. Não se falava noutra coisa. Meu pai era um dos versadores da herança deixada pelo Judas aos politicos locais. O assunto rendia pelo menos uma semana na boca do povo. - Você viu o que Judas deixou para Carlos Mota? - era o que se ouvia. - E pra Lourinho, você não comenta?

   Ainda tinha o domingo da Páscoa pra fechar o evento. Nessa época também eram raros os ovos de chocolate. Serrinha nunca teve essa tradição, chocolate era um produto rarissimo. 

   Agora, a mesa do domingo era farta, com bacalhau e vinho barato para os adultos e pra nós refresco da fruta de época.