Cultura

A FESTA DE BABETE, a história e o filme, por FERNANDO MOREIRA

História se passa numa península da Dinamarque no ano de 1871
Fernando Moreira , Brasil | 19/06/2015 às 11:22
Um jantar especial muito bem filmado e interpretado
Foto: Alberto Drumont
Em 1871, em noite de tempestade, Babette chega a um vilarejo na Noruega, fugindo da França durante a repressão à Comuna de Paris. Ela se emprega como faxineira e cozinheira na casa de duas solteironas, filhas de um rigoroso pastor. Ali ela vive por doze anos, até que um dia fica sabendo que havia ganhado uma fortuna na loteria e, ao invés de voltar à França, ela pede permissão para preparar um jantar em comemoração aos centésimo aniversário do pastor. A princípio, os convidados ficam assustados, temendo ferir alguma lei divina ao aceitar um jantar francês, mas acabam comparecendo e se deliciam com a festa de Babette.

A Festa de Babette, (Babettes Gæstebud), é um filme franco-dinamarquês de 1987, dirigido por Gabriel Axel. Roteiro adaptado da obra de Karen Blixen, cujo pseudônimo era Isak Dinesen, o anonimato se justifica, uma vez que mulheres escritoras não seriam vistas de forma “positiva” em uma sociedade machista e hipócrita.

DA ESTRUTURA NARRATIVA

A história se passa numa península da Dinamarca no ano de 1871, onde duas irmãs, devotas de seu falecido pai, um rigoroso pastor luterano, pregavam a salvação através da renúncia. Babette é uma mulher desconhecida que lhes bate à porta em busca de trabalho e abrigo, e que mais tarde revelaria que seria uma refugiada da guerra civil francesa.

Esse pequeno vilarejo era composto por famílias extremamente religiosas, com regras, deveres e devoções específicas. Assim que chega, Babette observa que todos na vila possuem um hábito “um tanto curioso” referente ao ato de comer; alimento básico apenas para sobrevivência, sem cor, sem sabor ou algo que estimule o sentido do paladar. No início, Babette tentou recompor o que uma vez foi esse tipo de alimentação e aos poucos, utilizou de seu aprendizado para oferecer mais sabor aquela comida e aos poucos tentar modificar a mentalidade dos aldeões.

Babette de certo renunciou sua terra natal, mas não os velhos hábitos franceses, o único vínculo que Babette tinha com sua ex pátria era um parente que lhe comprava bilhetes de loteria. Certo dia, Babette recebe uma correspondência avisando-lhe que havia sido premiada na loteria com dez mil libras. Porém, Babette decide antes de ir, oferecer um jantar para as duas mulheres que lhe acolheram e seus respectivos convidados em forma de agradecimento por sua hospitalidade. Com uma certa insistência Babette consegue a autorização para preparar o jantar, no qual todas as despesas referentes ao mesmo seriam de sua responsabilidade.

As irmãs, começam a se preocupar quando avistam a chegada de um barco contendo especiarias outrora nunca vistas e conhecidas por elas, tartarugas, codornas vivas, todo tipo de ervas e frutas, o que despertou uma certa inquietude nas irmãs e até um desconforto, porém, acanhadas de rejeitar o pedido e a gentileza de Babette elas optam por uma segunda solução: Reunir todos os convidados do jantar, um dia antes, para uma conversa e algumas recomendações. Elas expõem aos convidados o tipo de jantar que será oferecido e de comum acordo eles fazem um pacto, em que o principal objetivo a se cumprir, é: – Não saborear nada da comida, focar nas palavras sagradas.

O jantar acontece, os participantes chegam e se acomodam, e entre os convidados, um general muito respeitado juntamente com sua tia. Babette se dedica tempo integral ao jantar, os pratos são servidos em ordem específicas, talheres, prataria, copos e taças são postos a mesa, ninguém nunca havia visto nada igual até então, com exceção do General convidado.

Como combinado, os religiosos do vilarejo tentam manter o foco na fé, nas preces e na doutrina aprendida, mas, em contrapartida, o General aprecia todos os pratos que ali são expostos, de forma simples e genuinamente convidativa, os participantes começam a perceber uma naturalidade no comer, algo que não interfere diretamente em sua religião e que desmistifica um conceito de pecado, uma vez aprendido.

