Cultura

Lembranças de Itaparica para matar a saudade Ubaldo, por OTTO FREITAS

A ponte foi motivo de uma das suas últimas lutas em defesa da ilha.
Otto Freitas , Salvador | 10/08/2014 às 23:33
João Ubaldo na ilha de Itaparica
Foto: A Tarde
Além de todo o afeto, respeito e admiração que me ligaram a João Ubaldo Ribeiro, entre nós havia ainda uma ligação muito especial: Itaparica é a nossa ilha - ele como filho da terra; eu como neto. Meu avô Miranda, batizado Anphilophio Alcebíades de Miranda, nasceu e cresceu na ilha, onde trabalhou por um tempo como gerente da fábrica de água mineral e até bem velhinho não faltava à festa do dia 7 de janeiro. 

Em meio a mangueiras e sapotizeiros, a casa do meu avô, na roça do Brasileiro, era simples. A 20 minutos de caminhada da cidade, tinha dois quartos, duas salas pequenas contíguas, e nos fundos um imenso salão onde se faziam as refeições em volta de uma grande mesa. À noite, o salão virava dormitório, com esteiras espalhadas pelo chão. 

Na sala da frente, onde se estendia uma rede, via-se o mar depois do coqueiral da praia, a cerca de 500 metros. Fim de tarde, gostava de ficar na rede, contando saveiros indo e vindo das cidades do Recôncavo. Lá pelas 5 da tarde passava o navio, chegando de Salvador (fazia duas viagens por dia; ia de manhã e voltava de tarde). 

A luz era de candeeiro, a geladeira a gás, só para guardar comida. O banho era na fonte perto de casa, água fria e pura. A água de beber, armazenada no porrão grande, era resfriada na moringa de barro que ficava permanentemente na janela. Vinha da Fonte da Bica, de onde Seu Pedro Aguadeiro trazia cargas de quatro barris de madeira a cada vez, no lombo do burro. 

Ainda me lembro de Seu Pedro, chapéu de palha, calças com as bocas dobradas, pitando um cachimbo de barro. Adorava o aroma da fumaça de fumo de corda! Aquele cachimbo despertava a minha cobiça de menino. Até que um dia, de tanto eu pedir, Seu Pedro me prometeu um cachimbo igual ao seu - mas isso só em “mil novecentos e noventa e tantos”, repetia ele, sincero, sem querer mentir, mas postergando o cumprimento de sua promessa para um futuro então muito distante, quase inatingível. 

Naquele tempo, o navio (o sistema ferry-boat foi inaugurado em dezembro de 1972) atracava na ponte do cais ao lado da fortaleza São Lourenço - era quando os meninos mais se exibiam em mergulhos no mar, dando caídas da ponte e do navio. O desembarque de passageiros e cargas era uma festa.

Mesmo depois que se mudou para Salvador, meu avô manteve a casa na ilha que por longos anos abrigou filhos e netos em férias inesquecíveis, durante verões brilhantes e chuvosas festas juninas. Vovó Celina criava suas galinhas soltas no terreiro, entre o limoeiro e a pequena mangueira ao lado da casa. Gostava de cozinhar; fazia feijão na panela de barro e moquecas de peixe no alguidar, tudo sobre o fogão a lenha. Ficava feliz com a casa cheia de parentes e amigos das filhas, dos genros, dos netos, dos amigos dos amigos.

Essa Itaparica das minhas lembranças enriqueceu a minha infância e a vida. Nesse tempo só havia dois veículos na ilha: o Jeep de Seu Caetano do açougue e o caminhão verde de Seu Valdemar do cinema e da sorveteria. Todo mundo usava tamancos de pau; ainda não havia sandálias de borracha com tiras de dedo. 

O banho de mar, de águas limpas e transparentes, era calmo e gostoso. Pescava siri de jereré, à noite, na praia em frente de casa; e de linha na ponte do cais; apanhava cajus e mangabas nas roças da vizinhança; catava manga carlota, tão farta na ilha que forrava o chão de folhas sob as mangueiras. 

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Adolescente, jovem, época em que faltava dinheiro e sobrava alegria, fui muitas vezes com amigos e parentes para a casa do meu avô. Mais tarde, foi abandonada pelos herdeiros, ruiu e se perdeu. Mas aí, já adulto, havia alcançado o sonho de manter a minha própria casa de veraneio na ilha. 

Ficava na localidade de Barra do Gil. Quando estava lá, quase todo dia ia para Itaparica, a pretexto de pegar água na Bica. Depois, dava uma esticadinha até o largo da Quitanda, para encontrar Ubaldo, ouvir seus conselhos, ou apenas rir muito com ele, entre acarajés crocantes e doses de Old Eight com gelo. 

Nas últimas décadas, enquanto o litoral norte de Salvador se tornava polo turístico internacional, Itaparica foi caindo no esquecimento, deteriorando-se com o tempo e o crescimento urbano desordenado. Depois de tanto desprezo e maus tratos, agora querem construir uma ponte, ligando a ilha ao continente. 

Ubaldo não gostava da ideia e lutou muito contra ela. Em suas crônicas, demonstrava todo o mal que uma obra assim pode causar. Foi uma das últimas lutas do Amigo Velho pela nossa ilha.