Cultura

VIDA DE GORDO Pescar siri de jereré era o melhor da ilha, OTTO FREITAS

O siri faz bem, pois tem carne branca, leve e de fácil digestão. E a moqueca de siri mole é imbatível em sabor.
OTTO FREITAS ,  Salvador | 18/10/2015 às 19:00
Moqueca de siri mole é de tirar o fôlego
Foto: DIV
   O sol forte da primavera trouxe lembranças de antigos veraneios e das pescarias em Itaparica. Raramente Jeffinho pescava de linha, na velha ponte onde o navio atracava. Não tinha muita paciência e só pegava peixe miúdo. Ele gostava mesmo era de pescar siri na maré de enchente, em noites claras. Era divertido, relaxante e romântico. 

  Trata-se de uma pescaria ecologicamente correta, pois se devolvem ao mar os siris pequenos e as fêmeas ovadas. No Nordeste se pesca siri-bóia, patola ou açu. Antigamente, na Cidade Baixa (Ribeira e ponta da Penha) dava siri-bóia nas canelas e os bichos eram enormes. Hoje, com a poluição e a sobrepesca, já não são tantos e não passam de uns 20 centímetros, com as pernas abertas.

  Junto com amigos e amigas, Jeffinho descia à praia em frente à casa da Itaparica, levando os apetrechos necessários: um colfo de palha para guardar as iscas de carne (o siri é um crustáceo que se alimenta de carne, qualquer uma) e a indispensável garrafa de cachaça da boa, para animar a empreitada. 

   Com a água batendo na cintura, geralmente a turma usava duas tampas grandes de caixas de isopor, boiando sobre o mar calmo, improvisadas como mesas flutuantes em que se apoiavam a lata com os siris e o fifó que ajudava a lua e as estrelas a iluminar a noite.

   A principal ferramenta da pescaria, no entanto, são os jererés (no sul do Brasil chama-se puçá), instrumento de origem indígena, composto por um pedaço de rede preso a um aro de metal ou madeira, formando a boca de uma espécie de saco, cujo fundo é fechado em nó e amarrado a uma pedra - o peso o faz submergir e se acomodar no fundo do mar, por onde o siri caminha. 

   Um longo cordão mantém o jereré, preso pela boca, atado a uma vara fincada no chão, que é para a maré não levar. Esse cordão também pode ser amarrado a pedaços de madeira ou isopor, que ficam boiando, à vista e à mão do pescador. 

   De tempo em tempo puxa-se o jereré da água, para ver se algum siri ficou na rede. Depois, em uma manobra que exige cuidado e destreza, transfere-se o siri para uma lata ou balde com tampa, onde se guarda o produto da pescaria. 

   Mais tarde, já com algum siri na lata e pressão no juízo, por conta da pinga e dos hormônios devidamente ativados, de vez em quando a moça e o moço saiam da água e subiam à areia da praia, para descansar. A beleza da noite e aquele momento tão lúdico vez por outra estimulavam a troca temporária de siris por periquitas e papudinhas, pintos e perus. 

                                                                          @@@@@@

   De volta para casa, já de madrugada, os siris iam da lata para a panela no fogo, com água, sal, tomate, cebola e muito tempero verde. Aferventados (somente o siri mole, quando o casca está na muda - o que acontece periodicamente - se presta a uma boa moqueca), eram devorados com habilidade e destreza, acompanhados por várias cervejas geladíssimas que esperavam sua hora. 

   Esse ritual tem liturgia própria. O certo é comer sempre em volta da mesa, com os amigos, todos juntos. Vai-se quebrando a casca e destrinchando o bicho, sugando o caldo e saboreando a carne. Um molho lambão de pimenta, fresquinho da hora, é indispensável - além de bom papo e muita risada. 

   Naquele tempo, em Itaparica, não faltavam alegria e gargalhadas. O siri é agregador e faz bem ao homem - à alma, à cabeça e ao corpo, pois tem carne branca, leve e de fácil digestão. Depois vem o sono renovador de energias e sonhos. 

   É como diz a música De Papo pro Ar, de Joaubert de Carvalho e Olegário Marciano, gravada por Pena Branca e Xavantinho: “Não quero outra vida/pescando no rio/de jereré/tem siri patola de dar com o pé...”.