Cultura

CENTENÁRIO DE CAYMMI: o buda nagô baiano, por ZÉDEJESUSBARRÊTO

Caymmi cantopu a Bahia especialmente seu mar
ZédeJesusBarrêto , Salvador | 30/04/2014 às 12:00
Dorival Caymmi
Foto: DIV
“ Mar da Bahia, inspiração e colo do compositor-cantor Caymmi, nascido em Salvador, cidade aconchegada nas águas. Era filho de Aurelinda Cândida de Aragão Soares (Dona Sinhá), mulher de ‘boa família’, e do mulato Durval: elegante, boa vida, fiscal de navio mercante no cais, bom de violão, freqüentador de missa dominical e terreiro de candomblé sem distinção. ‘Durval dava muito trabalho’, no dizer de Dona Sinhá. O filho Dorival, que muito puxou ao pai, menino ainda pegava escondido o violão paterno e construía seus primeiros acordes.

A cidade da infância de Dorival Caymmi, que viveu a adolescência e juventude na Ladeira do Carmo, centro histórico, tinha cerca de 150 mil habitantes. O bonde de tração elétrica era o transporte. Os elevadores Lacerda, do Taboão e o Plano Inclinado Gonçalves já ligavam as cidades alta e baixa, e a novidade urbana era a abertura da avenida Sete de Setembro, rasgando o centro em direção à Barra. 

A primeira visão do mar do guri Dorival aconteceu num veraneio à casa da tia Pipi (irmã de Sinhá), na então colônia de pescadores do Rio Vermelho. Subiu no muro do quintal para ver a imensidão das águas e cortou o pé num caco de vidro. 

Restou uma sensação de encantamento e dor; o azul do mar e o vermelho do sangue gravados na memória.

No Carmo, conheceu Zezinho, vizinho e amigo para tudo, com quem ‘conheceu a vida’ batendo pernas pela cidade e aprendendo o falar corriqueiro do povo, ouvindo histórias dos mais velhos, ensaiando músicas, fuçando emissoras de rádio no intuito de mostrar seu talento, tentando sem êxito ganhar a vida como vendedor, e, mais importante do que tudo isso, aventurando-se em longos passeios até a longínqua Itapoã, então uma bucólica aldeia de pescadores. 

Chegar até lá era uma aventura. Ali alugavam uma palhoça e acompanhavam o dia-a-dia daquele povo do mar, preguiçando, fazendo ousadias, ouvindo histórias e explorando as dunas de areia fina que se estendiam até a lagoa do Abaeté, em liberdade plena, os ouvidos apurados no som do quebrar das ondas, do vento no coqueiral sem fim, no sotaque e na cantoria da gente das águas. 

Aos 24 anos de idade, frustrado com a falta de oportunidade de ‘ganhar a vida’ em Salvador, embarcou com a benção de Durval e Dona Sinhá no navio costeiro Itapé, tendo como destino o Rio de Janeiro, sonho baiano àqueles tempos, com o inseparável violão empacotado sob o braço, um livro presenteado pelo amigo Zezinho e charutos doados pelo pai. Era 1º de abril de 1938. 

Foram alguns meses de pindaíba em quarto de pensão barata perto da avenida Rio Branco, mas o mulato sestroso e talentoso foi se enturmando com os cariocas da ‘era do rádio’ e nesse mesmo ano já algumas emissoras abriam os microfones famosos para aquele violão tocado de forma diferente, com acordes de vagas e berimbaus, a voz grave aveludada e canções baianas genuinamente brasileiras, populares e tão elegantes. 

O grande salto para o sucesso aconteceu ao lado de Carmem Miranda, ‘a pequena notável’, ídolo maior da música brasileira à época, que encenava musicais para Hollywood. Carmen faria seu quinto filme, ‘Banana da Terra’ e precisava de canções novas. Então, o compositor e radialista Almirante lhe apresentou Caymmi que a encantou com ‘O que é que a baiana tem?’. Era começo de 1939. Carmem abriu as portas para o jovem baiano que sugeriu os trajes e os trejeitos que ela faria ao cantar, até o revirar dos olhos. Tornaram-se grandes amigos. 

