Cultura

CARURU de Bunda Pobre era festa de arromba em Salvador, p OTTO FREITAS

Era um evento famoso, popular, cheio de pompa e circunstância.
Otto Freitas , Salvador | 13/09/2015 às 19:28
Caruru para Cosme e Damião
Foto: Bahiatursa
Setembro é o mês do caruru de São Cosme, uma festa de comes e bebes em homenagem aos meninos gêmeos, ou mabaços, na língua banto. A igreja católica cultua Cosme e Damião e o candomblé os Ibejis, filhos de Xangô e Iansã, como ensina o mestre José de Jesus Barreto, no seu livro Candomblé da Bahia.

Só mesmo na Bahia tem festa religiosa em que santos católicos são homenageados com comida de orixá, e com tanta força e popularidade.  Por fé ou tradição, baianos e até empresas faziam a oferenda aos meninos gêmeos. É obrigação de santo, no candomblé, ou pagamento de promessa católica dar o caruru por anos a fio (geralmente três ou sete anos), ou por toda a vida, em retribuição por alguma graça alcançada.

Bunda Podre não era filho de santo, mas, como todo baiano, tinha lá suas simpatias pelo candomblé - dia de sexta-feira, por exemplo, só vestia o branco de oxalá. Seu caruru era de promessa, que ele pagava todo ano, religiosamente, com alegria, pompa e circunstância.

Mede-se o tamanho do caruru pelo número de quiabos – entre dezenas e até milhares, no caso dos grandes eventos. O caruru de Bunda Podre era grandioso, popular, uma festa de arromba, e tão tradicional que se integrou naturalmente ao calendário de Salvador.

Sempre sorridente, vestindo sua famosa bata branca de fé, ele recebia os convidados, fazia as honras da casa, sem jamais abandonar a indefectível cascavel, mais conhecida como uísque puro com gelo, sua bebida de sempre.

Também de branco, Donana, a primeira dama, trabalhava duro, por quase uma semana, preparando a festa (na casa de Donana sempre se comia muito bem, em qualquer dia). Ela se ocupava das compras na feira de São Joaquim, do preparo da comida e da distribuição dos pratos, muito bem servidos – e ainda havia o tabuleiro da Cira de Itapuã, que distribuía, de entrada, os mais famosos acarajés da Bahia.

Quando o caruru é de obrigação do axé, não pode ter bebida alcoólica; servem-se apenas o aluá (bebida feita com cascas de abacaxi de infusão), refrigerantes e sucos. Como o de Bunda Podre era de promessa e a festa meio profana, tinha bebida farta e liberada. Afinal, naquela casa de ferreiro o espeto não era de pau.

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Bunda Podre era famoso na cidade, tinha muitos amigos, inclusive na comunidade de Itapuã, sempre bem representada, Pirilo à frente. Junto com Calazans, Jorge Amado também aparecia, caso estivesse passando temporada na sua casa em Pedra do Sal. Honra e glória da Cidade Baixa, Bunda Podre tornara-se um itapuanzeiro de boa cepa.

Ele ficava alegre e orgulhoso diante de tanta popularidade e tamanho afeto demonstrado por amigos mais chegados e mesmo os nem tanto. Havia “convidados” que nem conhecia, aqueles amigos do amigo do amigo, ou o primo da ex-mulher do cunhadoVinha gente de todo canto e de toda cor, como diz a música, incluindo pescadores da ilha, lá de Coroa, onde veraneava.

O fato é que no auge da festa, que avançava madrugada adentro, saia gente pelas portas e janelas. Os garçons não davam conta. Os pratos de caruru e garrafas de cerveja passavam solidariamente, de mão em mão, por cima das cabeças de todos, até chegar ao seu destinatário, mesmo os que ficavam em frente à casa, do lado de fora, porque dentro já não cabia mais ninguém.

Todo ano, Cesio e Soninha eram os primeiros a chegar, trazendo de Cachoeira uma galera do samba de roda de dona Dalva. Para revezar na parte musical, Bujão descia a ladeira do Abaeté com meia dúzia de batuqueiros do Malê, bloco afro que tinha o anfitrião como um dos mais efetivos colaboradores. Gerônimo vinha de saveiro lá de Bom Jesus dos Passos; o velho Bonfa, com seu sorriso largo, trazia o seu timbau, para qualquer eventualidade. Zezinho sempre ajudava nos batuques.

Zé Rebelde batia o ponto e o pessoal da Cidade Baixa também; Malaca descia da Barra com sua turma e Sergio Boto da Baixa de Quintas, com Margarida e as meninas; Reminho e Lucinha, Pitu e Lena eram presenças garantidas. Mais cedo ou mais tarde, o repórter Zé Raimundo chegava com sua equipe da TV, para fazer a cobertura do evento que assim virava notícia nacional.

Mas, infelizmente, com o passar do tempo, a vida moderna foi quebrando a força da tradição. Ficou impraticável e caro fazer o caruru de São Cosme (além do caruru, propriamente, o prato inclui grande variedade de comidas com ingredientes e preparos diferentes) - muito menos como o de Bunda Podre.

Quem não pode mais fazer uma festança assim oferece apenas um caruru pequeno, para sete meninos, a família e amigos mais chegados. É desse modo que até hoje Bunda Podre cumpre sua promessa.