Cultura

NO MEU TEMPO DE MENINO, como era a festa de Natal em Serrinha, por TF

Era um tempo maravilhoso para as crianças que se divertiam a valer
Tasso Franco , da redação em Salvador | 21/04/2016 às 11:02
Minha mãe Zilda com um dos filhos de roupa nova para o Natal
Foto: Album da família
​    No meu tempo de menino em Serrinha a segunda festa popular que a gente mais apreciava era o Natal. Assemelhava-se ao São João porque também era praticamente um mês de transformação na cidade, período das férias escolares e quando o comércio e a igreja católica promoviam eventos, as lojas de armarinhos se enfeitavam com bolas de árvores de Natal, algumas imagens de Papai Noel, e o padre promovia leiLões e quermesses na praça ao lado do coreto.

   Além disso, a feira livre logo no inicio de dezembro começava a vender objetos de decorações para as casas e para árvores e presépios natalinos, sambambaias, cactos, peças de barro - burricos, bois, vacas, galinhas, cachorros, imagens do menino Jesus - esse artesanato vendido por senhoras dos povoados do Barro e da Chapada no Largo da Federação.

   Serrinha não tinha 'chegada' de Papai Noel, músicas natalinas, promoções de troca de presentes, nada disso. A cidade só tinha luz elétrica do motor diesel da Prefeitura, poucas famílias tinham 'vitrolas' a manivelas e radiolas e a grande atração se concentrava na igreja matriz de Sant'Anna com a missa do galo que se celebrava na noite do Natal de 23 para 24 de dezembro. 

   A praça Luis Nogueira se enfeitava toda, havia bancas de jogos de azar iluminadas por gambiarras, tudo na base de iluminação do motor da PMS. E algumas pessoas reverenciavam o galo, como na lenda espanhola, pedindo por chuvas e boas colheitas.

   Até chegar essa fase final da festa, o dia propriamente dito do Natal, algumas familias armavam presépios em suas salas. O de lá de casa, no chalé, ficava na sala principal a esquerda da porta que dava para a varanda, e meu pai fazia um presépio simples que ajudei algumas vezes na sua execução.

   O mais importante do presépio ou lapinha era fazer um arruado de casinhas num morro e embaixo uma espécie de praia com búzios e mais ao lado a manjedoura com o menino Jesus, um jegue, imagens dos três reis magos e outros bichos que sequer havia na Judéia na época de Cristo. Até imagens de patos, porcos e emas a gente botava.

   Nem naquela época (nem hoje) entendo o porque de uma praia nas lapinhas, pois, onde Jesus nasceu não havia nada disso. Nazaré era um local pobre ao Norte e distante 25 km do mar da Galiléia. Jesus veio ao mundo numa casa sem rebocos, típica de uma familia pobre da Judéia, área ocupada pelo Imprério Romano. O pai de Jesus, José, era carpinteiro, profissão que Jesus também seguiu quando jovem trabalhando em centros mais desenvolvidos próximo a Nazaré. Maria, a mãe de Jesus era dona de casa e tinha outros filhos e filhas, entre eles, Judas, Tiago e Mateus.

   Curioso também é que em Serrinha não havia praia e eu só fui conhecer o mar e a praia quando já tinha 11 anos (1956) e fui a Salvador com meu pai, de trem, ficando hospedado na Pensão de Sêo Lisboa que se situava na rua Barão de Cotegipe, com fundos para a praia do Cantagalo.

   O presépio mais importante e mais visitado da Serra, nessa época, era de tia Pipe Paes, mãe de Manoel Augusto cantante da Procissão do Fogaréu, na casa do Largo da Usina ao lado da residência de Sêo Antonio Nunes e em frente a casa do comerciante de tecidos Sêo Zé Faustino.

   Era uma atração a parte, aberta a visitação pública, e a gente ficava momentos admirados com a beleza do presépio armado na sala de visitas. Tia Pipe deixava as janelas que davam para a rua abertas para que o povo também olhasse de fora. A gente era menino e tinha que entrar para admiriar o presépio pois não alcançava o olhar na altura das janelas.

   O mês de Natal também era mês de fartura na mesa, época das frutas de verão - umbus à mancheia apareciam na feira livre, mangas espadas e rosa, cajus, mangabas - e de bolos nas mesas. A feira ficava mais colorida e era tudo barato de se comprar.

