Cultura

A CIDADE BAIXA dos tempos que não voltam mais, por OTTO FREITAS

Ribeira, Humaitá, Pedra Furada, enfim, o que resta do paraíso.
Otto Freitas , Salvador | 05/01/2014 às 19:33
A praia da Ribeira e o fundo da Baía de Todos os Santos
Foto: Teia de Histórias

Nas tardes do cine Roma, doce era o sabor do beijo daquelas meninas, escondendo o namoro no escuro, com todo pudor, por detrás das imensas colunas que sustentavam o altíssimo pé direito da sala de projeção. Filho orgulhoso da Cidade Baixa, Jeffinho não perdia as matinês de sábado, com dois filmes. 

Mesmo decadente, pobre, desprezada, a Cidade Baixa ainda é um dos lugares mais bonitos de Salvador - um paraíso que ainda resta cansado. Até meados do século XX, antes de se transformar no primeiro polo industrial da Bahia, a Cidade Baixa atraia famílias mais abastadas para suas praias, o que lhe emprestou o jeito de estação de veraneio.  

O que se chama de Cidade Baixa é a região de Salvador compreendida por 14 bairros, com a Ribeira na ponta da península de Itapagipe, e na outra extremidade a região portuária, com a antiga zona comercial e financeira e o Elevador Lacerda. 

Entre a Ribeira e o Comércio tem a Calçada, com sua belíssima estação de trens. Misto de bairro residencial e comercial, junto com o Comercio, a Calçada tornava a Cidade Baixa uma região praticamente independente, inclusive porque é vizinha da maior feira livre de Salvador (Água de Meninos pegou fogo e foi substituída por São Joaquim). A feira tem de tudo, de secos e molhados a frutas e artesanato, além de sonhos e fantasia.  

Jeffinho nasceu no Monte Serrat, pertinho do Senhor do Bonfim, na Colina Sagrada, próximo ao brilho do por do sol e à beleza única da ponta do Humaitá. A Boa Viagem e os Dendezeiros foram suas primeiras moradas.

Jeffinho cresceu tomando banho de mar na Ribeira, um dos lugares mais lindos da cidade. É difícil traduzir aquela emoção quando o por do sol chega por cima do porto dos barcos, dourando o sorvete mais famoso do Brasil e iluminando a igreja do Bonfim que se avista na colina sagrada, ao longe.  

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Foi na Penha que Jeffinho começou a namorar, entre os frondosos troncos desertos dos tamarineiros à beira-mar, vendo o trem passar, do outro lado, sobre a ponte metálica de Plataforma. Isso no tempo em que só havia umas poucas casas de residência, ao lado do convento e da igreja de N. S. da Penha. 

Também na Penha Jeffinho se iniciou, ainda estudante, nas boas farras da vida e começou a se transformar no grande obeso de hoje. Toda sexta-feira, depois das aulas no Colégio João Florêncio, ia tomar batida de fruta com tira-gostos politicamente incorretos, no Barcaça, que não passava de um beco estreito de garagem, bem ao lado da igreja. Foi o primeiro bar da Penha, que depois se transformou no pandemônio que é hoje. 
 
Quando morava no Caminho de Areia, quase todo dia atravessava, cortando caminho por dentro do Senai, para a avenida Dendezeiros, onde a vovó Celina morava. Era um velho casarão, de corredores compridos e pé direito alto, com fogão a lenha, quintal cheio de fruta-pão, goiabeiras, pitanga, bananeiras e um galinheiro enorme.

Desse fogão a lenha de vovó Celina, nos Dendezeiros, saiam inesquecíveis torresmos, malassados incomparáveis e feijoada na panela de barro. Camarões, lagostas e siri mole continuam ali perto, na Pedra Furada, que oferece, na Cidade Baixa, a melhor vista da baía de Todos os Santos.
 
De vez em quando, antes de ir para casa dormir, Jeffinho comia, pelo menos, meia dúzia dos pequenos abarás de Zefa, uma negra quase azul, baixinha, toda desconfiada, que só chegava ao seu ponto, no Caminho de Areia, perto da meia-noite. Vinha com o tabuleiro cheio, para alimentar a madrugada faminta. 

Mas até hoje o melhor acarajé ainda é o da avenida Luis Tarquínio, em frente ao ginásio de esportes do Colégio São José (antiga fábrica das Linhas Correntes). Massa leve, sequinha, crocante, de bom tamanho. 

Grandes e suculentas eram as lambretas de Arnaldo, no Uruguai. Mas ele ficou famoso pelo seu farto tira-gosto de carne de fumeiro, uma novidade na época. Macia e saborosa, a carne era acompanhada por muitas geladas e batidas de gengibre, tudo servido no carro ou na calçada da praça, já que o bar em si não passava de um balcão. Mas era o maior sucesso, vinha gente de todo canto da cidade.  

A Cidade Baixa também preserva muitos outros segredos, como as agulhinhas fritas da barraca de Chacrinha, no Mercado Modelo; o mocotó das madrugadas, no mercado das Sete Portas; e o tradicional feijão no café da manhãs de domingo - como o de Moreno, nos Dendezeiros, e o dos filhos de Dona Tereza, que preservam o ponto antigo e tradicional do Porto da Lenha, no Bonfim.

Hoje, na Ribeira já não tem mais samba na segunda-feira gorda, tainha no mar, nem aviões no porto dos Tainheiros. Mas ainda restam as cadeiras na porta para ver a vida passar, a saudade e a música de Candinho de Jesus: “Eu vou sambar na Ribeira/Na Ribeira vou sambar”.