Em um dos assuntos que surgem, o General identifica o banquete com o mesmo que havia experimentado no “Café Anglais”, que segundo ele só poderia ser preparado por “um gênio da culinária”.

[…] Quando estive em Paris uma vez ganhei uma corrida de cavalos. Os oficiais da cavalaria francesa me homenagearam com um jantar, um dos mais famosos restaurantes da cidade. O Café Anglais. O chefe de cozinha surpreendentemente era uma mulher. Comemos “codornas no sarcófago”, um prato que ela mesma tinha criado. O general Galhinfer, que era o anfitrião naquela noite, nos explicou que essa mulher era capaz de transformar um jantar numa espécie de caso de amor, numa relação de paixão onde era difícil diferenciar o apetite físico do espiritual. (AXEL. A festa de Babette, 1987).

No menu: “sopa de tartaruga, blinis de caviar demidorf, cailles sarcophage, babá ao rum, frutas frescas, champagne Vve Clicquot, vinho Clos des Vougeot” …Servidos com todo requinte.

Ao fim do banquete todos estavam extasiados, “alimentados de corpo e alma”. Babette então revela seu maior segredo, (era ela a cozinheira do “Café Anglais”), e gastou todo o dinheiro recebido da loteria com o jantar, mostrando assim que abdicaria de uma vida luxuosa na França para permanecer ali.

DAS REFLEXÕES

O filme em si, carrega uma extensa linguagem religiosa e de certo contemporânea sobre este mesmo assunto. Temos uma vila puritana religiosamente segura de suas doutrinas e de sua fé. O assunto central do filme gira em torno do conceito de pecado e em específico, do pecado da Gula.

A religião sempre teve o papel “regulador” desses vícios e da sociedade, a fim de organizar e doutrinar segundo sua perspectiva.

Os hábitos por trás do alimento são questionados desde a Grécia Antiga. Para a doutrina Católica, alimentar-se é um ato normativo humano em que a única função é manter o corpo saudável, o excesso através da comida, bem como o prazer, são um estímulo do pecado da Gula.

A Gula, derivando de “goela” em latim, surge para frear o apetite desregrado, principalmente da nobreza, uma vez que entende-se por gula, não só o ato de comer, mas também o de beber, e (ou) de se embriagar, opondo-se ao ideal de moderação, ou o que Aristóteles consideraria como a virtude da temperança.

Porque a Igreja se incomodaria tanto com o fato do comer em demasia? Não seria algo prejudicial inteiramente do individuo que o comete?

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Também, mas a Igreja entende que a gula torna-se responsável por pecados bem mais graves, tal como o acaloramento dos sentidos que conduz a luxúria, uma vez que o excesso de carnes (principalmente) e molhos picantes, excitaria o corpo e o espírito. E até mesmo a preguiça como consequência, uma vez que o comer demasiadamente causaria uma languidez dos sentidos e uma ociosidade, outrora condenada. E é exatamente através desta conceitualização que os personagens impõem-se a um regime rigoroso afim de evitar qualquer tipo de ameaça advinda da gula.

Potencialmente o guloso está na origem das desordens, dos tumultos sociais: “ao comer excessivamente em relação a suas necessidades fisiológicas ou de maneira excessivamente fastuosa para seu nível social, o glutão desestabiliza um corpo social estabelecido por Deus e tido como naturalmente imutável”. (QUELLIER, 2011, p. 20).

Portanto, a gula, principalmente na Idade Média, Moderna e ainda início da Contemporânea, foi um pecado altamente condenável. O filme deixa claro esse repúdio e é sobre essa limitação que seu roteiro permeia; a linha tênue entre a gula e o bem comer.

No Filme, as irmãs (representam essa doutrina religiosa), já Babette (o conflito, a “desordem”). O antagonismo destes personagens oferece o ponto chave da temática do filme. Quando Babette se oferece para ser a anfitriã de um jantar feito, comprado e preparado por ela, as irmãs se veem sem saída, uma vez que aceitam o pedido de Babette, exortando assim ainda mais a preocupação em não ceder aos prazeres do paladar.

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“[…] não pretendíamos fazer nada de mau, só quisemos agradar a Babette, porém, não tínhamos nem ideia de onde o seu pedido nos levaria. E agora, agora estamos expostos a forças perigosas, talvez forças do mal, não posso nem lhes contar o que ela nos dará para comer e beber.” (AXEL. A festa de Babette, 1987)

 

            A apreensão quanto ao jantar cria uma espécie de “pré – conceito”, definindo limites e estipulando regras, uma vez sentados a mesa, seria de suma importância não deixar-se envolver com aquela tentação, em outro trecho do filme os convidados combinam de forma pactual como agir durante o jantar.

