Cultura

CACHAÇA de Quina, ubre assado e outras de Zé Curtidor, p/ OTTO FREITAS

Otto Freitas é jornalista e escreve sobre Vida de Gordo
Otto Freitas , Salvador | 09/01/2015 às 12:06
Quina do cerrado cuja madeira dá boa pinga
Foto: DIV
Zé Curtidor bem que poderia ter sido personagem de Jorge Amado. Ele integrou uma das várias levas de sergipanos que, no começo do século XX, migraram para o Sul da Bahia, fugindo da pobreza e da seca e correndo atrás do “ouro branco”, como o cacau foi considerado um dia. Sírios e libaneses vieram antes, em fins do século XIX, também em busca da fortuna.

Nascido em Tobias Barreto, no agreste do Estado de Sergipe, Zé Curtidor, ainda adolescente, partiu de lá sozinho, montado em lombo de burro. Quase todo dia saiam tropas de gente com destino ao sul da Bahia, maior produtor de cacau do mundo na época.

Quando chegou ao seu destino, como não tinha estudo nem profissão, foi trabalhar em um curtume, onde ganhou o apelido. Autodidata, aprendeu a ler e escrever. Progrediu e comprou sua primeira roça de cacau e gado no Salgado, na cidade de Santa Cruz da Vitória, perto de Itabuna. Nos anos 60, já era considerado um grande produtor rural.

Casou duas vezes. Na primeira, com dona Paula, teve 10 filhos (5 homens e 5 mulheres). Ficou viúvo e casou de novo, com dona Zefa, uma alagoana da zona da mata, também viúva, com 5 filhos (4 mulheres e 1 homem). Juntaram as duas famílias e tiveram mais 5 filhas. 

Zé Curtidor gostava de viajar. Rodou muito pelas estradas de terra e asfalto, de Jeep ou na Rural Willys vermelha e branca, sempre com uma filha ou um empregado ao volante, pois nunca aprendeu a dirigir. 

Jamais abandonou o seu sertão. Tanto que a família ainda mantém a casa simples em Itapicuru, um balneário de águas termais na divisa da Bahia com Sergipe, vizinho a Tobias Barreto, terra onde nasceu. Era seu refúgio quando queria se recolher às suas reflexões. 

Além das viagens pelo sertão e das temporadas em Itapicuru, lia muito sobre tudo o que lembrasse a vida de qualquer sertanejo como ele. Sabia de cor Os Sertões, de Euclides da Cunha. Não se cansava de contar histórias sobre a guerra de Canudos, Lampião e o cangaço. 

Zé Curtidor lia muito. Foi um autodidata que se tornou culto através da leitura e da experiência de vida. Conhecia toda a obra de Jorge Amado, Machado de Assis e Monteiro Lobato e estava sempre bem informado sobre atualidades e a vida política e econômica da Bahia e do Brasil. 

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Quando Jeffinho o conheceu, Zé Curtidor tinha quase 80 anos e vivia no casarão da família em uma esquina de Ibicarai, no sul da Bahia, próxima a Itabuna. Ainda mantinha uma ou duas roças de cacau que lhe restaram. Já havia perdido também todo o gado. 

Cabelos brancos sobre a cabeça chata e sem pescoço, como todo sertanejo puro, jamais abandonava o chapéu de feltro e as alpercatas de couro; usava a camisa sempre por dentro das calças e com as mangas compridas dobradas nos punhos. 

Apreciava um bom cigarrinho de palha; na falta deste, preferia o fumo forte do Continental sem filtro. E adorava um carteado, perdia-se no tempo entre os baralhos. 

Perto da hora do almoço, ele apanhou, debaixo da pia da cozinha, um pedaço de tronco de árvore. Puxou o canivete e raspou as cascas do pau até render um bom punhado. Jogou tudo no copo com uma dose bem medida de cachaça. Acrescentou um pouco de mel, mexeu bem e deixou a mistura descansar na infusão por alguns minutos. 

- Que madeira é essa - indagou Jeffinho, curioso. É quina. Quer provar? Gentilmente, Zé Curtidor, que não era de muitas palavras, preparou para Jeffinho uma dose generosa de quina, que é a casca que cobre o tronco e as ramificações de uma árvore da família das rubiáceas, também conhecida como chichona, quina-quina e casca dos jesuítas. É rica em quinino, com várias propriedades medicinais e digestivas. 

Até a hora do almoço, Jeffinho e Zé Curtidor tomaram uma meia dúzia de quinas preparadas ao modo dele - nas suas, Jeffinho acrescentava uma pedrinha de gelo, para quebrar a força da pinga. A prosa pegou ainda mais gosto quando dona Zefa ofereceu um tira-gosto raro, novidade para Jeffinho: ubre (o peito da vaca) assado e untado na farinha seca de mandioca. Derrete deliciosamente na boca, como um favo de mel. A cachaça de quina quebra o excesso de gordura. 

Logo depois, dona Zefa serviu o almoço, uma refeição celestial. Na mesa grande havia de tudo que o velho sertanejo gostava: caça (um belo tatu de ensopado), feijoada, rabada, costelinha de carneiro na brasa, bode de ensopado e um pernil de porco tenro e suculento. De entrada, a calabresa caseira, que Zé Curtidor fazia pessoalmente, foi o maior sucesso. 

Jeffinho nunca mais se encontrou com Zé Curtidor. Ele morreu com 100 anos, mais ou menos, pois depende de uma controvérsia quanto a data do seu nascimento. Mas isso pouco importa, porque no céu o tempo conta diferente. Zé Curtidor deve andar por lá tomando uma quina, pitando um cigarrinho de palha e contando histórias sobre a saga do cacau e o sertão que tanto amava.