   Era também o mês do queijo de cuia Palmira vendido na Bacelar & Bacelar. Sêo Moacir Bacelar passava no 'O Serrinhense', a livraria e tipografia de meu pai, e dizia: - Braúlio, já reservei seu queijo.

   Era o único mês do ano que a gente comia queijo lá em casa. Minha mãe cortava as tiras bem fininhas para colocar nos pães pra o queijo durar muito. Depois, a cuia do queijo servia para colocar na tampa do pote d'água. Era também (a outra banda) usada para tomar banho de cuia e assim por diante. Dizia-se, ainda, que servia para demarcar corte de cabelos.

   Como não havia geladeiras em Serrinha ninguém vendia queijos de lanches, iogurtes e essas coisas dos dias atuais. Minha mãe colocava o quejo de cuia aberto numa cristaleira e ninguém mexia. Só ela. Era um troféu.

   Também era época de comprar uma roupa nova para a noite de Natal e que servia para a mudança do ano. Não havia festa de 'reveillon' como se faz hoje e o ano virarva uma boa, sem fogos, sem festas, sem nada. A gente ia dormir e o no outro dia era o ano novo e pronto.

   Também não havia ceias de Natal entre as familias, salvo raras exceções. Na noite de Natal meu pai levava tudo mundo para a sua livraria (O Serrinhense) na Praça Luiz Nogueira, minha mãe Zildinha e meus irmãos Lais, Celeste e Bráulio este último já rapaz quando eu tinha 10 anos e entendia melhor o furdunço natalino na praça. 

   Minha mãe levava a ceia (se é que podemos chamar assim) lá pro Serrinhense cortes do peru, empanada e refresco. O peru era comprado na feira livre e matado e depenado pela empregada doméstica, com a ajuda de Didi.

   Minha mãe detestava a matança de um peru que dava muito trabalho. Nem encostava no momento de sangrar o bicho e escaldar para tirar as penas. A gente curtia as penas do peru depois de retiradas do bicho e fazia aviõeszinhos com elas. Imitava também uma caneta. Fazia cocar de índio. Era uma curtição. 

   Ao lado do Serrinhense ficava o Bar e Sorveteria Itaúna, de Sêo Veloso, e já ia pensando no caminho que picolé iria chupar. Mais de um, claro, afinal era noite de Natal e a farra tinha que ser maior,

   Eu ficava encantado com as bancas de jogos de dados, as de Araújo, de Zinho e em especial a de Miguel Cotó. Miguel despertava na gente um fascinio: era gordo (mas nem tanto), estatura mediana, usava roupas brancas e não tinha uma parte do braço, daí o apelido de Cotó. E estava sempre fumando um charuto. 

   Miguel Tinha uma técnica especial de girar os dados na cumbuca para fazer o fogo, isso com o charuto na boca e uma só mão, e quando o jogo estava para ser feito, dados encobertos, tirava o charuto e dizia: - Vamos apostar minha gente. Depois levantava o combo e diz: - Deu 3 dois duques e dois eternos.
Era a glória. ficava vidrado olhando aquelas jogadas.

   Já maiorizinho fazia apostas. Gostava de jogar na quinta e quando dava 3 quinas corria para comprar picolés e cestinhas de castanhas e amendoins confeitados que eram vendidos nas bancas. Acabara de ficar rico. Era uma festa. Essas cestinhas confeitadas e decoradas faziam também nossa alegria. Uma coxa de galinha assada também valia.

   Meu pai era espírita e minha mão católica não praticante. A familia não ia a missa do galo. Meu pai era amigo politico do padre Demócrito e tinha sua patota com Lourinho Chileno, Nozinho de Godi, Alfredinho do Sax, Elisio Freitas turma que gostava de uma birita no Bar do Romão, no Beco da Lama, e tinha amizade com o padre que também era birieito. Mas esse pessoal não era de reza.

   Quando dava aí por volta das 11horas da noite meu pai fechava 'O Serrinhense' e levava todo mundo pra casa, a essa altura, eu mesmo já cansando, com sono, doido por uma cama. De longe, já no casarão, deitado na cama a gente ouvia os sinos da igreja matriz repicados por Zé Sacristão, 12 badaladas, anunciado a missa do galo e caia no sono. 


    

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