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Estava a trabalhar em Luanda, Angola (2008), quando bateu a notícia da morte de Caymmi, sentida. No ato escrevi esse texto que segue, que é também um capítulo do meu livro “Cacimbo – Uma experiência em Angola” / Solisluna Editora. Caymmi, vivo fosse, faria hoje, 30 de abril, 100 anos. Em sua homenagem, leiam: 


Buda baiano

Em Luanda, do outro lado do Atlântico, fico a saber 
da morte de Dorival Caymmi, aos 94 anos. 
Talvez o último dos grandes ícones da tal baianidade, 
atributo que ele carregava na cor da pele mulata, 
preservava na pose e na pança de Xangô-rei, 
no vagar, no dengo e na doçura de seu olhar, de seus gestos, 
de suas palavras, de seu sorriso. 
Caymmi era um gênio. 
Nos anos 30, com voz grave e afinada, acompanhado de seu violão dolente já mostrava ao mundo ‘o que é que a baiana tem’.
E no seu rastro de som e molejo vieram todos... Jorge, Carybé, Verger...

Ah! Deve estar uma festança no céu. Jobim ao piano.

Certo dia, numa entrevista, acossado pelos jornalistas 
que babavam sua genialidade, o maestro Jobim falou: 
‘A música é Caymmi, Caymmi é a música e eu não seria músico 
se não fosse Caymmi’. 

Basta? Tom Jobim!
Não, não basta. 
Nos anos 70, entrevistando João Gilberto, o chamado papa da bossa-nova, ele disse: 
‘Tirem os olhos de mim, que eu nada sou além de um tocador de violão.
O gênio se chama Caymmi. Então, vão ouvi-lo, vão entrevistá-lo.
Ele é o mestre, ele é a música’. 
João Gilberto!

A última vez que o vi, um buda baiano, de branco, sentado e lento, 
foi na roça sagrada do Ilê Axé Opô Afonjá, terreiro ketu/nagô 
de São Gonçalo do Retiro dedicado a Xangô. 
Ele era Obá, ministro de Xangô. Como o compadre Jorge. Como o compadre Carybé. Dormiram na esteira dos terreiros, cabeças sagradas 
aos Orixá, irmãos todos de Mãe Stella de Oxóssi, sacerdotisa dessa 
terra-mãe que é hoje a mais africana de todas as cidades, 
pelo mistério que preserva nos seus candomblés, que, 
do lado africano do Atlântico já quase nem se ouve mais falar. 


Caymmi era mais do que um músico. Foi um signo. 
Um revolucionário, sim senhor! Ele mudou a música brasileira com suas canções e um violão de mar. 
E projetou a baianidade no mundo, via Carmem Miranda 
e o cinema americano. 

Como escreveu outro baiano, João Ubaldo Ribeiro, 
‘Caymmi era uma fazedor de beleza’. 

Ia além do compositor. Era um pintor de traços e cores precisas, 
um grande contador de histórias, proseador, sedutor... 
Cantou o povo, o andar, a ginga da gente baiana, 
o requebro das cadeiras da fêmea, a mistura, o jeito da mulatice, 
o som das ruas e senzalas, a conversa e a labuta dos homens do mar, 
do cais, o ir e vir das ondas, os mistérios do reino de Aiocá, 
o vento na palha dos coqueiros, o balanço das velas dos saveiros, 
o xaréu, as crenças, o rabo de arraia dos capoeiras, as festanças, 
o samba no pé e na bunda, a alegria de viver baiana, os tambores nagôs, 
as mandingas de Angola, os mistério dos caboclos e encantados...

O violão de Caymmi era recôncavo. 
Seu canto, maresia, daquela que varre a sujeira e deixa o ar 
da Cidade da Bahia tão puro e limpo como as nuvens brancas de Oxalá.
Caymmi era luz, azul como o céu e brilhoso como o mar 
de Todos-os-Santos. 



A Bahia inteira, cabeça ao chão, curva-se perante o Universo e agradece...
Por ele.
Como agradecemos agora a Olorum, por ter nos concedido a graça de nascer no mesmo espaço e tempo em que viveu 
o mestre Dorival Caymmi.
Agradeçamos ao Criador pela graça de tê-lo ouvido.
Amém.