 “Agora lembrem-se que não devemos saborear nada, rezemos com as palavras do Pastor. – “Que meu corpo se alimenta hoje, que meu corpo seja escravo da minha alma, que minha alma avance para a glória do senhor. Amém. […] o homem não só se absterá como também rechaçará qualquer pensamento de comida e bebida só então poderá comer e beber no devido espírito.” (AXEL. A festa de Babette, 1987).

Já Babette ousa e outorga o jantar, criando um clima, tão qual noutro tempo já havia visto em sua terra natal. Ela se apetece a oferecer uma típica ceia francesa, ensejada por um dos mais conceituados cafés franceses. Os personagens se desconfortam, porém acabam por expandir um novo olhar sobre o bem comer (uma vez observando o general, que de certo, se torna um exemplo).

É importante frisar que, da origem da palavra gula, advém três subsequentes significados, que durante a história, acabam por designar coisas diferentes. Glutão, Gourmet, Gourmand, são três acepções discordantes para uma mesma palavra. No Ocidente, gula remete a três sentidos correspondentes, durante três momentos históricos diferentes. O sentido mais antigo designa os grandes comedores e os grandes bebedores, bem como todos os excessos representados pela palavra em latim goela, já Gourmand, seria o amante da boa mesa, e Gourmet, caracteriza-se pelo paladar refinado e por algum conhecimento sobre gastronomia. (QUELLIER, 2011).

Progressivamente nos séculos XVII e XVIII, que imporá o termo francês Gourmet, logo no auge do século XIX (data em que o filme se passa), já temos o conceito da “boa gula” formado e de certo fomentado pela própria Igreja. O papel do General é fundamental, uma vez que é este personagem que faz com que os outros (tão conservadores em sua religião) consigam absorver esse conceito nouveau e quebrar o estigma carregado pelo simples fato de comer bem.

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O filme trata de como esses personagens tão alienados em suas convicções religiosas conseguem enxergar, ou melhor, visionar um novo formato de modus vivendi, sem necessariamente estar atrelado ao que a Igreja considera correto.

O encanto da Festa de Babette está exatamente nessa quebra de conceitos, nesse abrir de mentalidade. Durante o jantar, em um determinado momento, os personagens abandonam suas rixas, seus problemas e sua conduta religiosa para simplesmente saborear o bem comer, o trocar ideias, o experimentar.

Obtemos então, um filme que expõe (através do pecado da gula) uma visão dogmatizadora, dominadora e punitiva vinda por parte da Igreja, a qual utiliza de sua doutrina para “controlar” segmentos sociais e a redenção dos personagens que conseguem enfrentar o medo já arraigado em seu imaginário e vivenciam um momento único de compartilhamento, em que o alimento se torna a comida que alimenta o corpo e o espírito.

A Festa de Babette é sem dúvida um clássico, bem produzido, com um roteiro impecável que faz-nos questionar como devemos medir nossa fé pelo bem viver.

“Não há pecado afora a estupidez” (Oscar Wilde)

 

REFERÊNCIAS:

AXEL, Gabriel. A festa de Babette. Produção: Just Betzer Bo Christensen. Dinamarca. Cor. 120m. 1987.

QUELLIER, Florent. Gula: A história de um pecado capital. São Paulo: Editora Senac. 2011. 224p.


PREMIAÇÕES:

 Oscar 1988 (EUA)

Venceu na categoria de melhor filme estrangeiro.
 BAFTA 1989 (Reino Unido)

Venceu na categoria de melhor filme em língua não inglesa.
Indicado nas categorias de melhor atriz (Stéphane Audran), melhor fotografia, melhor direção, melhor filme e melhor roteiro adaptado.
Festival de Cannes 1987 (França)

Recebeu o Prêmio Ecumênico.
 Globo de Ouro 1989 (EUA)

Indicado na categoria de melhor filme estrangeiro.
 Festival du Cinéma Nordique de Rouen 1988 (França)

Recebeu os prêmios da audiência e do Grande Júri.
 Receitas das comidas oferecidas no filme

http://www.karenblixen.com/recipesbyzeldes.html

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