Cultura

JEFFINHO quer preservar receitas raras da culinária, por OTTO FREITAS

Pratos tradicionais como xinxim de bofe, efó e arroz de hauçá estão desaparecendo.
Otto Freitas ,  Salvador | 19/01/2014 às 18:44
Os irmãos Moreira, do Porto Moreira, ainda fazem a moqueca de miolo
Foto: WordPress
Nunca é demais lembrar que comida é uma paixão para Jeffinho. Mas o seu excesso de peso foi adquirido muito longe da cozinha (ele só passa por lá de vez em quando para vistorias e roubadas na geladeira e nas panelas). Nesse território, é um incompetente: não sabe sequer fazer café ou fritar um ovo - e adora os dois. 

Tem mais: Jeffinho não vai à feira, nem ao supermercado; não sabe a diferença entre um filé e um chupa-molho e a única espécie de peixe que conhece é a arraia - o resto é tudo igual, só muda o tamanho. Talvez seja melhor mesmo não saber comprar e cozinhar, pois do contrário certamente ele seria muito mais gordo.

Agora Jeffinho anda preocupadíssimo com seu futuro, teme inclusive que pode até emagrecer, pois já não consegue mais comer os pratos de que mais gosta, pois, em sua maioria, não se encontram mais em restaurantes. Restam apenas as famosas e poucas tias que mantêm comercio informal de comidas tradicionais em barracas de rua ou na própria casa. 

Mais grave ainda é que as melhores e mais completas cozinheiras à sua volta, inclusive as da família, andam se recusando a fazer suas comidinhas prediletas. Alegam que exigem preparo sofisticado, demorado e trabalhoso demais. 

Pior é que essas receitas sempre foram transmitidas oralmente entre as gerações - mas isso acabou, pois a mãe deixou de cozinhar e os filhos só querem saber de sushi, fast food e, quando muito, gastronomia internacional. Além do mais, os registros escritos são escassos, com exceção de bons livros como os de Guilherme Radel.
 
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Jeffinho acha que a sobrevivência da culinária tradicional corre sério risco, comprometendo a identidade cultural baiana. A comida é uma ligação com o passado; é preciso resgatar e preservar receitas antigas, sobretudo de influência africana e indígena. Muitas estão se perdendo, caindo no esquecimento, e podem desaparecer com o tempo. 

É o caso, por exemplo, do xinxim de bofe, um dos mais baratos, saborosos e raros. Dá trabalho para fazer, pois catar e limpar o bofe (pulmão do boi) é uma operação manual lenta e cuidadosa, pois é preciso retirar toda a cartilagem. Caso contrário, compromete o sabor e a textura do prato. Tem quem passe tudo na máquina, sem retirar aqueles tubinhos, porque assim é mais rápido e mais fácil. Mas aí o xinxim vira uma papa inhaquenta, asquerosa.

Outro exemplo é a maniçoba, preparada em até uma semana, se for feita do jeito correto, desde a colheita e o tratamento dado à folha de mandioca, para retirar o veneno. Além das carnes salgadas e defumadas, o prato leva ainda carne de porco – tem gente que coloca até um corezinho inteiro, e aí o processo de cozimento é demorado mesmo. As cidades do Recôncavo mantêm a receita viva; em Salvador, ainda se acha maniçoba em dois ou três restaurantes típicos. 

O efó, receita de dendê feita à base de folha de mandioca ou de uma erva conhecida popularmente como língua-de-vaca, é outra raridade, quase em extinção. Já não se vê a iguaria no cardápio das famílias, nem mesmo compondo o prato do caruru de São Cosme, como acontecia antigamente. 

Ninguém faz mais língua de boi de ensopado ou moqueca de miolo, exceto os irmãos Moreira, guerreiros da tradição, que mantêm o restaurante Porto do Moreira há mais de 80 anos no largo do Mocambinho, na Cidade Alta. Também já não se vê mais na mesa do baiano, nem mesmo no almoço da Semana Santa, como era tradição, o feijão de leite (leite de coco e açúcar), delicioso acompanhamento para uma bela moqueca de peixe.

Outra saborosa e incomparável raridade é o arroz de hauçá, prato preferido de Jorge Amado, feito com charque, camarão seco, leite de coco e dendê. Quase não se faz mais em casa, tirando dona Lucia de tio Paulinho. Restaurante, só um ou dois ainda o mantém no cardápio, e olhe lá.